HISTÓRIAS EM QUADRINHOS
Peso da linguagem
Peso da linguagem
Adaptação põe em evidência Watchmen, obra-prima das HQs, considerada, por muitos, infilmável
Chiar para adaptação de histórias em quadrinhos para o cinema é praxe entre os fãs do material original. As explicações possíveis são inúmeras: ciúmes, preciosismo, um tanto de egoísmo (o que é dos iniciados não deve ir além deles) e outro de preconceito estão entre as causas. O fato de produções infelizes jogarem fezes em seu personagem favorito não ajuda muito (veja o exemplo de “Mulher-Gato”, “Demolidor” e o primeiro “Hulk”). No entanto, há casos em a resistência às adaptações se deve mais a um conhecimento crítico da obra do que às emoções confusas que se nutre por ela. Neste terreno, está o temor de muitos fãs de verem “Watchmen” na telona.
Quem viu com atenção “300”, dirigido pelo mesmo Zack Snyder que agora trabalha em “Watchmen”, deve ter ficado com um pé atrás. Naquela época, Snyder trabalhava com a saga dos soldados espartanos, criada por Frank Miller (o criador de “Sin City” e dublê de cineasta, que trabalha na adaptação do clássico de Will Eisner, “The Spirit”). O filme saiu bom; mas como adaptação pecava por introduzir cenas e personagens que alteravam a obra original. Destaque para os polêmicos monstros e aberrações do exército persa, inexistentes na obra em seu formato original .
Se Zack Snyder tomou liberdades em excesso numa obra curta como “300”, o risco de violentar “Watchmen” é ainda maior. Publicado originalmente em 12 partes, entre 1986 e 1987, a minissérie trazia a assinatura de Dave Gibbons, talentoso ilustrador, e Alan Moore, roteirista e uma das maiores lendas vivas no gênero. A história retratava de maneira precisa uma década de 1980, entregue ao vazio hedonista e aterrorizada pelo fantasma de um apocalipse atômico.
No contexto da Guerra Fria, Moore imaginou um mundo em que os super-heróis tinham uma existência real. Realidade construída pelo escritor a partir da previsão dos efeitos que estes teriam sobre a política, a religião e a mentalidade das massas. Na trama, os heróis (chamados de “vigilantes”, os tais “watchmen” do título) tiveram sua atividade proibida pelo governo americano, quase uma década antes. O antigo grupo volta a ativa, clandestinamente, quando uma série de assassinatos vitima velhos combatentes do crime e seus arqui-inimigos.
Complexidade
Como os próprios produtores do filme fazem questão de frisar, a graphic novel (romance em quadrinhos) entrou em uma lista da revista Time, que elegeu os 100 maiores romances produzidos de 1923 até hoje. Vale dizer que a obra de Moore e Gibbons foi a única HQ a figurar na lista. Ainda que existam obra de HQ a sua altura (como “Maus”, de Art Spielgman), “Watchmen” fez por merecer o título.
A obra é de uma complexidade comparável à clássicos da literatura, como “Ulysses”, do James Joyce. Como o romance do gênio irlandês, a HQ de Moore e Gibbons não se resume a história que conta. O ponto é, justamente, como ela é contada. Mais difícil que resumí-la, em um filme de 2h30, será encontrar o tom da narrativa. A transcriação visual da obra, vista nas fotos divulgadas pela produção, mostra que o risco de ver a obra deve ser corrido.
Making of
Na esteira do filme, bons derivados de “Watchmen” chegam ao mercado. Uma versão “definitiva” da obra será lançada pela Panini. Mais interessante é o livro de arte “Os bastidores de Watchmen”. Organizado por Dave Gibbons, ele traz uma coleção de imagens que revelam o passo a passo da construção da HQ, indo de esboços das páginas, primeiros estudos para os personagens a amostras do roteiros escritos por Alan Moore e uma pequena fortuna crítica. Deuses num mundo humano
A revisão da figura do super-herói é uma constante na obra do roteirista inglês Alan Moore
Com “Watchmen”, Alan Moore permitiu aos leitores de quadrinhos imaginar um mundo em que seus personagens realmente existissem. A humanização radical do gênero super-herói tornou-se uma constante nos anos seguintes, tendo gerado obras-primas como “Marvels”, minissérie de Kurt Busiek e Alex Ross que trazia personagens como Homem-Aranha, X-Men e Capitão América para um mundo mais complexo que o das HQs.
O próprio Alan Moore voltou ao tema mais de uma vez. No final dos anos 1980, lançou com o desenhista Brian Bolland a graphic novel “A piada mortal”. Na história, a dupla levava ao extremo o conflito psicológico entre Batman e seu maior rival, o Coringa. A HQ exerceu tanta influência no meio, que reflexos de sua interpretação do personagem puderam ser vistos nas adaptações para o cinema, dirigidas por Tim Burton e Chris Nolan.
Aos poucos, Alan Moore passou a explorar o tema e a se distanciar da leitura que fazia em “Watchmen”. Autor sofisticado, com a erudição dos velhos mestres da literatura, o inglês começou a trabalhar numa investigação panorâmica do conceito de super-herói. Suas realizações mais felizes foram, justamente, nos trabalhos em que abusou da metalinguagem.
Anti-Watchmen
Mergulhando no universo de mitos e clichês criados pela indústria dos quadrinhos, o autor realizou pelo menos três grandes obras que merecem destaque, como estudos da figura do super-herói: “Tom Strong”, “O Supremo” e “Top 10”. Coincidentemente, todos estes trabalhos foram lançados recentemente no Brasil, pela editora Devir.
“Tom Strong” foi uma série mensal, publicada pelo próprio selo de Alan Moore (America’s Best Comics). O personagem título é uma releitura dos antigos heróis da ciência, que têm como paradigma o futurista Buck Rogers.
Strong é um cientista brilhante, criado por seu pai para ser um homem perfeito, dispondo de superforça e envelhecimento retardado. Na HQ, Moore abusa das passagens de tempo. Escritor cuidadoso, ele enche os olhos do leitor com detalhes de velhas tecnologias, aplicadas em contextos como sagas cósmicas e viagens por outras dimensões.
“Top Ten” é uma espécie de brincadeira com a premissa de “Watchmen”. Nesta série, também edita por seu selo, Alan Moore concebeu uma cidade em que todos seus habitantes são seres superpoderosos, de heróis vestindo roupas coloridas à deuses iracíveis. As histórias giram em torno do corpo policial da cidade, reponsável por investigar crimes inacreditáveis e conter ações anti-sociais - que vão de super-vilões a um monstro gigante, nos moldes do mito do cinema trash japonês, Godzilla.
Por fim, Moore fez uma exaustiva interpretação do mito do Super-homem (um personagens pioneiros das HQ sobre poderes extraordinários). Para isso, ele se valeu de um personagem menor da editora Image. O Supremo havia sido criado no começo da década de 1990 pelo desenhista Rob Liefeld. O que era um plágio mal disfarçado do Homem de Aço, nas mãos de Moore, se transformou numa das mais criativas leituras do personagem.
Alan Moore fez seu Super-homem atravessar décadas e sentir o peso delas. É notável a transformação dos vilões - dos bobocas candidatos a dominadores do mundo, nos anos 1940 e 1950, à complexidade do terrorismo e da moral na década de 1990. DELLANO RIOS
Repórter
FONTE (imagem incluída): Diário do Nordeste (Assinatura) - Fortaleza,CE,Brazil