O Brasil é pátria de inúmeros poetas. Poetas que conhecem a arte de descrever a vida em versos: sejam engajados com a realidade humana – construídos sob palavras fortes e doces, esperança e descontentamento; sejam desvinculados de qualquer engajamento, de qualquer realidade – mensageiros de sonhos e metafísicas. A poesia brasileira, assim como toda e qualquer poesia, é produto da sensibilidade, da capacidade que alguns possuem de sentir o mundo com outra pele, de enxergar entrelinhas. E essa capacidade permeia a caneta de muitos escolhidos. Muitos são nossos poetas, mais ainda nossos poemas. Por isso, é tarefa árdua escolher um poema que represente tudo o que de melhor se produziu na nossa poesia. Razão pela qual não se vai aqui explorar o melhor, mas um dos melhores, nascido da capacidade criativa daquele que talvez tenha sido, e ainda seja, o autor mais conhecido do público leitor, e não leitor, de nosso país, além de um dos mais estudados pelos críticos; o que não quer dizer que tenham esgotado sua obra, pois uma boa obra sempre permite uma nova descoberta, ou uma descoberta antiga com uma nova perspectiva. Assim é com “Os Ombros que Suportam o Mundo”, de Carlos Drummond de Andrade.
Os Ombros que Suportam o Mundo
Chega um tempo em que não se diz mais: meu
Deus.Tempo de absoluta depuração.
Tempo em que não se diz mais: meu amor.
Porque o amor resultou inútil.
E os olhos não choram.
E as mãos tecem apenas o rude trabalho.
E o coração está seco.
Em vão mulheres batem à porta, não abrirás.
Ficaste sozinho, a luz apagou-se,
mas na sombra teus olhos resplandecem enormes.
És todo certeza, já não sabes sofrer.
E nada esperas de teus amigos.
Pouco importa venha a velhice, que é a velhice?
Teus ombros suportam o mundo
e ele não pesa mais que a mão de uma criança.
As guerras, as fomes, as discussões dentro dos edifícios
provam apenas que a vida prossegue
e nem todos se libertaram ainda.
Alguns, achando bárbaro o espetáculo
prefeririam (os delicados) morrer.
Chegou um tempo em que não adianta morrer.
Chegou um tempo em que a vida é uma ordem.
A vida apenas, sem mistificação.
Os versos deste poema trazem um tom de angústia e desesperança, porém o eu lírico parece não mais sofrer com esses males que apresenta, encontrando-se em estado pacífico de alheamento ao mundo. Não mais sofre, nem mais percebe espantos na vida. Niilista, vive “um tempo em que não se diz mais: meu Deus”. O que nos leva a crer que muito sofreu, e que agora vive um “tempo de absoluta depuração”, em que todo o excesso foi banido, reduzido ao mínimo, sem deixar mais espaço para desperdício, pois muita coisa tornou-se desperdício, inclusive o amor, “porque o amor resultou inútil”. Esse homem encontra-se desiludido, pessimista; não como fruto de um pessimismo barato, repleto de queixas, porque não possui mais emoções que o levem a reagir contra as desventuras da vida, mas de um pessimismo consciente de sua realidade. Atormentado pelo passado, sobrevive num presente dilacerado, que o deixou incapaz de ser atingido por alegrias ou tristezas, uma vez que seus “olhos não choram” mais, e tudo o que sofreu é obra de um tempo mecânico, onde apenas se labuta feito máquina; um tempo em que “as mãos tecem apenas o rude trabalho”, única realização quando “o coração está seco”.
Cético e melancólico, ver a vida tornar-se um fado em que nada mais lhe dá prazer. Como renunciou aos seus desejos, “em vão mulheres batem à porta”, que não abrirá; está no escuro, em absoluta solidão, não permite que ninguém se aproxime. Além disso, nem mais “sabes sofrer”. As expectativas e as esperanças se foram, já “nada esperas de teus amigos”. E por que esperar, se nada mais importa? Nem a perda da juventude que o leva à velhice: “pouco importa venha a velhice, que é a velhice?”, frente a essa angústia de quem tem uma dolorosa consciência dos problemas do mundo? Por isso, agora, quando a vida se tornou tão ínfima, a ponto de nenhuma amargura ou decepção infligir na sua existência, seus “ombros suportam o mundo”; mas ele é leve, “não pesa mais que a mão de uma criança”. O distanciamento das amarras e afetações da vida, tirou-lhe o peso desse mundo; diferente daqueles que não se libertaram, e ainda vivem “as guerras, as fomes, as discussões dentro dos edifícios”. O que prova “apenas que a vida prossegue”.
Contudo toda essa visão corrosiva, não nos permite deduzir que o dono desses ombros seja um fraco. Enquanto outros, “achando bárbaro o espetáculo/ prefeririam (os delicados) morrer”, ele não almeja a sua morte, encontra-se seco, frígido para os desígnios do mundo, mas não busca seu fim. Sabe que é impotente diante a terrível realidade a sua volta, porém é forte o bastante para continuar vivo perante a barbárie, porque só os fracos escolhem morrer; aqueles “delicados”, como os chama, ironizando sarcasticamente os que, não agüentando os barrancos da vida, se entregam, ou prefeririam se entregar ao caminho aparentemente mais fácil: a morte. O que também não fazem já que o verbo diz “prefeririam” e não “preferem”, deixando clara a intenção, mas não a realização dessa intenção (talvez por falta de coragem). Além do mais, “chegou um tempo em que não adianta morrer”, morrer não resultaria em solução. É preciso continuar a enfrentar a realidade cruel que lhe obriga a viver, pois “a vida é uma ordem”, sem devaneios, maravilhas ou fantasias. Ela é “a vida apenas, sem mistificação”.
Os versos deste poema traçam o panorama de um mundo contemporâneo, onde a vida perdeu o seu valor, e ao homem restou apenas continuar vivo, mesmo sem saboreá-la, mesmo sozinho, pessimista como as palavras de Schopenhauer: “Nada merece nosso esforço, todas as coisas boas são apenas vaidades, o mundo é uma bancarrota e a vida, um mau negócio, que não paga o investimento. Para ser feliz, é preciso ser como as crianças: ignorante”. Contudo, esse sobrevivente não é “ignorante como as crianças”, talvez por isso não seja feliz. Acredita viver num tempo em que ser livre é estar destituído de tudo o que lhe traz humanidade (amor, lágrimas, prazer, sonhos), e que, dessa forma, pode reduzir todo o peso do mundo sobre seus ombros, encontrando a leveza de um mundo pesado.
William Lial é poeta, ensaísta e articulista. Autor dos livros de poemas: Sombras, Noturno e O Mundo de Vidro. Escreve para jornais e revistas, e atualmente colabora como a organização espanhola de divulgação de artistas pelo mundo, a Sane Society, e com alguns outros sites. E-mail: wlial@hotmail.com Fonte: Cronocópios - Literatura & Arte no Plural -
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