sexta-feira, novembro 19, 2010

Leonardo Gorostiza, presidente da Associação Mundial de Psicanálise, compara a psicanálise à poesia

Um dos grandes nomes da psicanálise mundial, o argentino está no Brasil para o 18º Encontro Brasileiro do Campo Freudiano, do dia 19 a 21 de novembro

Alberto Bombig

A psicanálise é poesia. A psicoterapia, prosa. É com essa comparação que o argentino Leonardo Gorostiza, presidente da AMB (Associação Mundial de Psicanálise) ilustra a diferença entre a prática clássica criada por Sigmund Freud e desenvolvida por Jacques Lacan (1901-1981) das demais terapias comportamentais, baseadas em vivências, jogos e questionários, tão em voga em um mundo cada vez mais refém da velocidade e dos resultados em curto prazo: “Trata-se de uma linguagem sem metáforas e metonímias, quando o que se diz não significa nada além daquilo que foi dito. Falta a essa linguagem a dimensão poética da língua sobre a qual a psicanálise se fundamenta precisamente e opera. Imagine o que poderia ser o mundo em que se calasse a voz poética do delírio de um Vinicius de Moraes ou de um Carlos Drummond de Andrade”, diz ele, que está no Brasil para participar do 18º Encontro Brasileiro do Campo Freudiano, a partir desta sexta-feira (19) domingo (21), em São Paulo.

O tema do evento, organizado pela EPB (Escolha Brasileira de Psicanálise), é “O Sintoma na Clínica do Delírio Generalizado”. Ele falou a ÉPOCA sobre assunto e sobre o futuro da psicanálise. Segundo Gorostiza, todos nós somos seres delirantes:

ÉPOCA – A psicanálise tem futuro?

Leonardo Gorostiza - Creio que a psicanálise suporta desde um certo tempo e de maneira renovada um ataque teimoso de quem insiste em prognosticar a sua morte definitiva. Podemos dizer que, no entanto, ela ainda goza de boa saúde. Mas não convém nos contentarmos com isso apenas, porque estamos em uma época em que se produz uma verdadeira mutação que pode implicar em riscos para a sobrevivência da psicanálise. Refiro-me à ascensão da cultura de quantificação que faz da avaliação, dos questionários e dos protocolos o baluarte de uma suposta cientificidade. Nada mais longe disso do que a psicanálise.

Essa cultura, na realidade, trata-se de uma ideologia que aparenta cientificidade e que é funcional às burocracias administrativas. Essa ideologia tende a invadir as práticas “psi” e aponta ao coração poético, se posso dizer assim, de nossas existências.

ÉPOCA – O que são essas práticas?

Gorostiza - Vamos chamá-las por seu nome: as variantes psicoterapêuticas neurocognitivas. Nelas, o importante é o número de quadradinhos a serem preenchidos no questionário e o número de tarefas que o paciente deve realizar para alcançar a desejada “normalidade”. Porém, a questão central é que a linguagem que se utiliza nesse caso é equivocada, ou seja, trata-se de uma linguagem sem metáforas e metonímias, quando o que se diz não significa nada além daquilo que foi dito. Falta a essa linguagem a dimensão poética da língua sobre a qual a psicanálise se fundamenta precisamente e opera. Imagine o que poderia ser o mundo em que se calasse a voz poética do delírio de um Vinicius de Moraes ou de um Carlos Drummond de Andrade.

ÉPOCA – O senhor falou em delírio e esse é o tema do 18º Encontro Brasileiro do Campo Freudiano. Todo mundo delira, não apenas aqueles a quem chamam popularmente de loucos?

Gorostiza - O título do nosso próximo encontro, que introduz a frase “Clínica do delírio generalizado”, indica com precisão uma perspectiva que transcende a concepção habitual de considerar o delírio como algo reservado aos loucos ou psicóticos. Essa noção ampla de delírio, a do delírio generalizado, parte de uma premissa: todo ser humano carece, especialmente no plano da sexualidade, de um programa instintivo que lhe é inerente e que lhe permite uma relação natural com o outro sexo.

Diante desse buraco, dessa ausência, não nos resta senão a tarefa de inventar algum modo de funcionamento, além da variável da sexualidade humana, que permita essa união. Assim, todas as nossas invenções, na medida em que se instituem sobre uma referência vazia, ou seja, onde não há nenhum objeto baseado na realidade, podem ser qualificadas, generalizadas, como delírios, pois, como se sabe, um delírio se caracteriza classicamente por não ter relação com a realidade objetiva. E se todos temos que inventar algo porque somos afetados por um buraco no nosso instinto, então somos todos delirantes. Essa é a tese de Lacan sobre a qual trabalharemos. Tese que está presente de algum modo em Freud.

"Imagine o que poderia ser o mundo em que se calasse a voz poética do delírio de um Vinicius de Moraes ou de um Carlos Drummond de Andrade"

ÉPOCA – E como esse delírio pode ajudar os pacientes da psicanálise?

Gorostiza - Essa pergunta me permite precisar o que dito anteriormente. Por falarmos do delírio generalizado não podemos ignorar as diferenças que existem entre os delírios psicóticos, dos loucos, e os delírios neuróticos. Refiro-me aqui às fantasias, aos sonhos e especialmente aos sintomas dos neuróticos.

No primeiro caso, o tratamento deverá ajudar o paciente a reduzir o seu delírio na medida em que isso lhe torna difícil manter laços sociais. Mas reduzir não significa eliminar. Pelo contrário, significa dar à sua invenção, que sempre será singular, particular, o lugar adequado à sua própria existência: aquele que o permite estabelecer contato com outros, porém sem renunciar às suas características pessoais.

No segundo caso, o da pessoa neurótica, o paciente deverá se reconhecer naquilo que o faz sofrer. Evidentemente, espera-se que a psicanálise resulte na redução da sua dor, mas não por isso podemos esperar a desaparição total desse delírio. Agir assim significaria adaptar o delirante a uma suposta normalidade que, em si mesmo, é um conceito questionável.

Pelo contrário, o processo ideal é fazer que cada delirante seja capaz de transformar a sua loucura incomparável com as demais em atos particulares de criação, esse é um dos objetivos implícitos da experiência analítica.

Finalmente, o delírio de cada um, entendido dessa maneira, pode ser considerado como uma bússola formidável, um ponto de orientação para o qual o analista deve mirar e não perder de vista aquilo que compõe a singularidade mais íntima de quem o consulta.

FONTE: Galileu

http://revistaepoca.globo.com/
http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,EMI188875-15257,00.html

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