quinta-feira, novembro 11, 2010

Caçadas a Lobato

09/11/2010 - 08:54 - Atualizado em 09/11/2010 - 08:57

O criador do Sítio do Picapau Amarelo pode ser banido das escolas por racismo. Se a moda pega, toda a literatura vai para a lista – desculpe – negra

Prova da evolução da humanidade está no surgimento de leitores que oferecem visões inéditas sobre as obras literárias do passado. A partir dos anos 70, professores e militantes civis americanos começaram o movimento do politicamente correto – e passaram a perseguir obras do passado que não se coadunavam com sua visão boa sobre o mundo. Nos Estados Unidos, a primeira vítima foi Mark Twain, cujo romance juvenil As aventuras de Huckleberry Finn (1884) foi condenado ao banimento das escolas, por conter passagens racistas. Isso porque Huck, o menino branco que protagoniza as peripécias ao longo do imenso rio Mississippi, trata os negros com uma palavra, “nigger”, que hoje soa ofensiva, mas que no século XIX era termo corrente. Os acusadores de Huck desconsideraram a contextualização histórica e acharam por bem e mais confortável tirar o livro do currículo. Não um livro qualquer, mas um dos romances infanto-juvenis representativos do gênero, uma história que traz lições de fraternidade e igualdade racial. Mas a autoridade dos jovens sábios dita que isso não interessa. Twain traz conteúdo racista – e ponto final. Corte a cabeça de Huck!

No Brasil, onde a “intelligentsia” imita - para não incorrer no “macaqueia”, que almas mais sensíveis podem considerar racista - tudo o que os americanos fazem, o alvo (não confundir com “branco”) é justamente o escritor que traduziu Huckleberry Finn para o português, nos anos 30: José Bento Monteiro Lobato (1882-1948), o fundador da literatura infanto-juvenil brasileira. Lobato se inspirou no ambiente sulista e rural de Tom Sawyer e Huckleberry Finn, de Mark Twain, para criar, a partir de 1920, as histórias e os personagens do Sítio do Picapau Amarelo: Dona Benta, Tia Nastácia, Narizinho, Pedrinho, Emília, o Visconde de Sabugosa...

Naquele tempo, a sociedade brasileira ainda estava marcada por trezentos anos de escravidão, e a maneira de tratar os descendentes dos escravos hoje soa horrível, mas é preciso entender que não continha uma maldade em si. Eram formas do tempo, que hoje seriam obviamente imperdoáveis. Os livros de Lobato têm sido adotados nas escolas brasileiras desde que começaram a ser publicados, e até agora nenhum leitor havia reclamado do conteúdo das histórias. Pois agora estão querendo cassar as Caçadas de Pedrinho, romance de Lobato lançado 1924 que dá continuidade às aventuras de Narizinho e amigos. Um intelectual luminar que se autodenomina “mestrando” da Universidade de Brasília lavrou uma denúncia junto à Secretaria de Política da Promoção da Igualdade Racial. Nosso sábio acusa o livro de incitar o preconceito contra os negros. Isso porque, em algumas passagens, a cor da pele de Tia Nastácia é tratada de forma pejorativa e até ridicularizada, como o trecho mencionado na brilhante reportagem de Celso Masson, Humberto Maia Junior e Rodrigo Turrer em Época: “Tia Nastácia trepou na árvore que nem macaca de carvão” ou a frase de Dona Benta: “Não vai escapar ninguém – nem Tia Nastácia, que tem carne preta.”

Convenhamos os parágrafos soam abjetos, se descolados do contexto. E aí reside o problema. Tais sequências deveriam ser colocadas em perspectiva com notas de rodapé e atividades de leitura. A questão poderia ser discutida em sala de aula. O professor poderia explicar aos alunos que, nos anos 1920, os afrodescendentes eram tratados desse modo, vício histórico de uma sociedade escravocrata que ainda mantinha os privilégios das oligarquias na República Velha, antes da industrialização e da conscientização da população brasileira em relação aos seus direitos fundamentais. O professor poderia continuar, afirmando que é preciso entender que esse tipo de emprego pejorativo não tira a mensagem humanista e progressista de Monteiro Lobato, ou Mark Twain, ambos ativos na luta contra a opressão dos descendentes de africanos que amargaram a escravidão e suas consequências deletérias para o imaginário social. Não por outro motivo, Lobato traduziu Twain. É inacreditável que Twain tenha sido retirado da estante básica do estudante americano, como me parece uma afronta à inteligência das crianças censurar Monteiro Lobato.

Será que vamos começar a assistir à caça retroativa às bruxas? Não vou ficar parado na praça pública aplaudindo o linchamento público de autores fundamentais na formação do humanismo. Os novos intelectuais praticam sem saber um ato imbecil, porque não só não sabem ler, como não fazem questão disso. São preguiçosos. Desejam a fama instantânea da controvérsia pueril. Tomar como ofensa o que foi escrito sem intenção de ferir, descontextualizar para polemizar, eis os recursos surrados da retórica mais primitiva. A atitude malpensada ajuda apenas a desmoralizar a agenda igualitária fomentada pelo governo e pelas ONGs. Atacar um inocente bem-intencionado e ainda por cima morto e sem condições de se defender é ultrajante. Promover uma caçada a Lobato significa desmoralizar o que a literatura brasileira tem de mais característica. Logo Monteiro Lobato, o polemista incontinente, homem que não fugia ao debate de ideias. Ele denunciou as injustiças nas comunidades rurais cometidas contra os ex-escravos, ele desmascarou os privilégios das oligarquias e atacou a Semana de Arte Moderna de 1922 como um revolucionário antielitista.

Assim, denominar esse autor de “racista” é estender a sentença à literatura brasileira como um todo, infantil e adulta. Se a moda pega, não sei o que será de nossos mestres do passado. Antevejo uma plêiade de mestrandos a brandir tacapes e lanças contra as peças de José de Alencar, como a comédia O demônio familiar (1857). Ali, o escravo Pedro justifica seu mau-humor diante da sinhazinha Carlotinha: “

“CARLOTINHA - Por quê? Por causa de Henriqueta?

PEDRO - Sim. Pedro fez história de negro, enganou senhor. Mas hoje mesmo tudo fica direito.”

Não escaparão alguns contos de Machado de Assis, um afrodescendente que, para muitos, gostava de se disfarçar de europeu. Vislumbro um comando de caça a livros incorretos como O mulato (1881), de Aluísio Azevedo – que, em seu tempo, foi abolicionista. Seu livro O cortiço (1890) será banido, porque personagens como a mulher do português João Romão, a negra Bertoleza, é descrita assim: “crioula trintona, escrava de um velho cego residente em Juiz de Fora e amigada com um português”. Os jovens mestrandos caçadores podem sugerir uma pequena alteração na sentença de Azevedo para que o livro continue a ser aplicado nos vestibulares: “Bertoleza, afrodescendente de seus trinta anos, escrava oprimida de um deficiente visual de terceira idade residente em Juiz de Fora e companheira de um cidadão de origem portuguesa”. Não quero nem pensar no que esses professores podem fazer com o romance naturalista O bom-crioulo (1895), de Adolfo Caminha; em termos politicamente corretos, poderíamos resumi-lo assim: conta a história de Amaro, um “afrodescendente” homossexual que sofre perseguição (bullying) na Marinha Brasileira. Não me espantaria se nossos heroicos guerreiros do Correto investirem contra o romance inacabado de Lima Barreto, Clara dos Anjos (1922). O livro por si só é um libelo contra o racismo, mas contém trechos como esse, sobre o abuso que Clara, jovem trabalhadora “afrodescendente”, sofre do “eurodescendente” Cassi: “Agora, é que percebia quem era o tal Cassi. O que os outros diziam dele era a pura verdade. A inocência dela, a sua simplicidade de vida, a sua boa fé, e o seu ardor juvenil tinham-na completamente cegado. Era mesmo o que diziam... Por que a escolhera? Porque era pobre e, além de pobre, mulata.”

Na música popular nem se fala: “Nega fulô”, de Dorival Caymmi, “Negra do cabelo duro”, de David Nasser, “Mulato bamba”, de Noel Rosa, “Negro Dito”, de Itamar Assumpção. Lista infinita.

No que concerne à cultura brasileira, não vai sobrar nada, e assim é mais fácil. No lugar dessas obras que devem ser eliminadas, nada melhor que colocar outras peças literárias, com vocabulário adequado e atitude inofensiva. Como ironizou um pensador em ÉPOCA, só falta transformarem a Emília em uma espécie de Barbie. Clara dos Anjos em uma boneca inofensiva afrodescendente para o público afrodescendente. Não acredito que esta possa ser a nova índole brasileira. A discussão de raça é ela própria racista. Nossa sociedade plural, de mistura étnica, com seu criptorracismo envergonhado, parece estar bem mais avançada que a de outros lugares, como os Estados Unidos, onde o debate racista persiste. Meu temor é que esses educadores da nova geração tentem converter o país em um campo de batalha cultural, dividir a sociedade, infundir o rancor, criar listas... negras (desculpe o termo, caso alguém o considere incorreto). É preciso colocar o assunto em discussão imediatamente. E defender, perdoe-me mais uma vez, brancos de alma negra como Monteiro Lobato.

(Luís Antônio Giron escreve às terças-feiras)

FONTE: http://revistaepoca.globo.com/
em: http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,EMI186138-15230,00.html

FOTO: commons.wikimedia.org

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