sábado, outubro 09, 2010

Mann e a alegoria assombrosa

Crédito: http://ebooksgratis.com.br/
[04-10-2010]
Luís Carmelo


Uma alegoria só pode ser uma alegoria se não denunciar os seus propósitos e conseguir desaguar, de um modo tão natural quanto inocente, em várias leituras que se tornem óbvias. Ou seja: ao ler o que estou a ler, estou sempre a ler outra coisa, o que tem sempre o seu quê de risível e paródico, ainda que o alegorizado seja terrível. Thomas Mann, numa incursão literária em Torre di Venere, praia situada nos arredores de Portoclemente (“…um dos mais apreciados locais de veraneio da costa do Mar Tirreno”), levou a cabo, em pleno 1930 – Musolini reinava em Itália e na Alemanha o terror congeminava o seu ascendente – uma alegoria quase perfeita. O texto ficou para a história com o título Mário e Mágico* e tem sido intensamente traduzido e transposto para os palcos.

A narrativa inicia-se com a chegada de uma família alemã à praia que, ao fim de pouco tempo, é obrigada a mudar de hotel. O facto apenas serve para criar um ambiente, uma atmosfera, uma simbiose local. Há sempre um olhar exterior que vê na “meridionalidade” algo de ruidoso e excessivo. A descrição da praia fala por si: “Um formigueiro de banhistas clamorosos, barulhentos e eufóricos a quem um sol raivosamente escaldante arranca a pele: barcos de funo chato, pintados de cores garridas, tripulados por crianças, cujos nomes sonantes expelidos por mães zelosas enchem os ares em rouca apreensão, baloiçam sobre o azul reluzente, vendedores ambulantes de ostras, refrescos, flores, adornos de coral e cornetti al burro apregoam a sua mercadoria com uma voz meridional monocórdica marcada e aberta, passando por cima dos membros das pessoas estendidas na areia”.

Mas o fundamental centra-se no espectáculo que dominava a estância balnear, cujo apresentador hipnotizava os assistentes e fazia deles o que muito bem entendia. A alegoria respirará aí, nesse curso longo da novela em que Cavaliere Cipolla – é esse o seu nome – se transforma num verdadeiro deus grotesco que manipula, com violência crescente, a assembleia que ainda por cima aplaude. O narrador descreve assim Cipolla: “...era um virtuoso ambulante, um animador e espectáculo, forzatore, illusionista e prestidigitatore” conhecido pelos “fenómenos extraordinários duma arte secreta e assombrosa. Um mestre de magia! O anúncio bastava por si só para pôr os nossos pequenos em alvoroço”.

Numa das noites de férias, a família foi então ver o corcunda de que tanto se falava, considerado pelo narrador como “o hipnotizador com maiores poderes que eu vira em toda a minha vida”. O Cavaliere apresentava-se ao público numa “construção tipo salão que durante a época alta servira para sessões de cinema”. De início, as ilusões foram ténues, mas, a partir de certa altura, foram-se tornando agressivas. Um voluntário “ficou mergulhado em sono profundo com a nuca e os pés apoiados nos espaldares e duas cadeiras…” e “…ainda aguentou Cipolla sentado em cima da sua barriga…”. Depois, uma senhora de idade – Srª Angioleri – que se deixara dormir foi humilhada diante do marido. Por fim, Cipolla reduziu a nada um dos criados do hotel – tendo revelado em público todos os seus fantasmas amorosos –, onde a família do protagonista se encontrava instalada. Ao acordar, o pacato homem, de seu nome Mário, não resistiu e agrediu violentamente o hipnotizador. Tinha ido longe demais:

“Cipolla levantou-se dum salto da cadeira. Sem sair do sítio estendeu os braços em posição de defesa como se quisesse gritar “Parem! Silêncio! Que ninguém se aproxime de mim! O que se passa aqui!”, abateu-se logo de seguida para trás na cadeira com a cabeça a balançar sobre o peito e, no instante seguinte, tombou para o lado desabando no chão one ficou estendido, inerte, transformadonuma revolta trouxa de roupa e de ossos disformes”. O pânico gera-se e, e nesta quase autodiegese que relata os episódios com intimidade e proximidade, o narrador acaba por confessar-se: “Pegámos nas crianças (…) e arrastámo-las para a saída, cruzando-nos ainda com os dois carabineiros que vinham de entrar. “Foi mesmo o fim?” quiseram certificar-se… “Sim, foi o fim”, confirmámos-lhes.”.

Nas últimas linhas da narrativa, há uma sequência muito interessante porque foca uma circunstância que, no nosso tempo, é comum a toda a sociedade e que, nesta história, apenas decorre da leitura que as crianças terão feito dos factos, já cansadas e a más horas, ou seja: a ambiguidade de uma situação que não se sabe bem se é espectáculo ou não, se é ficção ou realidade. Leia-se o excerto de Mann: “Graças a deus, que elas…” – as crianças – “…não perceberam onde acabava o espectáculo e começava a catástrofe, tendo permanecido na ilusão feliz de que tudo não passava de mera representação…”. O texto traduz bem o espírito da época, levando, com toda a naturalidade, o leitor a desaguar em segundas e em terceiras leituras. Uma encenação literária soberba, reconheçamo-lo.

*Edição recente: Thomas Mann, Mário e o Mágico, Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1999 (tradução: Ana Maria Carvalho).

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