domingo, abril 26, 2009

A vida que resulta de um jogo de palavras


A vida que resulta de um jogo de palavras
Décio Pignatari, escritor e ensaísta; Bili com Limão Verde na Mão explora as múltiplas possibilidades do ato de narrar

Francisco Quinteiro Pires

Apesar de correr o risco do insucesso, Décio Pignatari não quer contar histórias. Ele prefere explorar as possibilidades da escritura. Não é adepto de preencher as lacunas do relato. A imaginação do leitor que o faça a partir do jogo com as palavras. Essa é a ideia de Bili com Limão Verde na Mão (Cosac Naify, 80 págs., R$ 45), livro classificado como infanto-juvenil e primeira publicação de narrativa ficcional de maior fôlego do escritor paulista desde Panteros (1992).

Bili... é a história de Belisa, uma menina de 13 anos, e sua passagem para a adolescência em um universo de elementos urbanos e rurais. Começou a ser escrito nos anos 50, quando Décio integrou o grupo dos concretistas com Haroldo e Augusto de Campos. "Demoro muito para fazer tudo", diz Pignatari, de 81 anos, que até hoje não usa computador. Bili com Limão Verde na Mão tem influência do romance picaresco espanhol, do concretismo, de Lewis Carroll, de James Joyce, de Oswald de Andrade. Leia a seguir os principais trechos da entrevista.

É mesmo um livro para crianças?

É uma história infantil para adultos. Quis fazer diferente, um conto em que acontecem coisas reais e oníricas. É sobre a passagem para adolescência de uma menina, durante uma viagem. Ela mora entre a cidade e o campo. Escrevi quando vivia num sítio. Esse conhecimento do mundo rural me ajudou a localizar a Bili. É sempre um percurso simbólico, e não interessa se é verdadeiro ou real. Se fosse com um menino, ele estaria ligado a feitos de aventura. Com a menina é diferente, ela quer mais é integrar-se às coisas do que fazer parte de mil peripécias.

Podemos dizer que é a odisseia de uma menina que descobre o absurdo da vida e a sua falta de controle sobre os fatos e sobre si mesma?

Sim. As coisas vão pulando na frente dela, é tudo surpresa. Bili vive entre o real e o arreal, aquilo que não parece muito lógico, como disse Albert Camus. Ela faz uma odisseia, que é uma coisa clássica e simboliza também o (des)encaminhamento da própria vida. O rito da passagem ocorre até hormonalmente com a Bili. Não estava interessado em criar um tipo, como fez Monteiro Lobato, mas em falar dessa viagem da infância para a puberdade.

Há 10 anos, o senhor disse que a prosa é uma coisa infernal, de um sofrimento brutal, enquanto a poesia é coisa divina. Mudou de opinião?

Mudei de lado. A poesia é sempre síntese. A cabeça do poeta está voltada para a fisicalidade da palavra. Qualquer poeta a sente em suas diversas dimensões, da visual à musical. O contato com a fisicalidade está até na poesia estruturada em prosa. É o caso de Finnegans Wake, do James Joyce. Meu mestre em matéria de poesia e prosa é o Oswald de Andrade. Me admiram a síntese da história, o modo de ir direto ao assunto, de ser econômico, de criar algo inesperado, de ficar entre o real e o arreal. Quando vou para a prosa hoje, é o céu. Não tenho que sofrer. Mas é difícil fazer prosa sem contar uma história. Ela exige um enredo. Eu não quero só contar a história. Não concordo com os escritores brasileiros que dizem que fazer um livro é contar uma história. Isso é bobagem. O ponto crucial da prosa moderna é o Ulisses, do Joyce, que simplesmente não tem história nenhuma. Quem não conta história no Brasil não tem êxito. Prefiro descrever as possibilidades de uma história a descrever a história. Precisamos deixar os espaços de narrativa para o leitor. Ele que imagine!

Por que quem não conta história no Brasil não tem sucesso?

Não temos nível para apreciar a escritura. A história da literatura brasileira é uma lástima. Não mostra que não houve uma literatura urbana no Brasil na época de Vargas. José Lins do Rego e outros usavam apenas o realismo literário europeu aplicado a um ambiente rural. O próprio Mário de Andrade escreveu Macunaíma, um romance pré-industrial. O Brasil não tinha tradição do romance urbano. Por isso ninguém entendia Oswald de Andrade. O grande romance do modernismo é Memórias Sentimentais de João Miramar. João Miramar tem a técnica cubista aplicada na prosa. É um simultaneísmo que ninguém entende. João Guimarães Rosa tinha até um pouco mais de consciência de linguagem.

Mas quem estudou a sério os maneirismos do Rosa, que misturou Joyce com a linguagem caipira?

E o problema da incoerência narrativa no romance, que já existe no Dom Quixote, do Cervantes? De vez em quando, fazem simpósios para saber se a Capitu traiu ou não o Bentinho! As pessoas se ligam aos psicologismos, porque nosso nível de leitura é muito pobre.

O senhor foi professor universitário durante muitos anos. Qual o problema com os cursos de letras?

Os cursos não ensinam a fazer análises nem comparações. Eles são burocráticos e nacionalistas. Só estudam a literatura santificada, que você tem de engolir de modo acrítico. Em geral, os professores não entendem outras artes, como cinema, design, fotografia, pintura, etc. Quando eu era professor no interior de São Paulo, não deixaram que lecionasse modernismo, tinha de ficar no José de Alencar. As ciências humanas na universidade não avançam.

Os poetas concretos sugeriram, no lugar do discurso lógico, uma sintaxe analógica e ideogramática. Tentavam quebrar as fronteiras verbais e não-verbais. O que aparece do projeto concretista em Bili com Limão Verde na Mão?

Esse projeto aparece em parte, pois há um design tipográfico especial e a eliminação da pontuação no livro. Guillaume Apollinaire foi o primeiro a escrever poema sem pontuação, tornando-o simultâneo. Essa ideia conduziu o começo de Bili..., que não tem vírgulas. Você vê a multiplicidade de coisas ao mesmo tempo, e não uma após a outra. O discurso ocidental favorece a lógica. A frase tem um princípio de organização feito para conduzir o pensamento com uma finalidade. A poesia no Ocidente é essa contradição. Ela tem um discurso lógico aparente e um analógico subversivo por baixo das palavras. Usei tudo isso em Bili...

O olhar que a menina Bili lança ao mundo carrega o desejo de capturar essa multiplicidade?

Isso é até natural da psicologia feminina. Bili recebe, ao mesmo tempo, muitas coisas do mundo e quer se integrar a elas. Não quer orientar nem dizer o que as coisas devem ser, mas impregnar-se das coisas e impregná-las. Por isso ela se abre para tudo. O fim é importantíssimo, que é o grito final dela para o avião que passa. "Leva eu!", que rompe com a gramática. Para explicar esse mundo aberto, tive de brincar e jogar com as palavras.

OPOSIÇÃO: "Não concordo com os escritores brasileiros que dizem que fazer um livro é contar uma história"

AMADURECIMENTO: "Não interessava criar um tipo, mas falar da passagem para a adolescência de uma menina"

IMPASSE: "Quando vou para a prosa, é o céu. Não tenho que sofrer. Mas é difícil fazer prosa sem um enredo"
FONTE: Estadão - São Paulo,SP,Brazil
FOTO: http://bravonline.abril.com.br/
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