O HOMEM QUE FEZ CHEGAR A LÍNGUA PORTUGUESA À NORUEGA
MARCOS CRUZ
José Aurélio Rodrigues. Não fosse ele e o terceiro milénio teria arrancado sem um dicionário de Português-Norueguês. Estranhos um ao outro, os dois países, entre os quais oscila a vida deste editor luso nascido em Angola, estão mais próximos. Segue-se uma gramática. E, pelo meio, a Noruega já lê clássicos como Camilo ou Eça de Queiroz
Foi ordenado Comendador por Jorge Sampaio
Do Huambo, então ainda Nova Lisboa, para Oslo, com escala, e escola, em Lisboa, a velha Lisboa. Eis o itinerário resumido da viagem da vida de José Aurélio Rodrigues até há uns anos, quando decidiu fixar meia residência no Porto. A outra meia ficou em Orje, a poucos quilómetros da capital norueguesa. Fazia assim a sua ponte entre dois países que, conhecidos pelo bacalhau, nunca deram efectivamente um bacalhau (aperto de mãos) em matéria linguística. Estando nós no Natal, época dele, não deixa de ser interessante a coincidência de falar do homem que, ao editar o primeiro dicionário de Português-Norueguês no país dos fiordes, abriu uma nova autoestrada a ligar o Norte e o Sul da Europa. ]
"Já têm ido alguns dos nossos alunos trabalhar para lá", revela, antecipando outra valência da empresa que abriu, há 10 anos, com o propósito de editar livros sobre Portugal na Noruega. A Folium Forlag, hoje também representada no Porto, dá cursos de norueguês. 30 horas distribuídas por cinco semanas. E os frutos estão à vista. "Um engenheiro geógrafo, mal acabou o curso, teve um convite do Instituto Cartográfico da Noruega, para onde foi ganhar 4 mil euros. E, numa destas feiras do emprego, um psicólogo clínico e a mulher, enfermeira, decidiram a vida em meia hora. Vão para lá com o filho. Boa parte dos que aprenderam connosco estão empregados", informa.
O mais curioso de tudo isto é o facto de a actividade de José Aurélio, que, após concluir o curso de Línguas e Literaturas Modernas na Faculdade de Letras de Lisboa, foi contratado pela Universidade de Oslo para dar aulas de literatura portuguesa e brasileira, ter sido potenciada por algo que, noutras circunstâncias ou com outra pessoa, talvez levasse ao contrário: o corte pela raiz. "Não me enquadrei bem no sistema de ensino deles, é um meio um bocado corrupto", explica o editor português, vítima de "uma certa máfia, responsável por episódios negativos de apadrinhamento e bloqueio", neste último caso "aos de fora, sobretudo".
Para ele, não é só coincidência o facto de a última aula dada na faculdade ter a data da edição do dicionário: "Já confirmei isso. Havia pessoas que também queriam promover os seus trabalhos. E o único dicionário então existente era de Norueguês-Português, feito pela pessoa que regia lá a cadeira de linguística, um norueguês."
Males que vêm por bem, está visto. Ensaiado, antes, o projecto editorial com a tradução para a língua nórdica do romance Amor de Perdição (Fortapt Kjaerlighet), de Camilo Castelo Branco, e a publicação do roteiro da viagem de Vasco da Gama à Índia, o dicionário (já observando o acordo ortográfico) viraria o milénio e a vida de José Aurélio. Seguiram-se outros dicionários (bilingues, de bolso, edições actualizadas, etc.), livros turísticos e, pelo meio, obras de clássicos da literatura portuguesa, como Eça de Queiroz ou Mário de Sá Carneiro.
"Quando estamos fora, o patriotismo exacerba-se. Eu investiguei muito sobre Portugal mas, em termos literários, não havia lá nada. Fiz eu. Escusado será dizer que não deu dinhei- ro, mas vale sempre a pena", diz.
O dicionário, pelo contrário, "teve boa adesão". Só nele foram quatro anos de trabalho, ao ritmo de 15 horas diárias. Uma tarefa hercúlea após a qual não veio propriamente descanso. "Várias pessoas me perguntaram: 'Então e a gramática de Português?' Tive de fazer o projecto. Apresentei-o ao Ministério da Cultura da Noruega e foi-me atribuído o patrocínio", conta José Aurélio, que já não deverá demorar muito a concluir a obra.
Outra obra, mais ampla, que era a da expansão da língua portuguesa aos países nórdicos, "poderia e deveria ser feita", defende, não fosse "o desinteresse demonstrado pelo Instituto Camões", ao contrário, por exemplo, do Instituto Cervantes, de Espanha, que tem "trabalhado muito" em prol do ensino do castelhano, "hoje a segunda língua estrangeira mais estudada na Noruega". Para lá dos benefícios sociais e culturais, lembre-se que não faltam interesses económicos envolvendo países de expressão portuguesa, nomeadamente Angola e o Brasil.
Um episódio anedótico revelador da distância afectiva entre Portugal e a Noruega deu-se aquando de uma visita presidencial de Jorge Sampaio. O discurso do Príncipe Regente, que ali se apresentou em representação do Rei Harald V, foi traduzido para português pela Folium Forlag. "Ele disse que Portugal era um país mediterrânico, mas a gaffe não ficou registada porque o tradutor o salvou", graceja José Aurélio Rodrigues, então agraciado com a Comenda da Ordem do Mérito, em reconhecimento do seu trabalho de divulgação da língua e da literatura portuguesas na Noruega.
Há quase tudo, ainda, por fazer do ponto de vista da aproximação, e este pequeno mas voluntarioso embaixador, que já indicou o caminho, disponibiliza-se a levar adiante o seu contributo, embora confesse a dificuldade de, sem apoio, manter a motivação. Saibamos pôr os olhos nele - e, já agora, como o próprio alerta, na animadora realidade de a Noruega ter hoje "cerca de 50 mil postos de trabalho" à espera de candidatos.
FONTE: Diário de Notícias - Lisboa - Portugal
FOTO: catedral.weblog.com.pt
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