terça-feira, agosto 05, 2008

A odisséia do anti-herói


A odisséia do anti-herói
Antonio Gonçalves Filho

Uma das características marcantes de Macunaíma é seu aspecto paródico, que o poeta e crítico Haroldo da Campos definiu como de "linhagem rabelaisiana". Evocar Rabelais, no caso de Macunaíma, o herói sem nenhum caráter, que acaba de completar 80 anos, é pertinente não só pela presença de gigantes na rapsódia do modernista Mário de Andrade. O humor escatológico de Rabelais, o pai renascentista de Gargântua e Pantagruel, nasceu igualmente de lendas populares e da leitura satírica das tradições religiosas.

Se Rabelais teve como meta apagar as trevas da superstição medieval, elegendo gigantes no lugar de deuses, o modernismo de Macunaíma assumiu como missão livrar o brasileiro do mofo acadêmico, banhando-o nas águas da modernidade literária. Mário não desprezou nem o folclore indígena nem o africano, nem a língua erudita nem a popular. Macunaíma provocou uma revolução literária que virou o Brasil de ponta-cabeça, ao eleger como protagonista um personagem com três raças, mistura de índio, africano e europeu.

A fúria modernista de Mário de Andrade que se voltou contra o falso espírito de integração dos anos 1920 - isso numa época de crise moral, social e política - desaba na criação de um protótipo fabular, que nasce numa tribo amazônica e se revela, logo criança, um mentiroso da pior espécie. "Ai, que preguiça!" é o mote de Macunaíma, que cresce, se apaixona e casa com a índia Ci, tendo com ela um filho morto. Morta também a "Mãe do Mato" e perdendo o amuleto que dela ganhou para um mascate peruano, Macunaíma parte com seus irmãos para a cidade grande, São Paulo, atrás da "muiraquitã" presenteada por Ci.

Para recuperar a pedra, no entanto, o herói tem de enfrentar o gigante Piamã, comedor de gente. Resgatado o amuleto, Macunaíma volta para sua tribo e o perde novamente ao se envolver com uma uirá traiçoeira. O que fazer sem o talismã de Ci? Nada. A derrota do colonizado já estava selada. Inútil continuar a busca. Macunaíma transforma-se na Ursa Maior, constelação formada por Zeus, segundo a mitologia grega, para afastar Calisto de Arcas, seu filho caçador. A odisséia de Macunaíma tem dois momentos distintos: no primeiro, o herói sem caráter desce com os irmãos o Rio Araguaia para chegar a São Paulo, onde sua história cresce e se transforma num alegórico e satírico embate entre o pobre-diabo amazônico e o gigante da metrópole, Venceslau Pietro Pietra. Nesse segundo momento, em que mata e resgata o cobiçado amuleto das mãos do gigante, Macunaíma teria, enfim, um possível final feliz, não fosse a conflituosa relação com a deusa Vei, que domina o Sol e expõe o herói a um calor insuportável, esgotando suas forças e atiçando sua sensualidade. Esquentados os miolos e o ventre, a razão vai para o espaço, perdendo-se a esperança de uma aliança solar entre Macunaíma e Vei.

A todo momento, Mário insiste na idéia da descentralização da cultura, ao adotar o cruzamento de várias sintaxes - a do Nordeste com a do Sul do País -, e valorizar tanto a prosa erudita como a linguagem das ruas. Ele tampouco esquece de provocar os puristas (no episódio da Carta pras Icamiabas) com a ruptura lingüística de sua rapsódia que tem muito de Nietzsche, ao eleger um herói muito além do bem e do mal.

FONTE: Estadão - São Paulo,SP,Brazil

Nenhum comentário:

Postar um comentário