segunda-feira, maio 05, 2008

Os artifícios do escritor


RESENHA
Os artifícios do escritor
Rainha dos Cárceres da Grécia (1976) é o último romance do escritor pernambucano Osman Lins. Nela, Lins engendra uma estrutura narrativa autogáfica questionadora do próprio ato de escrever

O livro de Osman Lins é vertiginoso. Publicado em 1976 e reeditado pela Companhia das Letras, a obra é uma leitura que lhe draga - em progressão geométrica depois de algumas páginas. O romance é o último do escritor pernambucano (1924-1978), seguindo as inovações estilísticas de obras anteriores como Nove, novena (1966) e Avolovara (1973) - uma escrita crítica e autoconsciente em que estética e política não se desvencilham.

Em A Rainha dos Cárceres da Grécia, as primeiras letras são: "26 de abril de 1974", e começa-se a acompanhar o diário de um professor decidido ir às vias de fato, dissecar, os sentidos dos manuscritos do romance inédito de Julia Marquezim Enone, sua amante recém-falecida.

Já no início menciona a intenção do diário: "Quero um ensaio onde, abdicando da imunidade ao tempo, e, em conseqüência, da imunidade à surpresa e à hesitação, eu estabeleça com o leitor - ou cúmplice - um convívio mais leal. Que outra opção, neste caso, impõe-se mais naturalmente que o diário. Assim, dia a dia seguireis o progresso e as curvas das interrogações que me ocorram."

A intenção estilística e ética é a de um texto ensaístico que tente apreender a realidade, mas não apartando o sujeito, pelo contrário, integrado suas vivências nesse emaranhado de pontos a se ligarem. A intenção se contradiz com o tom distanciado e acadêmico da análise, incluindo formalmente, vez ou outra, questões pessoais que o narrador considera importantes para a compreensão do texto, que existe em função doutro, a obra objeto de estudo.

O narrador segue numa análise acadêmica do romance de Júlia, como faz questão de grafar por completo várias vezes o nome de sua amante e objeto de estudo. Segue acumulando referências bibliográficas das mais diferentes áreas como a teoria literária, antropologia, lingüística, história e, claro, de outros diversos romancistas que se encarrilham em profusão.

Notas de roda-pé ao longo das páginas ganham cada vez mais precisão: editora, ano de publicação e números de páginas. O professor tenta dissecar os sentidos sob a narrativa cheia de caminhos e descaminhos de sua autora, buscando descamar o livro, aprofundando até o ponto em que veja o todo coerente literário intencionado pela autora - o romance, obra de arte, que condensa um cosmos em si.

A história de Maria de França - menina em busca de uma pensão por invalidez nos labirintos do INPS, protagonista do romance estudado - é reescrita ou entra em citações diretas, recriando o texto movediço de Júlia, que constrói uma trama em que tempo e espaço se diluem em referências contraditórias e personagens construídos também a partir de intertextualidade profunda e a ser desvendada - quase uma revelação para o narrador, percebe-se ainda cedo.

Ele, no aprofundamento dos questionamentos e na revelação de certas clarezas semânticas do livro, vai sendo consumido pelo próprio ato de leitura e escrita, como o próprio livro que vai comendo seu próprio rabo. A obra de Júlia desaguando no diário, que ao mesmo tempo deságua, arromba, a ficção de Osman Lins, em questionamentos que abalam o alicerce da criação literária. Mas o narrador está nas rédeas, faz questão de afirmar, conversando com o leitor, fazendo malabarismo com os pensamentos de vidro da gente, vulneráveis na sua também busca pelo desvendar de uma obra e mais tudo.

SERVIÇO: A Rainha dos Cárceres da Grécia (1976), de Osman Lins.
Companhia das Letras, 231 páginas, R$ 43.

FONTE (photo include):O POVO Online - CE,Brazil

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