domingo, maio 25, 2008

Comparativismo enquanto traço de aproximação cultural

Comparativismo enquanto traço de aproximação cultural
António Quino
Quando
Jacques Derrida (1930/2004) afirmou que a literatura é talvez algo mais interessante que o próprio mundo, seguramente não pretendia subalternizar o mundo tal como o concebemos, embora estivesse a fazê-lo comparativamente à literatura. Mas não esqueçamos que o ideólogo da Teoria das Organizações colocou aí um talvez, abrindo uma possibilidade aos leitores de que o mundo dos homens não se encerra com o real – o palpável –, pois há uma infinidade de mundos possíveis, que a literatura tira da abstracção. Aliás, Derrida chegou a afirmar, lembrando-se aqui o platonismo da liberdade, que a literatura é uma instituição onde se pode dizer tudo sobre qualquer coisa.
Ao afirmar que escrever é abalar o sentido do mundo, Roland Barthes (1915-1980) estava a colocar, sem querer, um alicerce numa outra frase de Jacques Derrida, segundo a qual a linguagem cria-se e, com ela, criam-se mundos. Aliás, e como já vimos, Derrida procurou defender que a literatura cria novos contextos, que permitem novas leituras.
Até mesmo o seu tornado célebre conceito da desconstrução trouxe consigo parte desse princípio filosófico. Nele, a leitura crítica servia fundamentalmente para descobrir fragmentos do texto escondidos no próprio texto, permitindo-se, com isso, revelar partes dum mundo dissimulado na obra literária. A experiência pessoal do leitor e o contexto surgem também como prioritários na busca da transparência nas partes opacas do texto.
Com tais atestações, Derrida colocava a literatura num lugar de destaque no conjunto de elementos determinantes na construção da personalidade dos homens e das sociedades mundiais. Tal como também se verifica com as estruturas do mundo real, as estruturas literárias não são um agrupamento de ilhas. Aliás, tanto os estruturalistas como os pós-estruturalistas estão de acordo de que no mundo da literatura tudo está relacionado. Sobre isso, o antropólogo Claude Lévi-Strauss (1908) defende que, no “fazer literário”, haverá sempre uma estrutura base, de carácter binário, que sustenta as outras estruturas, pois, ajunta, o estruturalismo é uma procura por harmonias inovadoras.
Ainda na mesma senda, asserções levantadas por Roger Bastide (1898-1974) colocam a possibilidade de a literatura não pairar no vazio, pois é feita por homens que estão ligados entre si por estruturas sociais determinadas.
Posicionamentos como esses levaram Roland Barthes (1915-1980) a afirmar que o escritor é um bricoleur que, na concepção de Lévi Strauss, seria o utilizar, na criação de objectos desejados, resíduos e fragmentos de acontecimentos passados, da história de um indivíduo ou de uma sociedade. Essa imagem do indivíduo que executa uma operação recorrendo à retalhos para remendar outras ou fazer objectos com pedaços de outros objectos, trazida à arte, eleva o carácter universalista da literatura e abre um vasto campo teórico favorável ao comparativismo literário.
Para Roger Bastide, toda a obra tem vários, senão infinitos, traços, tanto das características dos personagens quanto das situações; tem pedaços de outras obras e aparecem de formas distintas, com a mesma base.
Na sua análise, Roger Bastide particularizou a literatura enquanto instituição formada por um conjunto de estruturas presente numa ou em distintas obras que estabelecem entre si relações binárias.
O mesmo autor apoia-se em Lévi-Strauss para afirmar que uma maneira de se interpretar a obra seria através da compreensão do plano da sua estruturação literária, partindo da fragmentação do texto até chegarmos à sua base mínima.
Assim, a linguagem presente na textualidade ganha sentido quando o leitor a descodifica, interpretando-a, a tal exegese que Paul Ricoeur (1913-2005) chama de exercício da suspeita. A linguagem, o sentido e a interpretação constituem uma trilogia no processo comunicativo do ser humano. A literatura é uma instituição suprema do espírito humano e depende, essencialmente, dessa trilogia, não só para interpretar o mundo, mas também para se hetero-intepretar. Ao falar-se da interpretação, um aspecto que também se deve ter em conta é o da estética da recepção. A concepção de leitor implícito desenvolvido por Wolfgang Iser (1926) e operado por Hans Robert Jauss (1921-1997) representa uma conquista importante no processo de interpretação e, como é lógico, para a estética da recepção. Ela parte da noção de concretização, que se traduz em duas vertentes: a do horizonte implícito de expectativas lançada pela obra (carácter intraliterário) e a da recepção de cunho extra literário, condicionada pelo leitor que colabora com as suas experiências pessoais para fornecer vitalidade à obra e manter com ela uma relação dialógica.
Assim, Iser vai acentuar um dos pontos teóricos básicos da estética da recepção, salientando que a obra literária é comunicativa desde a sua estrutura, pois necessita do leitor para a constituição do seu sentido. Como refere Umberto Eco (1932), um texto é feito para que o leitor o renove, embora não se crie expectativas que esse leitor exista empiricamente.
Já Hans Robert Jauss concebe a recepção em obediência a um princípio, que se apresenta num intercâmbio entre três etapas, respectivamente a da compreensão, a da interpretação e a da aplicação. Desse modo, Jauss crê que o processo interpretativo ocorre quando se concebe o texto literário enquanto resposta, tanto no aspecto formal, quanto nas questões de sentido. Ainda na estética da recepção, a interpretação de um texto literário, apesar de estar apoiada na linguagem, ultrapassa o mundo linguístico, pois leva em conta a experiência do leitor para a compreensão dos símbolos presentes na obra e, assim, descodificar a mensagem. Em verdade, é a partir das figuras de linguagem (metáforas, metonímias, pleonasmos, hipérbatos, antífrase, eufemismo, alusão, preterição, anáfora, etc.), das figuras de pensamento (semântica) expressas no texto, das suas funções e do próprio fenómeno literário que se pode compreender a situação vital presente na obra.
E isso acontece porque a existência humana serve-se da linguagem para expressar a sua experiência, o seu pensamento e a concepção que tem de si mesma e do mundo. Esta é uma das razoes pela qual os pós-estruturalistas se preocupam com a experiência pessoal do autor.O intérprete de um texto quase sempre condiciona a sua leitura a uma pré-compreensão que emerge da sua própria experiência. Portanto, a interpretação deve ser vista, antes de mais, como um acto de actualização, influenciada ou afectada pelo contexto do leitor. Por sua vez, essa interpretação impressionará e transformará esse mesmo contexto.
Pode-se considerar que a relação entre as estruturas presente num ou vários textos literários podem apresentar-se como numa relação binária, cujos elementos se aduzem como pares combinados.Ao chegarmos aqui, facilmente estaríamos em condições de afirmar que as estruturas literárias, contempladas no ponto de vista do comparativismo literário como aproximações binárias, constituem uma espécie de congregação literária. Daí ser possível buscar semelhanças e diferenças nas estruturas poéticas das obras dos poetas Agostinho Neto (1922-1979) e António Nobre (1867-1900), dois poetas separados no tempo, no contexto e até mesmo na ideologia artística. Porém, ambos ansiavam por um mundo sem opressão, o tal platonismo da liberdade que sustenta os seus respectivos factos literários.
Um dos elementos frequentemente tacteados quando os teóricos se debruçam sobre axiomas ligados à literatura comparada são os factos literários, que estão na base do “fazer” literário.
Se percebermos o facto literário enquanto motivação das emoções, traduzidas pela expressividade das formas linguísticas, o texto pode ser analisado na perspectiva de um mero ponto de vista ou de uma tentativa de criar um novo mundo – como propuseram Neto e Nobre nas suas respectivas poéticas –, ou ainda retractar um dos vários mundos possíveis na perspectiva de Derrida. Recorrendo à literatura comparada, pode-se ainda juntar essas duas visões, pondo à mesa os pontos de aproximação e de afastamento numa dada obra ou obras. E o relacionamento entre o eu-lírico de Neto e o de Nobre, com as suas simbologias poéticas, são exemplos disso.
O sujeito poético de Agostinho Neto sofre pelos abalos provocados pelo silêncio do Criador perante aquilo que descreve como horizonte repentino, onde “o sol e o barco/ se afogam/ o mar/ escurecendo/ o céu escurecendo a terra/ e a alma de mulher”. Tudo escurecendo, inclusive a sua fé. Mas isso não se apresenta como uma exclusividade de Neto. Também o eu-lírico de António Nobre viu a sua fé flagelada pelo contexto, no seu Sonêto No 25:(...)Não creio em nada! e fui tão religioso! Na sua L’acculturation littéraire: Sociologie et littérature comparée (Tradução de Renato Venâncio H. de Souza), Roger Bastide afirma que a literatura comparada, assim como a crítica literária, têm a obrigação de “reencarnar” a arte no tecido vivo das sociedades.
Esse facto ilumina o túnel da história de cada comunidade, estabelecendo uma relação unívoca entre história e literatura duma nação. Portanto, ler e interpretar uma obra literária é também um exercício de (re)descoberta histórica. A equivalência que a literatura comparada nos fornece é a da compreensão da importância do facto literário enquanto facto histórico ou social. Aspectos como esse permitem-nos compreender, seguindo na esteira da estética da recepção, a relevância atribuída ao papel do leitor no processo literário, encarado como um desmistificador da história dum povo no momento da interpretação do texto literário.Também aqui conta o princípio pós-estruturalista de redefinir a cultura como um texto, criando a possibilidade de relativizar as duas instituições (cultura e literatura), permitindo que o leitor possa adquirir, com uma leitura de alguma obra literária, valores culturais, da mesma forma que a sua cultura vai ajudá-lo a descodificar os signos presentes na obra.
Na concepção de Roger Bastide, isso acontece porque a literatura comparada se renova em contacto com a antropologia cultural, transformada, enfim, em sociológica, e pelo interesse que esta sociologia das interpenetrações socioculturais teria em estender o seu campo de acção ao domínio literário.
No caso concreto de Neto e Nobre, as estruturas literárias presentes nas suas obras poéticas também surgem com o mero pretexto de esboçar um desejo. Motivos não faltaram, tal como não faltaram os factos literários, embora ambos tivessem seleccionado temas diferentes para espelhar um único fim: liberdade.
Na inconsciência, os dois poetas parecem ter eleito a escrita como elemento de libertação, com os olhos postos numa declaração de Derrida:Escrever é retirar-se. Não para a sua própria tenda para escrever, mas para a sua própria escritura. Cair longe da linguagem, emancipa-la ou desampará-la, deixa-la caminhar sozinha e desmunida. Abandonar a palavra. Ser poeta é abandonar a palavra. Deixa-la falar sozinha o que ela só pode fazer escrevendo. Abandonar a escritura é só lá estar para lhe dar passagem, para ser elemento diáfano de sua procissão: tudo e nada. Em relação a obra, o escritor é ao mesmo tempo tudo e nada. Como Deus: tens aí a prova de sua omnipotência; pois Ele é ao mesmo tempo o todo e o nada.
Portanto, a arte é ao mesmo tempo o nosso mundo e um outro a si paralelo, e interpretar as suas estruturas que deram corpo à obra é um exercício de descoberta dos elementos de aproximação e de afastamento de leitores com comprovadas experiências díspares. Assim, certamente poderá ser indiferente a mensagem histórica guardada em Sagrada Esperança de Agostinho Neto aos olhos dum leitor que não se identifica culturalmente com Angola, como o mesmo poderá suceder com aquele que se degustar com Só e pouco ou nada conhecer ou saber da cultura da nação portuguesa.
E, de novo, resgatamos a importância do comparativismo literário, como traço de aproximação de culturas através da interpretação dos simbolismos literários presentes em cada uma das obras. Afinal, do concreto à abstracção partem os dois poetas (Neto e Nobre), buscando sentimentos de amor à liberdade, apelando para isso à morte enquanto objecto abstracto, mas simbolicamente presente no âmago da valorização da vida.
Vida Cultural
FONTE: Jornal de Angola - Luanda,Luanda,Angola

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