segunda-feira, abril 14, 2008

O mestre dos neoconservadores


O mestre dos neoconservadores
Em A República de Platão, Simon Blackburn trata da obra máxima do pensador grego que inspira o atual poder norte-americano

Leonardo Trevisan
Entre as muitas ilusões que cercam a tarefa de ensinar algo a alguém, a volta (por decreto) da disciplina de filosofia no ensino médio, provavelmente, está em primeiro lugar. A questão não é de mérito, se está certo ou errado este retorno, mas de sentido. Entender isso talvez dependa de outra pergunta: será que, por exemplo, Platão recomendaria o exercício da tarefa de ensinar filosofia? É curioso, mas um professor da Universidade de Cambridge, Simon Blackburn, partindo de problema semelhante, lembrou que para Platão, filosofia era 'mais uma questão de atividade que de absorver ou aprender um corpo doutrinário'.

O ponto forte nessa história toda está no que Platão e seu colega de ofício, Sócrates, entendiam sobre o que era essa atividade. Em A República de Platão - Uma Biografia, publicado pela Zahar Editora, o professor Blackburn insistiu que, para Platão, falar ou escrever exigia diálogos, forma que requer diferentes vozes e os altos e baixos de uma argumentação. O objetivo dessa exigência era 'educar seus ouvintes', ou qualquer um que chegasse perto dele, ou de Sócrates. Ambos queriam que esses ouvintes se transformassem em 'questionadores', isto é, participantes ativos nos labirintos do pensamento. Para Platão, a recepção passiva da palavra não tinha a menor importância. Blackburn lembra que, no final do diálogo platônico Fedro, o próprio Sócrates declara que despreza a leitura de filosofia, em detrimento de sua prática. O jeito de Platão fazer filosofia: 'Era uma questão de processo, não de produto', resume Blackburn.

Essa é a questão essencial: leitura de filosofia, sozinha, não é 'substituto do pensamento próprio'. Isolada, presa a si mesma, a filosofia resolve pouco. O professor de Cambridge retoma Goethe para explicar melhor por que apenas ler não basta para pensar: 'Aquilo que herdastes dos vossos antepassados, tendes primeiro de conseguir por vós mesmos, se o desejais possuir.'

Aqui mora o perigo da convivência com esses filósofos. Há muito tempo, como muita gente já notou, 'as pessoas já nascem platônicas ou aristotélicas' ou, na explicação de Blackburn: Platão se volta para outros mundos e lida com abstrações, enquanto Aristóteles 'é o homem simplesmente empírico que encara as coisas como elas são no mundo'. Nesse momento, o professor inglês dá um salto e diz que os neoconservadores da era Bush fazem tudo o que fazem, Iraque inclusive, porque leram e gostaram de Platão, especialmente A República.

Sem grandes receios, Blackburn afirma que Platão deixou um legado na política que inclui a teocracia, o militarismo, o nacionalismo, e o antiliberalismo. E pega pesado dizendo que na República ele se prendeu simultaneamente 'ao mais estático conservadorismo e à mais desvairada utopia'. A acusação de Blackburn avança: se Platão for posto no contexto histórico 'podemos encontrar o arquétipo do aristocrata desencantado, que odiava a democracia ateniense porque as pessoas erradas estavam no poder'.

Antes que a ira domine a razão, Blackburn alerta que não se pode ignorar a ambição metafísica presente na República 'lendo a obra como um Platão light' que pode ser usado, ou tomado, com 'doses menores de metafísica'. O professor de Cambridge insiste que em Platão há uma escolha: se existe, ou não, outro meio para viver bem 'a não ser a conformidade aos costumes', isto é, a opção entre, por exemplo, religiosidade e crítica, ou entre decisões da comunidade e o incansável espírito de investigação. Blackburn adianta que Platão fez todo o possível para ficar bem longe dos 'desígnios e vontades da comunidade' e pagou um preço caro pela escolha.

A lógica platônica, como lembrou Blackburn, parte do predomínio do mundo das idéias mas se constrói no vácuo que existe do conceito de Justiça que vigora no mundo bem real em que vivemos todos. Platão descreve como Atenas obriga os habitantes da pequena ilha de Melos a também declarar guerra a Esparta, e pede Justiça para ficar neutra. Atenas dizima Melos e Platão discute a típica solução de realpolitik, analisada em termos de que os fortes fazem o que querem e os fracos sofrem o que devem. Com o cruel adendo de que sempre também a razão é escrava das paixões, especialmente quando pensamos em Justiça.

Ainda no rol das acusações, Blackburn lembra que Platão não gostava dos artistas, principalmente dos poetas, porque todos contam ou falam mentira 'sobre os deuses'. A falha irritava o autor da República porque apresenta os deuses como 'longe da perfeição', prejudicando a mente e a compreensão do mundo do homem comum. Aliás, o erro dos artistas para Platão não está só nessa 'deturpação', mas no fato de que agem pela 'inspiração', substituindo a razão, o conhecimento. Daí sua conclusão de que a elite deve tomar contato apenas com o que é bonito e bom, 'inocente da representação das coisas ruins'.

No que se refere a Platão, por milênios, a humanidade conviveu com a resposta de Dionísio I, tirano de Siracusa, de que sua filosofia era 'palavras de velhos ociosos dirigidas a jovens imaturos'. Já Bertrand Russel avisava: quem não lê grego não deve se meter com Platão. O cauteloso professor de Cambridge foi mais objetivo: no nosso tempo, Platão guiou os neoconservadores, uma acusação que Karl Popper também já fizera ao filósofo. Vale notar, no entanto, que Blackburn também registrou, curiosamente, que Platão era um sujeito que ria muito. Aliás, uma característica que os convictos sempre desprezaram.

Leonardo Trevisan é jornalista e historiador, autor de Educação & Trabalho, entre outros livros

A República de Platão - Uma Biografia
Simon Blackburn
Jorge Zahar, 188 págs., R$ 29

FONTE: O Estado de São Paulo - São Paulo,SP,Brazil

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