terça-feira, março 25, 2008

"O ruído deste livro é o da memória"


"O ruído deste livro é o da memória"

Entrevista com Ana Paula Tavares, escritora

Ritos de Passagem foi o seu primeiro livro (1985), que acaba de ser reeditado com desenhos de Luandino Vieira. As palavras iniciação e metamorfose têm a ver com estes poemas?

Estão ligadas entre si. Quando participamos de um ritual de iniciação, passando de um ser andrógino, sem sexo, sem marcas de pertença, à condição de mulher, há uma metamorfose da pessoa enquanto membro de uma formação social.

Está a falar de uma cultura específica africana...

Sim, da Nyaneka, dos pastores do sul de Angola. Falo dos rituais de iniciação, mas também, em paralelo, do processo poético em que, da palavra ouvida e integrada num certo contexto, se constrói o texto. Há dor nas duas transformações.

O seu livro toca em algo universal, e não só africano...

O ruído deste livro tem a ver com todas as categorias da condição humana, a da mulher, no seu particular, e a da condição de um país, Angola, onde nasci. Do período colonial à pós-independência.

Como se houvesse um vaivém da inocência para o saber e deste para um certo vazio?

Ritos de Passagem não se detém apenas no carácter iniciático que proclama. Trabalha com a memória de um povo, mas também com o presente. Olha à sua volta, reclama um olhar de mulher implicado com a sociedade. Quanto ao vazio, não é uma tentativa de o preencher mas de o incorporar num corpus poético que estava já em construção.

No fundo, é uma história com muito da tradição oral...

Sim, uma história que revela a alegria, o desânimo, o sucesso e o insucesso, o complexo ritual das relações amorosas entre homem e mulher, mãe e filha, num país que tinha começado há pouco. Surpreendi, no outro dia, a minha voz a dizer palavras, numa velha cassete, que correspondem a poemas, fórmulas, com muito da tradição oral.

Este é o livro de uma mulher--anjo ou de uma mulher-terra?

De uma mulher-terra. A mulher--anjo surge noutros livros. Não me autorizei a trazê-la para aqui. Tive necessidade de a perceber num espaço determinado, bem como ao seu corpo. Há um diálogo com um interior, o seu, e o da casa, dos amores; com os filhos, a natureza, o útero das coisas. Conceição Lima tem uma expressão belíssima, o "útero da casa", que reflecte sobre a intimidade, mas que não é só do pessoal mas do colectivo.

Escreveu um livro que fala da intimidade da mulher, mas que não deixa o homem lá fora...

Não é um diário íntimo. Por mais secretos que sejam os seus percursos, não quis que excluíssem ninguém, mesmo quando falam de amargura, de desilusão, de violência entre as pessoas.

Generoso, este livro?

Desejei-o generoso e rigoroso. Não é um livro de esconder, mas de mostrar com uma certa inocência consciente. Nele a mulher não está na cozinha, mas voltada para fora, para o que a rodeia. Consciente.

Os antigos compreendiam o significado do processo de leitura - a interpretação cabia aos iniciados. O leitor também o é?

Procurei que o leitor fosse implicado na tentativa de recuperar a arte de contar que é a dos homens mais velhos e das mulheres da minha terra. Por baixo da superfície das coisas, outras coisas podiam descobrir-se. Trata-se de um processo de desconstrução, de significação.

Desconstrói a imagem da mulher: "Dessossaste-me", diz um dos poemas, e mais adiante: "meio pulmão respira em ti/o outro, que me lembre/mal existe".

É a tentativa de recuperação pela palavra de um processo, violento e duro, na relação marido e mulher, ou na dos amantes; de não aceitação da dor e de imposições da sociedade, não uma denúncia.

A sabedoria da Filosofia Cabinda está também presente?

A tradição dos provérbios, que resolve questões do simbólico com meia dúzia de palavras (As coisas delicadas tratam-se com cuidado), foi importante nesta primeira fase da minha poesia. Quando querem dar a conhecer aos maridos que estão insatisfeitas, as mulheres desenham um passarinho amarrado com um laço leve nas tampas da panelas, como quem diz: "Estás preso por um fio!" Lidei com muitas tradições do meu país e não só.

É circular este livro?

Sim, o círculo permite o movimento e o fecho, o princípio e o fim. Os desenhos rupestres em Angola têm nele um momento fulcral. A terra é circular, os frutos são redondos. O arco-íris é um círculo ou um círculo que se interrompe?

Que é a eternidade de que fala?

Paz, descanso.

FONTE (photo include): Diário de Notícias - Lisboa - Portugal

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