terça-feira, março 25, 2008

Jabuticabeira no céu de Ipanema


24/3/2008 15:03:00

Jabuticabeira no céu de Ipanema
Por Fabrício Carpinejar
O poeta Manoel de Barros foi visitar Rubem Braga em sua cobertura. Não se conteve ao enxergar o imprevisível pomar no 12º andar:
- Uma jabuticabeira no céu de Ipanema!
Rubem Braga (1913-1990) era o sábia que cantava e cuidava da árvore, no topo da zona sul carioca. Talvez seja o maior escritor brasileiro do século 20, por superar os preconceitos da crônica, consolidar sua atmosfera e alçá-la à condição de mania nacional. Conseguiu a grandeza num gênero considerado menor e fugaz.
A crônica deveria ser disposta em duas linhas temporais: antes de Rubem e depois de Rubem. Uma ironia, considerando que o austríaco Otto Maria Carpeaux não o “permitiu” entrar na história da literatura do País. Além de poemas bissextos, não escreveu em outro gênero, nomeava-se um “cozinheiro do trivial”. Recusava truques, giros e efeitos narrativos; descartou convites para romances e novelas. Fazia o básico da língua portuguesa, não esquecendo que o básico é o mais difícil, algo como a combinação infalível de bife, arroz, feijão e batata. Colocava ainda, por recompensa, um ovo por cima do arroz.
Era um jornalista invisível, que “reparara em tudo e ninguém reparava nele”. Desmerecia seu talento. Dizia-se autor “de textos repetitivos, infiltrados de velhas tristezas”. Sua despretensão foi liberdade: livrou a poesia do verso; o texto, da retórica, mesclando franqueza e simplicidade, pungência e delicadeza. De uma observação insignificante, como o vôo de uma borboleta amarela, produzia suspense e prendia o leitor até a última linha. Exibia o dom de propor comparações incomuns das coisas mais comuns, estabelecendo, por exemplo, que “a casa deve ser a preparação para o segredo maior do túmulo” (crônica de maio de 1957).
Manuel Bandeira brincava com ele: “Quando Rubem Braga tem assunto é bom. Quando não tem, é ótimo.” Não é que lhe faltava tema, inverteu a supremacia do assunto sobre estilo. Externava opiniões fortes e contundentes, arrepiando os barretes da intelectualidade católica de Alceu Amoroso Lima.
Quem sente saudades do velho Braga tem um novo endereço para brindar sua memória: a biografia Rubem Braga - Um Cigano Fazendeiro do Ar (Globo, 592 págs., R$ 44) feita pelo jornalista Marco Antonio de Carvalho. Uma extensa pesquisa de mais de uma década e resultado de 270 entrevistas. Pena que o biógrafo morreu no ano passado, e não acompanhou o lançamento do volume. Trata-se de uma comovida herança, um abrangente, sério e fiel retrato do cronista, que nasceu em Cachoeiro de Itapemirim (ES) e trabalhou nos principais jornais do País.
Marco Antonio de Carvalho imprimiu a leveza da crônica de Rubem na biografia, a ponto de o livro parecer uma autobiografia. Ou o que Rubem gostaria de ler a seu respeito. Não faz paródia braguiana. É decidido, sinuoso, recheado de cartas e digressões. Entrelaça a vida pública e privada, esclarece o anedotário, fundamenta as decisões e descortina o contexto social e político do Rio dos anos 30-70. Não cede a uma escrita monótona, acadêmica. Tem, acima de tudo, o prazer da narração, descrevendo encontros com uma veracidade vivaz. Capítulos poderiam constar em O Conde e o Passarinho, sem fazer feio. São estampas verbais.
Num jantar diplomático, Braga, diplomata em Marrocos, fica encabulado diante de uma manga egípcia, indeciso na etiqueta. Será que poderia comer da mesma forma que uma manga brasileira? Carvalho relata: “Teve vontade de dizer que não, obrigado, adoro manga, mas me faz mal à pele, tem terebintina, ou então confessar de uma vez que manga se come é com a mão mesmo, à beira da praia, e que costumam sujar-lhe as orelhas, às vezes a nuca, o lustre da casa, o vestido da terceira senhora à esquerda. Não, jamais enfrentaria aquela manga num jantar tão fino. Esteve a ponto de levantar-se, passar imediatamente um telegrama para o Itamaraty pedindo dispensa de suas funções diplomáticas, tomar um navio, um trem, um cavalo, e voltar para Cachoeiro.” O biógrafo levou em conta o que Braga comentou sobre memórias: “Memória é um gênero muito falso. Ninguém conta a história. O sujeito conta, sempre, ajeitando, tirando uma coisa, botando outra. Porque se contar a verdade, ou vai se humilhar, ou deixar mal parentes e amigos.”
Não se trata, portanto, de uma homenagem de um fã; há toda a combustão de contradições do perfilado, seus defeitos, desafetos e maldades inteligentes. É o caso da biografia que deixará os parentes e os amigos em situação embaraçosa.
Uma das revelações é o caso de Braga com Bluma, esposa de Samuel Wainer. Ambos são casados. Bluma engravida e se confessa pronta para viver com o amante. Braga, assustado, foge para o Rio Grande do Sul, em 1939. Sua viagem até então era creditada a motivos políticos, para escapar do implacável DIP de Getúlio. A obra aponta a questão pessoal como estopim.
Carvalho detalha a cisão folclórica entre Rubem e Samuel, que tornou o nome do cronista proibido nos seus jornais. O que atrapalha o ódio entre os dois é a semelhança física. Partilhavam idênticas sobrancelhas espessas, idêntico perfil físico e, inclusive, usavam idênticas roupas de um alfaiate da Rua do Ouvidor. Sempre que confundido com Samuel, Braga praguejava: “E eu tenho cara de corno?” Ambos só restabeleceriam a amizade na década de 60.
Um das facetas pouco conhecidas apresentadas na biografia é a do editor. Ao contrário do que se imagina, Rubem Braga demonstrava uma incrível habilidade em antever negócios e farejar possibilidades editoriais. Disposto a aumentar suas porcentagens nas vendas, fundou a “Editora do Autor”, ao lado de Fernando Sabino. O primeiro livro já foi um sucesso. Aproveitando a passagem de Simone de Beauvoir e Jean-Paul Sartre pelo Brasil, comprou os direitos de artigos de uma revista francesa sobre Revolução Cubana e traduziu os textos em oito dias, com ajuda de amigos.
A obra relâmpago vendeu 800 exemplares na noite de autógrafos. Ao mesmo tempo em que publicava a si e seus talentosos colegas, Braga possibilitou a tradução de O Apanhador no Campo de Centeio, de J.D. Salinger. Após vender a editora, abriu um outro selo: Sabiá. Novamente a sorte estava ao seu lado. Publicou um jovem e desconhecido colombiano, Gabriel García Márquez, e seu clássico Cem Anos de Solidão. Firmou-se como um especialista no marketing, o primeiro a fazer uma caixinha reunindo livros de diferentes autores.
Não é tarefa das mais simples reunir as andanças e recordações do cigano Braga, que morou no Recife, Rio, em São Paulo, Porto Alegre e Belo Horizonte, afora Paris (França), Rabat (Marrocos) e Santiago (Chile). Braga demonstrou uma incondicional coerência, inimigo eterno de Getúlio Vargas, que o perseguiu e o empurrou à clandestinidade, e o qual considerava “uma boa escola de derrotas”. Pressionado, não baixava a cabeça, saía do emprego sem remorso: “Não posso pensar pelo dono do jornal, mas também não posso fazê-lo pensar por mim.” A carta que escreveu na morte de Graciliano Ramos, vizinho de mísero quarto numa pensão no Catete, representa também sua trajetória: “Não somos piores do que os outros. Se os nossos defeitos aparecem mais é porque somos mais exigentes conosco mesmos e de vez em quando somos submetidos a provas que os outros não conhecem.”
Rubem Braga superou provas de fogo ao longo da vida, contrariando sua fama de preguiçoso e o apelido de “urso”. Atuou como repórter da 2ª Guerra Mundial e da Revolução Constitucionalista de 1932. Para desfazer as aparências, a biografia começa justamente com a coragem do jornalista na Itália fascista, único correspondente de nossa imprensa a testemunhar a vitória da Força Expedicionária Brasileira, que culminou com a rendição de 16 mil soldados alemães, em 30 de abril de 1945.
Desde seu início em Cachoeiro de Itapemirim, seu talento sempre esteve sob suspeita. Sua primeira crônica publicada, A Lágrima, num jornalzinho do colégio Pedro Palácios, aos 14 anos, recebeu a desconfiança dos professores de que aquilo não poderia vir dele. Logo em seguida foi expulso do colégio (por insubordinação, tal como Carlos Drummond de Andrade), quando não aceitou passivamente a ofensa de “burro”, feita por um professor.
Carvalho reconstitui a importância da família e do irmão Newton, que arrumou um emprego a Braga no Diário da Tarde (BH). Derruba a tese de que ele era casmurro, mas reservado. E com um humor viperino capaz de desarmar amizades. Numa apresentação de Vinicius de Moraes, o poetinha joga confetes na platéia: “A melhor coisa do mundo é comer um papo-de-anjo ao lado da mulher amada.” Braga inverte o discurso piegas e responde do público: “Muito melhor é comer a mulher amada tendo ao lado um papo-de-anjo.”
Em Um Cigano Fazendeiro do Ar constata-se a pontualidade graciosa do frasista, que não ficava atrás da clarividência de Otto Lara Resende. Alguns dos aforismos: “Política é a arte de namorar homens”, “viajar é uma espécie de drible que a gente passa em si mesmo”, “As belas mulheres são desgraças que humildemente abençôo”, “Um comunista é um sujeito excelente. Dois comunistas são intoleráveis.”
Quando anunciaram a transferência da capital do Rio de Janeiro para terras de Goiás, o escritor advertiu que era um exagero: “Basta tirar daqui umas pessoas que enchem demais a cidade, para a coisa melhorar. Eu me ofereço para fazer a lista.” Boêmio (não havia bar no Rio que não dependesse do seu aval), sedutor (conquistou lindas mulheres como Tônia Carreiro e foi recusado por outras como Lygia Marina e Danuza Leão) e misterioso (ninguém conseguia prever seu estado de espírito), Rubem Braga enfrentou os pesadelos e regimes ditatoriais com o sonho de simplicidade.
O Livro

O Autor: Nascido em Cachoeiro do Itapemirim (ES), em 1913, Rubem Braga entrou para a história da literatura brasileira ao diminuir o preconceito contra a crônica, gênero até hoje dividido entre o jornalismo e a literatura. Dedicado ao ofício de cronista, apesar de poesias bissextas, Braga tratava dos assuntos com simplicidade. Cobriu como repórter a 2ª Guerra, testemunhando a vitória da Força Expedicionária Brasileira, na Itália, em 1945. Teve problemas com o Estado Novo: foi preso algumas vezes. Embaixador no Marrocos no governo Jânio Quadros, fundou a editora Sabiá, que lançou escritores como Gabriel Garcia Márquez. Morreu em 1990. O Biógrafo: Marco Antonio de Carvalho foi professor de literatura e jornalista. Trabalhou em veículos como o Estado. Nascido na mesma cidade que Braga, em 1950, dedicou-se durante dez anos a fazer a biografia do conterrâneo. Morreu em julho do ano passado, antes do lançamento do seu maior trabalho.
(Texto publicado no "Caderno 2" do jornal O Estado de São Paulo)
Fabrício Carpinejar é jornalista e escritor, autor de O Amor Esquece de Começar (Bertrand Brasil, 2006).

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