quarta-feira, novembro 24, 2010

"Há racismo explícito nas obras de Lobato", opina educadora

Ana Cláudia Barros

Autora de A discriminação do negro no livro didático e Desconstruindo a discriminação racial do negro no livro didático - este último, será lançado na sexta-feira (26), durante o I Fórum Internacional de Educação, Diversidade e Identitidade, em Salvador (BA), a professora Ana Célia da Silva, da Universidade do Estado da Bahia (UNEB), considera acertada a avaliação do Conselho Nacional de Educação (CNE) em relação à obra Caçadas de Pedrinho, de Monteiro Lobato.

Ana Célia apoia o polêmico parecer, que sugeriu restrições ao livro em escolas públicas, sob a alegação de racismo, mas foi devolvido pelo Ministério da Educação "a fim de verificar se há pontos que possam ter sido eventualmente mal interpretados quando de sua primeira publicação", conforme nota do conselho.

De acordo com a doutora em Educação, há "traços racistas explícitos" não só em Caçadas de Pedrinho, como em outras obras de Lobato.

- Se você analisar as obras de Monteiro Lobato - e eu li todos os livros dele quando era criança e adorei -, vai identificar traços racistas explícitos. No meu livro (A discriminação do negro no livro didático), tem uma página que mostra uma ilustração da Anastácia associada ao porco Rabicó. De perfil, o rosto é igual. A partir da representação que ele faz da Anastácia, enquanto ingênua, ignorante, supersticiosa, tudo de desumano que existe, os ilustradores a desenham parecida com macaco e com porco.

Ana Célia, que será uma das palestrantes do Fórum internacional, reconhece a importância de Lobato para a literatura brasileira, mas defende intervenções no sentido de suprimir ou alterar os trechos que, segundo ela, depreciam os negros.

"O que se deve fazer não é retirar a obra, que é preciosa, mas desconstruir o racismo contido nela". Para a especialista em Educação, o parecer do CNE é "legítimo, acadêmico e pautado em critérios de verdade".

Confira a entrevista.

Terra Magazine - O que você achou do parecer do CNE? A senhora identifica racismo em Caçadas de Pedrinho?

Ana Célia Silva - Se você analisar as obras de Monteiro Lobato - e eu li todos os livros dele quando era criança e adorei -, vai identificar traços racistas explícitos. Eu tenho um livro chamado A discriminação do negro no livro didático, mostrando que os ilustradores, a partir da representação escrita que o autor faz, representam os personagens. No meu livro, tem uma página que mostra uma ilustração da Anástácia associada ao porco Rabicó. De perfil, o rosto é igual.

A partir da representação que ele faz da Anastácia, enquanto ingênua, ignorante, supersticiosa, tudo de desumano que existe, os ilustradores a desenham parecida com macaco e com porco. Eu apresento isso no meu livro, que foi publicado em 1995.

Não se pode dizer que ele (Monteiro Lobato) seja racista, mas o contexto da época... Até hoje, somos em grande parte desumanizados. Você vê como a polícia trata uma pessoa de pele clara e de pele negra? O negro é "mau, incapaz, ruim, vamos matar".

A questão do contexto em que Lobato escreveu a obra é um dos argumentos utilizados para justificar a forma como ele se refere aos persoangens...

É, ele escreveu baseado no senso-comum da época, que vigora até hoje.

Então, a senhora acha que esse tipo de pensamento ainda é vigente?

É vigente e muito mais forte hoje. Sou professora titular da universidade e várias vezes vivenciei racismo explícito dentro da instituição. Tudo pautado na representação, no estereótipo de incapaz, de mau, de feio, de sujo. Por que esse estereótipo continua vigorando? Por casa da mídia, dos livros didáticos que perpetuam esse estereótipo.

Para a senhora, então, a obra de Lobato, de certa forma, ajuda a perpetuar esses estereótipos negativos em relação aos negros?

A obra dele é muito interessante, mas tem contexto racista explícito. Esse livro que a doutora Nilma Lino (conselheira que redigiu o parecer sobre Caçadas de Pedrinho) analisou, ave Maria, você viu como descreve Anastácia? Só não vê quem não quer.

Lobato é irrefutavelmente um grande nome da literatura infantil brasileira. Qual seria, na avaliação da senhora, a solução?

Na sexta-feira, participo de um colóquio internacional aqui, na Bahia, onde lanço o meu segundo livro que se chama Desconstruindo a discriminação do negro no livro didático. O que se deve fazer não é retirar a obra, que é preciosa, mas desconstruir o racismo contido nela.

Como seria efetivamente essa desconstrução?

Por exemplo: "Tive um dia negro". Substitui por tive um dia ruim. Não é fácil? Ruim não é sinônimo de negro, mas as pessoas acham. Outra: "Neguinho pegou". É o estereótipo negativo de ladrão. O que se deve fazer, como doutora Nilma disse, é analisar o conteúdo, revisar a obra e retirar o estereótipo racista, porque a obra tem que ser mantida. É muito preciosa.

A senhora quer dizer que se deve suprimir os termos que seriam racistas?

Ou suprime ou reconstrói.

A senhora fala em reformular o texto?

Tem que retirar o estereótipo. A Anastácia não era ingênua, não era burra.

Então, a senhora sugere a modificação do texto?

Desde 1995, nós estivemos no Ministério da Educação e solicitamos que, quando se fizesse revisão de livros, fizesse revisões pautadas em estereótipos diferentes. Não só em relação ao negro, como à origem, à mulher. Mas eles não atenderam. Continuam dizendo que o livro é ótimo. Você abre e tem lá mulher como doméstica, seja preta ou branca... A verdade é que não querem retirar os estereótipos. Querem que eles se mantenham.

Livros com conteúdos racistas concorrem para quê? O resultado do preconceito contido nos livros é causar, cada vez mais, a baixa autoestima da população negra. Por que as pessoas querem ser brancas? Se você pegar a literatura e colocar todos os brancos como sujos, feios e incapazes, uma criança branca vai querer ser branca? Não vai. Ele quer ser o que é bom.

O parecer do CNE é legítimo, acadêmico e pautado em critérios de verdade. O trabalho da doutora Nilma é um trabalho científico de alto renome. Não é por acaso que ela está no Conselho Nacional de Educação. Ela diz apenas o que eu já disse desde... Fúlvia Rosemberg, da Carlos Chagas. Foi ela que começou o trabalho de denúncia da discriminação dos negros nos livros didáticos. Foi com ela que aprendi, uma mulher branca e judia. Quem me mostrou como o livro é racista foi a mulher negra.

FONTE: Terra Magazine

http://terramagazine.terra.com.br/

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