segunda-feira, novembro 01, 2010

As pedras no caminho

Zohar Shavit
No ano de 2006, a pesquisadora israelense Zohar Shavit começou uma conferência sobre literatura infantil e juvenil na Universidade do Minho, em Portugal, contando uma anedota:

Dois senhores respeitáveis estavam em uma festa. Apresentados por um amigo em comum, começaram uma conversa trivial:

- E então, qual a sua profissão?

- Sou escritor de literatura infantil.

- Ah, que interessante! Eu sempre tive vontade de escrever livrinhos para crianças, meus netos adoram as minhas historinhas. Qualquer dia eu escrevo um, é só arrumar um tempinho.

- E você, qual é a sua profissão?

- Sou neurocirurgião.

- Ah, que interessante! Eu sempre tive vontade de abrir cabeças. Qualquer dia eu opero um cérebro, é só arrumar um tempinho.

Neste diálogo, baseado em fatos reais, está contida a maior pedra no caminho da literatura infantil e juvenil: a falsa noção de que não é necessário nenhum conhecimento teórico ou técnico para escrever, ilustrar, editar, selecionar e julgar livros para crianças e jovens. Os critérios de análise e escrita são sempre baseados no gosto pessoal, no senso comum, na função pedagógica e principalmente na noção de utilidade do texto para as crianças. Parece que é fácil. Mas não é bem assim.

O primeiro erro de abordagem está na definição de gênero. Nem todo texto escrito para crianças e jovens pode ser considerado literatura. Existem os livros didáticos, informativos, com a clara função de ensinar um conteúdo – às vezes disfarçados com um pouco de purpurina literária que não convence – mas que não são literatura de forma alguma.

Na teoria literária existe um conceito chamado literariedade, um conjunto de indicações para ajudar a definir o que é ou não literário em um texto. Essas características estão na riqueza e profundidade dos personagens, elaboração de um enredo com conflitos, antagonismos, clímax, ritmo, estrutura, reinvenção de linguagem, novidades e surpresas nas relações entre palavras, verossimilhança, ficcionalidade... Isso para citar apenas alguns dos elementos que são reconhecíveis em um texto literário de qualidade.

Julgar um texto destinado a crianças e jovens, portanto, é uma tarefa tão complexa quanto à crítica de um texto para adultos (sabendo que nem sempre é possível construir fronteira tão rígidas entre os dois). Mas, para o senso comum, parece que não é necessário conhecer nada de teoria ou técnica para fazer esse julgamento.

Na minha vivência como escritora de literatura infantil e juvenil convivo com pais, professores e leitores, colecionando uma série de exemplos desses erros generalizados de análise. Já vi, por exemplo, o caso de textos mal escritos, chatos de ler, longos, detestados pelos alunos, mas empurrados pelos adultos por conter importantes lições sobre um tema qualquer. Os alunos odeiam aquele negócio que chamam de literatura, mas que não passa de uma lição chata e que tenta enganar os leitores entediados.

A culpa não é dos professores, mas de sua formação. A maioria deles passa por cursos de pedagogia onde, no máximo, cursam uma única disciplina dedicada aos livros infantis, tratando-os como um instrumento pedagógico a mais, sempre focando em como “usar” em sala de aula – quase como se usa um jogo, uma massa de modelar, um estojo de lápis de cor.

Falta a educação do sentimento. Falta a leitura em busca da emoção, do sorriso e da lágrima. A literatura, como toda arte, é um caminho para entender melhor a vida.

Sendo assim, por que negar aos jovens o direito à leitura de textos que tratem de temas como a morte, as perdas, os momentos difíceis da vida? Por que privá-los da experiência do encantamento e da emoção? Isso é literatura, essa leitura emocionada, que modifica a vida, que mostra outras formas de vivenciar a própria realidade.

Julgar um livro destinado a crianças e jovens sem conhecimento das características principais de um bom texto literário não chega a ser fatal como abrir um cérebro sem conhecimento de medicina. Mas acarreta o perigo, isso sim, de destruir o potencial leitor de uma criança. Isso multiplicado por dezenas, centenas, milhares, é uma grande catástrofe.

SOCORRO ACIOLI
Especial para o Caderno 3

FONTE: Diário do Nordeste

http://diariodonordeste.globo.com/
 
FOTO: tau.ac.il

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