terça-feira, outubro 26, 2010

Sobre autores e games (4): Daniel Galera

Galera: "Os videogames ainda são vistos pela grande maioria das pessoas como um brinquedo, quando não uma perda de tempo total. Até alguns gamers têm essa visão"
Em uma cena de Mãos de cavalo, segundo romance do escritor Daniel Galera, três amigos jogam Stunts, video game emblemático que permite disputar corridas de carros em pistas delirantes, repletas de loops, ziguezagues e circuitos em forma de saca-rolhas. Para críticos mais conservadores, a simples inclusão de um jogo de computador na trama pode ser vista como uma licença vulgar e imperdoável, uma "faute de goût" incompatível com a literatura.

A citação, contudo, é recebida com naturalidade entre os que cresceram na era dos jogos eletrônicos. "Os videogames entraram na minha vida ao mesmo tempo em que a música, o cinema e os livros, bem no início da infância", conta Galera. "Nunca os vi como uma modalidade muito diferente das outras mídias e artes". O escritor, portanto, não menciona Stunts gratuitamente: símbolo no imaginário de uma geração, a disputa eletrônica funciona, na cena, como simulacro dos rumos que a amizade dos três amigos iria tomar. Elemento marcante na vida dos personagens, o game se torna, afinal, uma tradução preciosa de seus estados de espírito.

Incorporados na nossa cultura e no nosso cotidiano, os jogos acharam o seu lugar em nossa literatura. E ganharam, também, análises mais amplas das suas possibilidades narrativas e estéticas. Um de seus maiores embaixadores, Galera chegou a criar um blog para debate-los (o Jogatina) e recentemente escreveu um longo ensaio sobre o assunto para a Revista Serrote (leia um trecho aqui).

Na quarta entrevista da série Autores e games, o escritor fala sobre a sua relação antiga com os jogos eletrônicos.

PORTAL: Quando você se deu conta de que, além de uma simples fonte de diversão, o video game também poderia ter algum valor artístico?

GALERA: Os videogames entraram na minha vida ao mesmo tempo em que a música, o cinema e os livros, bem no início da infância. Nunca os vi como uma modalidade muito diferente das outras mídias e artes. Era mais uma fonte de narrativas, diversão, conhecimento e fruição estética entre todas as outras. Aprendi inglês por causa dos games. Cresci com personagens e histórias dos jogos. É claro que a linguagem de um livro e de um game é muito diferente, assim como há grande diferença entre as experiências de ler e jogar. Há todo um universo de diversão gratuita nos videogames que pouco se encontra na literatura. Mas isso não anula a força narrativa dos games.

PORTAL: Seu trabalho literário já foi influenciado por sua experiência com os games? Assim como acontece com o cinema e outras expressões artísticas, é possível estabelecer diálogos entre a estética da narrativa literária e a narrativa dos games?

GALERA: Não creio que os videogames tenham influenciado minha literatura no nível estético ou da linguagem. O diálogo possível entre as duas linguagens não é algo que me interessa muito. Todavia, os videogames me interessam muito como tema, pois são um componente importante da formação cultural da minha geração. Em outras palavras, as pessoas jogam videogame, assim como leem livros, trepam, trabalham e se apaixonam. É parte da vida e tem significado pra minha geração e todas que a sucedem. Assim, muitos de meus personagens jogam videogames e tem suas vidas marcadas por ele. Um exemplo claro disso é uma cena do meu romance Mãos de Cavalo em que um trio de amigos adolescentes joga um jogo de corrida no computador. O que acontece no jogo é uma metáfora da separação iminente e da crise da amizade que eles enfrentam. Mas não vejo motivo nenhum para forçar um diálogo entre games e literatura no nível da linguagem, assim como não tento escrever como se tocasse música ou fizesse um filme.

PORTAL: Você se sente pertencer a uma cultura dos gamers? Na sua opinião, esta cultura estaria sendo finalmente reconhecida e legitimada - ou ainda persiste a ideia geral de que jogar video game é uma perda de tempo ou uma diversão menor?

GALERA: Não gosto do termo "cultura gamer" nem de assemelhados, mas de certa forma a resposta é sim. Joguei games a vida inteira, conheço o assunto, o jargão, gosto de pessoas que jogam. Os videogames ainda são vistos pela grande maioria das pessoas como um brinquedo, quando não uma perda de tempo total. Até alguns gamers têm essa visão. Jogam compulsivamente mas não enxergam valor artístico nenhum na experiência. Eu suspeito que a maioria dos gamers nem se dá conta da profundidade da experiência narrativa que costumam fruir. E isso se dá porque a narrativa dos games é bem diferente da narrativa convencional dos livros, filmes, teatro etc. É narrativa procedimental, e o enredo é somente um aspecto da história que é contada. A execução do algoritmo do jogo por meio de uma condução interativa da narrativa é essencial para gerar sentido nos videogames. Defendi essa tese num ensaio que publiquei recentemente na Revista Serrote, usando o jogo Prince of Persia (2008) como objeto principal de análise.

PORTAL: Surgiram recentemente alguns games inspirados em livros. O mais recente, inclusive, é uma versão para uma obra clássica, o Gatsby de Fitzgerald. Já chegou a jogar algum deles? O que acha dessas "adaptações"?

GALERA: Não joguei e acho que essas adaptações não significam nada. Pegar a história de um livro para inspirar um jogo eletrônico não implica em nenhuma relação especial da linguagens de videogame e literatura. Em geral, adaptações a partir de artes dotadas de narrativa mais clássica para a narrativa interativa dos games costumam ser muito pobres, pois se aplica um esquema de jogo preguiçoso para servir ao enredo. E enredo não é o que mais importa nos videogames. O enredo serve ao algoritmo. Todos os melhores jogos demonstram isso, se corretamente observados. A história que realmente interessa está no que se pode chamar simplificadamente de "as regras do jogo".

PORTAL: Os programadores podem ser vistos como "autores" (no sentido de trazer aspectos pessoais, autorais, talvez até íntimos, a cada uma de suas criações)?

O autor de um jogo de videogame não é necessariamente o programador desse jogo, mas sim, jogos são concebidos por autores ou criadores. Há jogos mais e menos autorais, e aqui cabem analogias com livros e filmes, que podemos ver como impessoais/ comerciais ou autorais/artísticos, em todas as gradações possíveis entre uma coisa e outra.

PORTAL: Qual o seu jogo e programador preferidos? Por que?

GALERA: Não tenho nenhum programador favorito, mas acho que há dois programadores quintessenciais no mundo dos games, o Shigeru Miyamoto (criador do Mario, Zelda etc.) e o Fumito Ueda, mentor dos cultuados ICO e Shadow of the Colossus, talvez os exemplos mais usados do potencial artístico dos videogames. Os gamers em geral usam as softhouses como referência autoral, mais do que criadores individuais. Qualquer pessoa que jogava Nintendo nas últimas duas décadas entende o que se quer dizer "um típico jogo da Konami", por exemplo. Quanto a jogo favorito, impossível citar um só. The Secret of Monkey Island 2, Beyond Good and Evil, Super Mario Bros. 3, Shadow of the Colussus, Return Fire (do 3DO) e Secret of Mana são alguns que vem à mente de imediato, mas a lista completa teria dezenas ou centenas de títulos.

Daniel Galera nasceu em São Paulo, em 1979. É escritor, tradutor e um dos precursores do uso da internet para a literatura, editando e publicando textos em portais e fanzines eletrônicos entre 1997 e 2001. Publicou os romances Cordilheira (2008), Mãos de Cavalo (2006), Até o Dia em que o Cão Morreu (2003), e o volume de contos Dentes Guardados (2001), além da graphic novel Cachalote (2010), em parceria com o desenhista Rafael Coutinho. Ganhou o Prêmio Machado de Assis de Romance, concedido pela Fundação Biblioteca Nacional em 2008. (Fonte: Wikipedia)

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