terça-feira, outubro 12, 2010

O cineasta Sérgio Machado elege os 10 melhores filmes do 'contraditório e complexo' John Ford

Ter, 12 Out, 09h20

RIO - John Ford dirigiu mais de 140 filmes. Aos 25 anos já havia realizado nada menos que 50. Entre 1939 e 1941, lançou oito longas, entre eles "No tempo das diligências", "A mocidade de Lincoln", "As vinhas da ira" e "Como era verde o meu vale", que figuram entre as maiores obras-primas da História do cinema.

Para quem sabe o quanto é complexo fazer um longa, são feitos comparáveis a Mozart tocar aos 3 anos e compor aos 6. É algo que só se explica (ou não se explica) porque Ford é gênio, segundo Orson Welles, o maior poeta que o cinema já nos deu.

Contraditório e complexo como seus filmes, Ford compunha imagens com delicadeza e sofisticação, mas cultivava a imagem de homem rude e truculento. Tinha fama de ser um déspota no set, mas era chamado pelos atores e pela equipe de Pappy. Considerado por muitos um reacionário, foi voz ativa contra o macarthismo nos anos 50.

Autoritário e de personalidade forte, soube, melhor que ninguém, tirar proveito do sistema de produção dos grandes estúdios. Trabalhou com alguns dos maiores técnicos, roteiristas e fotógrafos da indústria americana. James Stuart, Henry Fonda e Ward Bond estão em diversos filmes de Ford, mas o rosto que se confunde com sua obra é o de John Wayne. Os dois fizeram 14 filmes juntos e tiveram uma relação turbulenta.

Ford acreditava que uma carreira cinematográfica saudável deveria alternar um projeto autoral com um filme destinado ao grande público. O curioso é que muitas vezes os filmes de estúdio, nos quais é menos visível a mão do diretor, resistiram melhor ao tempo do que obras conceitualmente mais elaboradas como "O delator" e "Domínio de bárbaros".

Vi quase todos os 36 filmes da mostra "John Ford" em DVD, a maior parte deles várias vezes. Na semana passada, tive a oportunidade de assistir a eles pela primeira vez em película, no CCBB de São Paulo. Fui logo na abertura para ver "Rastros de ódio", mas, para a minha frustração, os ingressos se esgotaram horas antes de o filme ser exibido.

O primeiro filme que consegui ver foi "Depois do vendaval". É incrível como ele cresce na tela grande, onde cada plano parece ser uma pintura em movimento. Demorei a dormir quando voltei para casa, revivendo os diálogos inspirados, a vivacidade das interpretações e o timing perfeito de comédia. Na sessão do dia seguinte, encontrei um colega cineasta que me disse que sentiu a mesma coisa.

A mostra é uma oportunidade única para quem ama o cinema. Algumas cópias restauradas estão estalando de novas. Os que não conhecem a obra de Ford podem estranhar o patriotismo exagerado de alguns filmes, ou o excesso de comédia. Vencida a desconfiança inicial, vale mergulhar de cabeça, porque Ford influenciou Kurosawa, Eisenstein, Scorsese e David Lean, foi o mestre dos mestres, o maior cineasta americano de todos os tempos.

Para ajudar aos não iniciados no universo fordiano, resolvi fazer uma lista com os meus dez filmes favoritos.

"O delator" ("The informer", 1935):

Primeira obra-prima sonora de Ford, "O delator" é um filme denso, de inspiração expressionista, povoado de referências cristãs. Gypo Nolan (Victor MacLagen) é um Judas irlandês que delata um companheiro do IRA por 20 libras e é perseguido pela culpa. A fotografia em preto e branco tem a textura de um pesadelo. Trata-se de uma das obras mais experimentais de Ford, que ganhou com esse filme o primeiro de seus quatro Oscars de melhor diretor.

"No tempo das diligências" ("Stagecoach", 1939):

Ambientado em Monument Valley, território mágico onde vão se desenrolar os principais westerns do diretor, é o primeiro dos 14 filmes estrelados por John Wayne. Grande parte da ação se passa no espaço exíguo de uma diligência em movimento. Durante a jornada, um jogador, a esposa de um militar e um banqueiro corrupto confrontam seus preconceitos com uma prostituta, um médico beberão e um foragido. Narrado com precisão, "No tempo das diligências" é uma crítica ácida ao preconceito e à hipocrisia.

"A mocidade de Lincoln" ("Young Mr. Lincoln", 1939):

Era o filme americano que Sergei Eisenstein mais gostaria de ter feito. Primeira das oito colaborações entre Ford e Henry Fonda (que em princípio recusou o papel, por julgar que encarnar Abraham Lincoln era abstrato como interpretar Deus), o filme retrata o início da carreira do jovem advogado muito antes de ele se tornar presidente dos Estados Unidos. Numa cena antológica, Lincoln doma uma turba de linchadores e evita o assassinato de dois inocentes.

"As vinhas da ira" ("The grapes of wrath", 1940):

Baseado no romance de John Steinbeck, o filme narra a saga de uma família de miseráveis que, no auge da Depressão americana, se amontoa num caminhão e parte para a Califórnia em busca de trabalho. O monólogo da mãe-coragem interpretada por Jane Darwell é para mim um dos momentos mais emocionantes da História do cinema. A fotografia de Gregg Toland, inspirada nos retratos tirados por Walker Evans, é simplesmente esplendorosa.

"O céu mandou alguém" ("The three godfathers", 1941):

Um auto de Natal ambientado no Oeste. Três fugitivos da lei (John Wayne, Pedro Armendariz e Harry Carey Jr.) encontram uma mulher em trabalho de parto em pleno deserto. Diante da mãe agonizante, os bandidos se comprometem a salvar o bebê. O senso de responsabilidade dos três é comovente e a falta de jeito deles com a criança rende algumas situações divertidíssimas.

"Paixão de fortes" ("My darling Clementine", 1946):

Baseado numa história verídica. Uma das muitas versões do lendário duelo em OK Corral, em que Wyatt Earp (Henry Fonda) e Doc Hollyday (Victor Mature) enfrentam a gangue dos Claytons. John Sturges filmou uma versão com Burt Lancaster e Kirk Douglas e nos anos 90 foram lançados mais dois filmes sobre o famoso duelo: "Tombstone", de Kevin Jarre, e "Wyatt Earp", de Lawrence Kasdam.

"Caravana de bravos" ("Wagon master", 1950):

Narra a trajetória de dois comerciantes de cavalo (Ben Johnson e Harry Carey Jr.) que são contratados para guiar um grupo de mórmons em direção à Terra Prometida. Não é dos filmes mais conhecidos de Ford, mas é um dos meus preferidos. Temas recorrentes na obra do diretor, como a valorização da lealdade e da perseverança, a amizade, o confronto com o preconceito e a hipocrisia estão presentes nesta aventura de orçamento médio que não conta com nenhuma grande estrela no seu elenco.

"Depois do vendaval" ("The quiet man", 1952):

Foi um filme acalentado durante anos por Ford, que, apesar de todo o seu prestígio, teve que lutar muito para convencer os estúdios a investirem nessa comédia romântica ambientada na Irlanda. A beleza e a sensualidade de John Wayne e Maureen O'Hara dão o tom - o casal protagoniza um dos beijos mais famosos da História do cinema, homenageado por Spielberg em "E.T.". O humor meio misógino pode incomodar os mais politicamente corretos; os que não se incomodarem muito com isso com certeza vão se divertir bastante.

"Rastros de ódio" ("The searchers", 1956):

É a obra-prima de John Ford. A revista "New York" o considerou o mais influente filme americano de todos os tempos. Foi homenageado por Wenders em "Paris, Texas" e por Scorsese em "Taxi driver". "Rastros de ódio" tem interpretações pulsantes e diálogos antológicos. É uma obra cheia de camadas, talvez seja o filme a que mais vezes assisti na vida; cada vez que vejo de novo descubro coisas diferentes. Quando "Cidade Baixa", meu primeiro longa, foi lançado em Londres, fui convidado por um jornalista do "Daily Telegraph" a participar da coluna Filmmakers on Film, na qual diretores falam do seu filme preferido. Escolhi "Rastros de ódio", que também era o favorito do jornalista. Para comemorar a coincidência, ele me convidou para fazer um tour pela "cidade baixa" londrina.

"O homem que matou o facínora" ("The man who shot Liberty Valance", 1962):

O último grande filme de Ford é uma espécie de canto dos cisnes de uma era nos grandes estúdios. A história é nostalgicamente narrada em flashback pelo senador Ranson Stodard (James Stuart), que volta para o Oeste para o enterro do desconhecido Tom Doniphon (John Wayne) e conta para um jovem repórter a verdadeira história do homem que matou o bandido Liberty Valance. No final do filme, o jornalista corre para publicar o furo de reportagem, mas o editor rasga a entrevista e comenta: "Quando os fatos se transformam em lenda, publique-se a lenda."

Termino meu top ten sem muita convicção... Como fazer uma antologia de Ford sem mencionar "O cavalo de ferro", um dos maiores clássicos do cinema silencioso? Como não citar os filmes de cavalaria e deixar de fora "Como era verde o meu vale"? O meu conselho para quem curte o bom cinema é o seguinte: arregacem as mangas e assistam a tudo que puderem assistir.

FONTE: Yahoo

http://br.noticias.yahoo.com/
FOTO: sgnewwave.com

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