sexta-feira, outubro 08, 2010

A catenga do Mestre Aurélio – Carlos Méro

Carlos Méro

Já faz um bom pedaço de tempo. Mas não vou negar que me lembro como se houvesse acontecido hoje.

E nisso garanto que se deu em Maceió, em um daqueles dias em que o Mestre Aurélio Buarque de Holanda Ferreira, já depois de haver vestido o fardão e de ter marcado os começos da sua presença na história da Academia Brasileira de Letras, cá viera para fazer não sei o quê, embora aproveitando a deixa para aquietar as saudades de tempos remotos.

Pois foi quando um renomado beletrista, também com berço nas Alagoas, mal esperou que Aurélio se despedisse, desse as costas e desaparecesse porta afora, para se desfazer das babosas mesuras com que, enquanto ainda estava o Mestre de corpo presente, parecia reverenciá-lo, para logo apagar o sorriso e peçonhentamente espinafrá-lo.

- Para dizer a verdade eu não dou um tostão furado pelo Dicionário dele. – Prontamente vomitou. – É tão incompleto que nem registra a palavra catenga.

E advertiu ser este o nome como aqui são chamadas aquelas víboras manemolentes e de peles brancosas e transparentes (também conhecidas como bribas ou lagartixas) que, durante as noites, costumam escalar paredes e andejar por caibros e ripas, na penitente perseguição ao sustento de cada dia.

A conversa não chegou a caminhar, perdendo-se a incômoda observação no meio do inevitável constrangimento que infectou o ambiente. Afinal de contas, ainda que tal omissão pudesse então existisse, quando pouco não seria bastante para tamanha abominação, mesmo porque fazer dicionário de língua viva é coisa que tem hora para começar e nunca para terminar, mesmo porque as palavras surgem, resistem, somem e até por vezes retornam, não sendo raros os casos em que os conceitos que expressam venham a encarnar em outros vocábulos.

A verdade, contudo, era que a alfinetada tinha endereço certo e este não era o dicionário, mas sim o alagoano que cometera a imprudência de se distinguir por produzi-lo, passagem, como tantas outras, a que já estamos muito mais do que acostumados por essas bandas.

Outra vez, lá em Belo Horizonte, houve um conferencista que caiu na tolice de citar um jurista alagoano. Digo tolice, eis que tão logo terminou a sua fala e logo um alagoano tomou a palavra para desacreditar o conterrâneo, ainda que lhe esquecendo a obra para enodoar o homem.

E não mudou nada, visto que é atual o caso de alagoano que, pelo só fato de se ver apontado para posição destacada e permanente na cena global, já vê seu nome enlameado por obra e desgraça de alagoanos, aflitos em plantar venenos na imprensa de outros recantos pátrios.

É por essas e por outras que os alagoanos quase sempre só são reconhecidos em casa (mesmo assim por vezes a grande custo) quando já não há mais como se desmanchar o reconhecimento que lhes é tributado lá fora.

Mas isso é arte de catenga, bicho sem graça e conformado com o melancólico destino de caçar mosquitos, já que a natureza lhe negou fôlego para vencer oceanos, energia para desbravar florestas e asas, enfim, para sobrevoar a mediocridade.

Sobre o autor

Carlos Méro

da Academia Alagoana de Letras, do Instituto Histórico e Geográfico de Alagoas e da União Brasileira de Escritores.

www. twitter.com/carlosmero

FONTE: O JORNAL
http://www.ojornalweb.com/

Nenhum comentário:

Postar um comentário