12 de janeiro de 2010/N° 16213
REDAÇÃO DA UFRGS
Prova aborda impacto de deslizes do cotidiano
Candidatos foram estimulados a descrever o resultado das infrações do dia a dia na formação da sociedade brasileiraAlém de classificar vestibulandos, a prova de redação aplicada ontem pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) poderia ser empregada para selecionar bons cidadãos. Ao abordar o impacto da falta de civilidade no cotidiano, o tema escancara um desconforto vivido por todos e confirmado por especialistas. A constatação é de que os pequenos deslizes estão resultando em grande dano à sociedade brasileira.
O filósofo e professor de ética da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) Roberto Romano testemunhou ontem mesmo a atualidade do tema explorado pelos vestibulandos. Ao chegar a uma agência bancária da capital paulista, percebeu um carro estacionar em uma vaga reservada a portadores de deficiência. Dele, saiu um jovem sem qualquer dificuldade de locomoção.
– A vida coletiva é um inferno no Brasil. Essas pequenas falhas de comportamento, multiplicadas, se transformam em um grande problema para todos – declara o filósofo.
Para Romano, a falta de polidez se tornou uma característica devido à urbanização galopante desde o século passado. A rapidez com que a antiga vida em pequenas comunidades deu lugar à convivência em metrópoles abarrotadas não foi acompanhada pela aquisição de uma cultura urbana adequada.
– Não desenvolvemos novas regras de vida para substituir as antigas normas da cultura caipira – constata.
Esse panorama histórico vem sendo agravado pela sensação geral de impunidade – que cria um ambiente propício ao surgimento de uma epidemia de descortesia e descumprimento de leis. Essa foi uma das constatações que levaram o médico perito José Andersen Cavalcanti Júnior, 55 anos, a escrever um artigo sobre o tema. Publicado em ZH dia 13 de novembro, o texto teve trecho selecionado e reproduzido na prova da UFRGS para reflexão dos candidatos.
– Vejo que as pessoas se indignam com os grandes escândalos de corrupção, com os políticos de Brasília, mas têm dificuldade em reconhecer os seus erros do dia a dia. A impunidade estimula esse tipo de comportamento. Se os grandes não são punidos, por que eu deveria ser? – argumenta.
Essa combinação de fatores torna comum uma série de atitudes prejudiciais para a vida em sociedade, como jogar lixo na rua, fumar em local proibido ou circular com o carro pelo acostamento da via. Cavalcanti Júnior conta que, diante de uma escola de Porto Alegre, costuma abordar pais que param com o carro sobre a faixa de segurança.
– Pergunto se, além de parar em fila dupla, ainda tem de ficar sobre a faixa. Mas sempre respondem que é apenas por um minutinho, ou que precisam pegar o filho.
Para a professora de Ética e Filosofia Política da Unisinos Cecília Pires, atos como esse estão cada vez mais comuns.
– Nunca vi tanta falta de educação como agora. Não sei a que atribuir isso. Mas é perceptível, desde a violência nas escolas até as menores coisas do dia a dia – alarma-se.
Para os especialistas, o caminho até uma sociedade mais sadia depende da educação das novas gerações e da reflexão dos mais velhos – até perceberem que pequenos atos têm grandes consequências.
LEANDRO RODRIGUES E MARCELO GONZATTO
FONTE: Zero Hora
FOTO: EncodedBy: Ben Goossens
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Interessante este post. Em Portugal a situação é idêntica. Até no que toca à sensação que a impunidade dá de que tudo é permitido para satisfazer o meu "eu".
ResponderExcluirChama-se egoísmo, não é? :)
Deveria doer no bolso também..., por José Andersen Cavalcanti*Tive a oportunidade de ter publicado em Artigos de ZH, em 13 de novembro de 2009, “Indignação nacional começa em casa”, tema da Redação do Vestibular da UFRGS desse ano. Tratava dos pequenos “delitos” que cometemos em nossa vida diária e a nossa indignação manifestada, em público geralmente, contra os grandes desfalques contra o patrimônio público que vêm ao nosso conhecimento graças à imprensa.
ResponderExcluirMas gostaria de ir adiante, em busca das soluções e não só na mera constatação de um comportamento que sabemos existir e que nos serve bem até como mecanismo de defesa – projetamos apenas nos outros aquelas “qualidades” que não aceitamos conscientemente em nós mesmos. São só os outros que são imprudentes no trânsito, são só os outros que dão um jeitinho de burlar as regras de convivência diária, são só os outros que vão, pelo acostamento, até a praia, impunemente, na maioria das vezes.
E esse é o outro elemento do binômio, a meu ver, que nos faz assim: a impunidade, percebida ou real, daqueles que transgrediram as regras legais ou aceitas por todos nós. Através de uma falsa comparação – se ele fez algo muito mais grave e ficou impune – eu, que apenas cometi algo menor, banal até, automaticamente me perdoo... Esse é um falso raciocínio, uma falsa comparação de valores mas que também nos serve muito bem como desculpa.
Onde eu gostaria de chegar: os resultados de um sistema educacional eficaz por certo ainda demorarão muitos anos para serem sentidos pela nossa sociedade, onde as pessoas, espontaneamente, conviverão dentro das normas de urbanidade esperadas e o número de atos prejudiciais à sociedade serão em menor número. O que nos resta até lá além de boas intenções? A lei, no seu aspecto mais evidente para toda a sociedade: a efetiva punição.
Por exemplo, todas as notícias que lemos, e a cada feriado são em maior número, falam em “acidentes” de trânsito ocorridos... O condutor embriagado, dirigindo imprudentemente e causador de mortes de terceiros, não seria exatamente, a meu ver, uma vítima de um “acidente fortuito”. Isso não é exatamente a definição de acidente! As circunstâncias eram conhecidas e o fim é previsível.
Vejamos os custos, apenas, por exemplo, ao sistema de saúde público (que é quem arca realmente nos casos de alta complexidade e não os planos de saúde particulares) de um “acidente” desses. Estamos todos nós, contribuindo financeiramente, quer queiramos ou não, para o amparo do “acidentado” pelo Estado, independentemente da irresponsabilidade assumida, embriaguês, imprudência e por aí vai.
A proposta é polêmica, mas expressa o que muita gente gostaria de dizer e ver acontecer: pague, financeiramente também, pelos seus atos, e você pensará um pouco mais antes de cometê-los! Em se sabendo que não se tratou de um acidente
* Médico perito
jose_andersen_7@hotmail.com