Alguns contos inéditos de Nelson Rodrigues
Há material de sobra, pois Nelson produziu quase dois mil desses contos ao longo dos dez anos em que a coluna circulou no jornal Última Hora, onde ele escrevia sobre casamento, sexo, adultério, morte etc
Luiz Zanin Oricchio
Da Reportagem
A vida como ela é. Esse era o título de uma famosa coluna de Nelson Rodrigues, mantida entre 1951 e 1961 no jornal "Última Hora". Coluna diária, seis vezes por semana, na qual Nelson improvisava em torno de poucos temas, o casamento, o sexo, a morte - em especial o adultério, presente em quase todos os textos. Algumas coletâneas já foram lançadas com seletas dessas crônicas cariocas. Há material de sobra, pois Nelson produziu quase dois mil desses contos ao longo dos dez anos em que a coluna circulou. Sai agora mais uma delas - "Não Tenho Culpa Que a Vida Seja Como Ela É" (Agir, 264 págs., R$ 44,90) -, composta por textos até agora inéditos sob a forma de livro. Entre as 39 crônicas, duas são de Suzana Flag, pseudônimo usado quando escrevia folhetins.
A própria história da coluna é curiosa. Nelson foi convidado a criá-la pelo dono do jornal, Samuel Wainer. A ideia de Wainer era recolher fatos da vida real, pinçados do noticiário policial, e valorizá-los com um toque ficcional. Nelson começou a fazer assim mesmo. Mas, logo em seguida, liberou-se das assim chamadas amarras da realidade e deu asas à imaginação, fértil, como se sabe. Passou a inventar as histórias e, quando o diretor do jornal deu por isso, já era tarde. A coluna passara a ser o maior sucesso da imprensa carioca e Nelson conquistara um precioso espaço de experimentação para suas ideias. Podia, com comodidade, medir o pulso de sua repercussão pública através de um meio de divulgação de massa, como era o jornal de então.
O modus operandi do escritor é descrito por seu biógrafo Ruy Castro (em O Anjo Pornográfico) como sendo de uma regularidade de relógio suíço. Nelson era dos primeiros a chegar à redação, com seu terno mal ajambrado, gravata solta, suspensórios e camiseta regata por baixo da camisa. Sentava-se à máquina e acendia o primeiro dos vários cigarros que fumaria ao longo do trabalho. Batia nas teclas, levantava-se, ia tomar cafezinho, passeava entre as mesas, conversava com os colegas sobre assuntos que nada tinham a ver com o que escrevia, futebol em especial. Voltava ao texto, como se nada tivesse acontecido. Às vezes gritava pedindo auxílio: "Me deem um nome bom para um corno!" "Gusmão", alguém sugeria. "Ótimo", aprovava. E, desse modo, duas horas depois, em plena balbúrdia da redação, nascia mais um conto de "A Vida Como Ela É"... Assim, com reticências e tudo e 130 linhas de texto.
Na redação da "Última Hora", situada na Avenida Presidente Vargas, surgia mais um pequeno capítulo dessa extensa (e intensa) reflexão sobre a mentalidade da classe média e pequena burguesia carioca. Variações em torno de poucos temas, como já disse, mesmo porque, um dia, em momento de autoavaliação, Nelson concluiu que sua obra não passava de uma longa meditação sobre o amor e a morte. Na coluna do jornal, sua lente apurava o foco ainda mais. Valendo-se da crônica policial, que ele próprio praticara, mas também do que ouvia falar, casos contados pelas esquinas, e saídos de sua imaginação febril, Nelson construía, à sua maneira, esse tratado multifacetado do comportamento amoroso de uma época. Seus personagens, como descreve o biógrafo, em geral viviam na zona norte, trabalhavam no centro e prevaricavam em Copacabana.
O primeiro texto é justamente aquele que dá título à coletânea - "Não Tenho Culpa Que a Vida Seja Como Ela É". Nele, Nelson explica as circunstâncias em que foi convidado por Wainer a criar a coluna. A ideia geral ia ao encontro de toda uma concepção mental do jornalista sobre seu ofício. Wainer queria dar ao fato policial "uma categoria, digamos assim, poética, dramática". Desse modo, um atropelamento, um suicídio, um adultério, seriam mais que "fatos", objetivamente falando. Aliás, para Nelson, a objetividade não passava de uma forma entre outras da idiotia. Interessava-lhe, mais que o fato, o sentido do fato. O sentido trágico, dramático, cômico do que acontecia. Aquilo que faria do fato e, em especial, do fato policial, uma manifestação privilegiada do humano.
"O fato de polícia, seja qual for, representa o grande manancial poético de cada dia", acreditava. À sua maneira, ele ironizava a doutrina da objetividade, introduzida no jornalismo brasileiro naqueles anos e copiada de forma acrítica da matriz norte-americana. Dizia que se as mortes de Anna Karenina e Emma Bovary fossem descritas por um jornalista brasileiro, sairiam assim: "Por motivos ignorados, pôs termo aos seus dias Anna Karenina, branca, casada, de tantos anos, residente à rua tal... Quanto a Emma Bovary, teria ‘ingerido’ violento tóxico, sendo o cadáver remetido ao Instituto Médico Legal, etc., etc." Nelson Rodrigues queria para suas adúlteras e suicidas a dignidade de personagens saídos da pena de um Tolstoi ou de um Flaubert, não a fria objetividade do jargão jornalístico.
Se Nelson buscava o sentido trágico do fato, o fazia em nome do dramaturgo que já era. Escrevendo para um veículo popular, ele se desculpava perante o leitor de que suas colunas seriam invariavelmente tristes porque se debruçavam sobre o sofrimento humano. Sobre a dor dos outros. Mesmo que essa dor e sofrimento viessem justamente da busca pelo prazer. Nelson, como grande moralista que era, não podia deixar de viver atento a essa contradição. Mais o ser humano buscava o prazer do sexo e a realização no amor, mais exposto estava à degradação e ao sofrimento. Era tudo isso que exprimia essa coluna em aparência monotemática, mas de riqueza extraordinária em suas variações.
Não faltaram críticas ao tom desses textos, desabridos, crus, atentos ao detalhe sórdido. Com eles, Nelson solidificou sua fama de "tarado", obcecado pelo sexo, depravado e corruptor da juventude. Ele se defendia com simplicidade dizendo que a virtude não pode vir da ignorância e sim do conhecimento do pecado e do livre-arbítrio para cometê-lo ou não. Sabia do preconceito, mas ainda se espantava quando o reconheciam na rua e lhe diziam: "Seu Nelson, o senhor vai me desculpar, mas não deixo a minha noiva ler a sua coluna." Não raro, esse tipo de observação servia como ponto de partida para um novo texto sobre a vida como ela era, e não como deveria ser.
FONTE: Diário de Cuiabá - Cuiabá,MT,Brazil
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