domingo, maio 03, 2009

Para além do bem e do mal


TEATRO (10/4/2009)
Para além do bem e do mal

Protagonizado pela atriz Denise Fraga, “A alma boa de Setsuan” é cartaz hoje e amanhã no TJA

Parábola. Substantivo feminino. Do latim, parabola; do grego, parabolé. “Narração alegórica na qual o conjunto de elementos evoca, por comparação, outras realidades de ordem superior”, diz o bom e velho Aurélio.

A alma boa de Setsuan”, peça da obra do alemão Bertolt Brecht (1898-1956), nada mais é que exemplo singular desse jogo de sentidos. Corria o ano de 1941, quando de sua escrita. Então, o dramaturgo vivia em exílio por conta da segunda grande guerra. O mundo estava dividido ao extremo.

Diante disso, Brecht desafia as limitações do período e traduz aquelas trincheiras em cenas que venceram a lógica do tempo. Assim, convida seus públicos a conhecer a vida da camponesa Chen Tê, prostituta da província de Setsuan. A ressaltar: em “Ascensão e queda da cidade de Mahagonny”, de 1930, o autor já havia recorrido a tipos semelhantes.

Nesse encontro posterior, porém, Chen Tê tem uma dimensão central sem precedentes. Em sua narrativa, Brecht flagra o esforço de três deuses para encontrar uma única alma boa sobre a Terra. Para a surpresa geral, a miserável Chen Tê é a tal.

Entre a vida e o palco

Como recompensa, os deuses a remuneram com uma certa quantia em dinheiro. O suficiente para que ela mude os rumos de sua vida. Com isso, Chen Tê abre uma tabacaria. Dona de seu próprio negócio, ela desperta para o fato de ser recorrentemente explorada. Cansada, ela decide reverter a situação, mas a verdade é que tem a consciência de que não consegue dizer não a ninguém.

Conflito desenhado, Brecht abre espaço para uma experiência meta-teatral. Chen Tê constrói um personagem para si mesma e passa a fazer as vezes de Chui Ta, um primo seu, nada bonzinho.

Esse jogo de papéis, no entanto, é conduzido com muita graça. Sim, “A alma boa de Setsuan” é uma comédia. No confronto entre masculino e feminino, Brecht propõe situações quase circenses.

Entre elas, a gravidez de Chen Tê. Para o espanto da comunidade de Setsuan, é a barriga de Chui Ta que começa a crescer. E por aí vai. Assinada por Marco Antônio Braz e com elenco capitaneado pela atriz Denise Fraga, a nova versão brasileira do espetáculo tem reafirmado a longevidade da dramaturgia.

Com apresentações hoje a amanhã em Fortaleza, “A alma boa de Setsuan” é uma das produções mais comentadas de 2008, tendo rendido a Braz o Prêmio Shell de Melhor Direção. Sem dúvida, uma resposta de peso ao eterno desafio de encenar Brecht, sem se fechar em suas idéias. FIQUE
POR DENTRO

"A alma boa de Setsuan" e o Brasil

Encenada no Brasil pela primeira vez em 1958, ´A alma boa de Setsuan´ entrou para a história do teatro brasileiro como a primeira montagem profissional de um texto do alemão Bertolt Brecht. Com direção de Flaminio Bollini (1924-1978), chamado da Itália para comandar o Teatro Brasileiro de Comédia (TBC), o espetáculo aproximou os artistas locais das revolucionárias idéias do Teatro Épico.

Embora formalmente vinculado ao TBC paulistano, Bollini assina a montagem para o elenco do Teatro Maria Della Costa. Muito comentada, a produção, grandiosa cenicamente, acabou sendo recebida com parcimônia pelo público. Ao optar por uma cenografia cheia de gráficos, denunciando a alta do custo de vida, e pela recitação das canções pelos atores, o encenador foi acusado de realizar um espetáculo frio, em que o efeito de distanciamento prejudica o resultado estético.


ENTREVISTA DENISE FRAGA*

"Essa peça me deu uma fé danada de fazer o teatro em que acredito"

É mito ou verdade a idéia de que se dedicar ao teatro implica em diminuir a atuação em outras mídias?

É verdade. Muito dessa coisa de teatro de sexta a domingo, acredito, deve-se ao fato de os artistas trabalharem durante a semana na televisão. Para mim, o teatro é essencial, porque é lá onde a gente se fortalece, onde a gente adquire vigor para se expressar bem em outros meios. Por isso, acho que nós, atores, temos que fazer do teatro um momento e um espaço de resistência.

No caso de “A alma boa de Setsuan”, o seu envolvimento está além da cena. Facilita alguma coisa, em termos de produção, a projeção que você tem na televisão e no cinema?

Facilita, sem dúvida. A comunicabilidade que a gente tem na TV abre portas, sim, mas, no caso “A alma boa de Setsuan”, o mais importante é que estamos chegando com um Brecht a pessoas que, talvez, jamais se interessassem por ele. Quem me conhece da televisão e vai ao teatro sai de lá pensando num tal de Brecht. Isso, para mim, é muito importante.

Que tipo de retorno o teatro te dá enquanto atriz?

O teatro exige do ator um estado, físico e emocional, pleno. Na televisão e no cinema, por exemplo, tudo é muito concentrado. No palco, a exigência é outra e isso passa pelo trabalho de corpo, pelo trabalho de voz. O teatro faz com que o ator se confronte com a necessidade de se expandir. Além disso, o teatro tem um poder ritualístico, um poder de encontro, que o ator só exercita no palco. O teatro é fruto de uma combinação única entre quem assiste e quem faz de que ali, naquele momento específico, tudo é permitido. Isso é grandioso!

Em 20 anos, esse é o seu sexto trabalho no teatro. Que vínculo você encontra entre “Trair e coçar, é só começar!”, ´A Quarta Estação´, “5 X Comédia”, “3 Versões da Vida”, “Ricardo III” e “A alma boa de Setsuan”?

O que permeia as minhas escolhas no teatro é essa linha fina entre o humor e o drama. A meu ver, o humor é um recurso extremamente transgressor. Só é capaz de rir aquele que entende. Muitas vezes, com uma tirada engraçada pequena você é capaz de atingir com uma profundidade absurda o coração e a mente de um sujeito. Eu me emociono ao ver alguém rindo, acho tão bonitinho.

Você tem dito que o processo de montagem de “A alma boa de Setsuan” nasceu do seu interesse em trabalhar com o diretor Marco Antônio Braz. Como chegaram num texto do Brecht, já que o mais natural seria chegar num Nelson Rodrigues, grande especialidade do Marco Antônio?

Foi o humor que nos levou ao Brecht. Quando o Marco Antônio me apresentou “A alma boa de Setsuan”, ele dizia: “Quero provar que Brecht é divertido”. E é mesmo. Muito. “A alma boa de Setsuan” é uma comédia engraçadíssima, as pessoas riem muito, se divertem. O próprio Brecht dizia que não há discurso sem divertimento. Eu acredito nisso plenamente. Eu acredito no poder da diversão para a reflexão. Esse, na verdade, é o lema do meu trabalho. Eu acredito no humor, no poder da comunicação, no teatro popular... Não acho que a comédia, para fazer rir, tenha que ser rasteira. Muito pelo contrário. O Brecht era um artista de cabaré, e, não, apenas um teórico do teatro.

“A alma boa de Setsuan” é uma peça de 1941, uma época em que o mundo estava em guerra e o próprio Brecht vivia numa condição de exilado. O texto se mantém atual?

Completamente. Agora, eu defendo que “A alma boa de Setsuan” deva ter uma encenação fixa a cada dez anos. A peça é muito simples, muito delicada, mas muito definitiva também. Com muita graça, o Brecht, na verdade, está nos perguntando até quando a gente vai preferir conviver assim, se tratando mal. Eu sou daquelas que acredita no poder gentileza. Nunca me senti, no teatro, falando algo que me tocasse tanto. Essa peça me deu uma fé danada de fazer o teatro em que acredito. O homem foi feito para viver junto, e, não, para se isolar em bolhas.

“A alma boa de Setsuan” faz a gente pensar na necessidade e importância de conviver.

O diretor Marco Antônio Braz tem citado Heiner Müller, dizendo que “encenar Brecht, sem trair Brecht, não é fazer Brecht”. Você concorda com eles?

Eu adoro isso. O Arnaldo Jabor foi ver nosso espetáculo e disse no final: “Nossa, o Brecht iria adorar!”. Isso é muito gratificante. A gente trabalhou com o Brecht sem se amarrar em teorias. Fala-se muito do distanciamento, mas hoje parece quase desnecessário reforçar para uma pessoa que vai ao teatro que ela está vendo uma representação. Quem não sabe disso hoje em dia? Então, a gente usa os recursos do Brecht de forma leve, descontraída. “A alma boa de Setsuan” é uma peça para se divertir. Divertir e pensar.

Atriz

Mais informações:

"A alma boa de Setsuan", com Denise Fraga no elenco e direção de Marco Antônio Braz, é cartaz de hoje, às 21h, e amanhã, às 19h e 21h, no Theatro José de Alencar.

Ingressos: R$ 60,00 (inteira) e R$ 30,00 (meia), à venda na Saga Aldeota (Av. Santos Dumont, 2817 - Telefone: 3486 1400). Contato: 3101 2583.

MAGELA LIMA
Repórter

FONTE (foto incluída): Diário do Nordeste (Assinatura) - Fortaleza,CE,Brazil
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