sexta-feira, maio 08, 2009

Misses Lia’s house



Este texto foi publicado originalmente no jornal Público.
Lia Rodrigues levanta-se sempre por volta das seis da manhã. Pouco depois já está sentada junto ao computador planejando o dia que será longo. Terá que rever contratos, verificar se os materiais de construção chegaram ao local, passar pelo electricista, negociar com o empreiteiro, encontrar quem lhe ofereça o melhor preço para os azulejos, marcar reuniões com investidores, montar andaimes e reunir a sua equipa.
Lia Rodrigues é coreógrafa, mora no Rio de Janeiro e o local onde os materiais de construção devem chegar é um armazém degradado de 1200 metros quadrados, que há quinze anos era uma fábrica de andaimes, e que fica no fim de uma rua na comunidade Nova Holanda, na terra batida de uma das maiores favelas do Rio de Janeiro, a Maré.
É o seu novo desafio, depois de ter fundado e dirigido durante catorze anos o Panorama Rio Dança, hoje dirigido por Nayse Lopez e Eduardo Bonito, e de há dezenove estar à frente da sua própria companhia, com um total de vinte e três elementos, entre administrativos e bailarinos pagos mensalmente. “É um trabalho árduo” confessa, “mas estou super optimista”, diz, atropelando as idéias com uma força discursiva contagiante.
Em novembro passado Lia conduziu-nos, e a um pequeno grupo de programadores, a este seu novo desafio, a construção de um centro cultural no meio de uma favela composta por dezasseis comunidades onde vivem 144 mil habitantes em casas encavalitadas umas nas outras e estendidas ao longo de quase vinte quilómetros, indo do aeroporto António Carlos Jobim até à zona norte do Rio de Janeiro.
Ao longo da viagem foi intercalando o relato dos sucessos já garantidos com algumas precauções que deveríamos ter em conta. E apesar de já serem muitos – sobretudo a integração na comunidade -, foram essas regras que prenderam a atenção. Não usar cinto de segurança porque “quando o tirares vai parecer que estás a puxar de uma arma”, deixar as luzes do carro acesas quando atravessarmos as ruas “para que eles te vejam”, não fixar o olhar demoradamente em algo ou alguém. Eles são os traficantes e bandidos que controlam a Maré. Estão divididos em três gangs: Comando Vermelho, Amigos dos Amigos e Terceiro Comando. A zona onde Lia está a desenvolver o projecto, chamada Nova Holanda, é controlada pelo Comando Vermelho e alberga 22 mil habitantes.
“Favela ser só violência é coisa de Cidade de Deus”, diz a coreógrafa referindo-se ao filme de Fernando Meirelles que foi um sucesso à escala global, transformando a violência em algo pop e fetichista. “É a ignorância que assusta. Os traficantes são um por cento da favela”, assegura. Mas uma percentagem que toma a dianteira na imagem que passa para o exterior e que é difícil combater. “A força que têm vem da polícia, corrupta, que faz acordos com os bandidos por causa da droga”. O que vemos nos filmes, em Cidade de Deus e em Tropa de Elite - para citar outro filme que fez as delícias dos humanistas encartados pela diplomacia retórica e burocrática europeia, - vemo-lo também na favela. Há fogos-de-artíficio quando chega um novo carregamento de droga ou armas (embora, dizem-nos, se tenha tornado um hábito tão recorrente que “agora tudo é uma desculpa para lançar foguetes”). Há miúdos que carregam armas como se fosse uma extensão natural do corpo. Há negócios clandestinos feitos na escuridão de um vão de escadas.
Mas também há escolas e espaços de internet gratuitos, cabeleireiros, restaurantes e lojas de celular com esquemas mais ou menos legais para desbloqueamento de cartões como em qualquer rua de qualquer cidade. E cartazes, muitos cartazes com promessas políticas que vão sendo adiadas. “O poder político não faz nada por isto. É abandonado sim. O governo não está aqui pelas pessoas e elas sentem-se abandonadas. A cidade sente-se abandonada. Mas é um bairro com uma vida completamente normal. Um bairro com todas as dificuldades que um bairro pobre tem”, garante Lia que em 2003 instalou a sua companhia de dança na favela, então no bairro do Timbau.
No final de 2007, com a divisão interna da estrutura que a albergava, mudou-se para a Nova Holanda, integrando a REDES, uma organização não-governamental que se dedica a acções em múltiplas áreas temáticas – meio-ambiente, educação, participação comunitária, combates à violência – que depois são desenvolvidas através de projectos diversos. Um deles é a presença da companhia de dança Lia Rodrigues, que trabalha em estreita relação com uma escola dirigida pela bailarina e coreógrafa Silvia Soter.
A coreógrafa tem de tal forma confiança nas gentes da favela que deixa o carro destrancado com o computador lá dentro, seguindo em passo de corrida para a sede da associação que leva o nome da comunidade e que se destaca dos outros edifícios da Rua Sargento Silva Nunes, também por pavimentar, por parecer não ir desabar a qualquer altura por causa das construções ilegais. “Sinto-me mais segura cá dentro do que nas ruas do Rio, onde chegam com armas e assaltam por coisa nenhuma”. Quer levar-nos a conhecer as pessoas, as que estudam química e português, matemática e história preparando-se para as provas de faculdade. “É véspera de jogo no Maracanã (Fluminense – Vasco da Gama), mas só saem daqui quando tiverem aprendido tudo”, diz Edson Dinis, o gestor do projecto e outro entusiasta. É ele que nos leva pelos corredores do edifício de três andares, que nos mostra as salas para os vários níveis de ensino, e os estúdios onde os bailarinos da companhia de Lia ensaiam e dão aulas e onde falta o linóleo mas não faltam interessados, dos 9 aos 64. E são os dois, Lia e Edson que nos conduzem pelas ruas que têm nomes, mas muitas vezes é só isso que lhes permite serem ruas.
Esta zona, no centro do bairro, é menos labiríntica mas ainda assim percebe-se bem o improviso que sustenta a vida destas pessoas. O espaço entre as casas, de um lado e de outro, está coberto por cabos de telefone e televisão, os telhados, alguns ainda de zinco, suportam antenas de televisão enormes, também elas manietadas, as paredes de muitas casas ainda estão em tijolo e nem todas têm janelas. Mas nada disso impede que em cada sítio sejamos recebidos com o maior dos sorrisos. Lia fala dos pastéis “da galega” como os melhores que já comeu “no mundo”. E se tivermos sede “o bar do Zito tem o melhor chopinho (cerveja) do Rio”. No Sacolão Vida Nova são as cores fortes e o cheiro intenso da fruta que nos inebria. E por todo o lado se ouvem os preparativos para mais uma noite onde a quadra de samba já anda a preparar a participação no corso de Carnaval. Ouvem-se os acordes de “Eu sou mais do que um vencedor”, o samba-enredo que vão apresentar no Sambódromo. “Para ganhar”, diz a “galega”.
Lia também é mais do que uma vencedora. “Luto para me manter”, diz. Gosta da luta, da resistência e das dificuldades. No armazém, cujo tecto ruiu parcialmente, o chão está coberto de fezes de pombos e o cheiro a urina dos gatos dificulta a respiração. Mas é de investimento e de diálogo que se fala. “Há questões que me importam como coreógrafa e cidadã da cidade do Rio de Janeiro e é isso que trago para cá, é esse investimento que faço, porque recebo imenso também. É uma loucura, mas é tão legal. Dentro de toda a instabilidade do mundo, eu luto para ter este encontro. É a minha visão política do mundo”.
O encontro de que fala traduzir-se-á, a curto e médio prazo no centro cultural que quer ver nascer neste armazém insalubre. Garante que não é um projecto social, mas de “arte contemporânea, de criação, para abrir as portas a esta realidade. Não falamos todos a mesma linguagem, mas somos todos capazes de olhar para as mesmas coisas e relacionarmo-nos com elas”. E, ao contrário de vários projectos, também eles de cariz integrador, a Companhia Lia Rodrigues não é apenas residente na favela da Maré. Faz parte da vida desta imensa comunidade e contribui para a reformulação do discurso tendencioso e limitado que existe sobre as favelas e a acção social. “Pessoas são pessoas e a instabilidade faz parte dos processos”, diz. “É um trabalho árduo”, vai insistindo, e incluiu “uma permanente conquista do público que não tem o menor contacto com a arte”. E nada está assegurado.
Desde que está na comunidade da Nova Holanda ainda não se apercebeu se existe ou não uma regularidade no público, mas parte do acordo inclui a pré-estreia das peças de Lia na favela. É não só uma forma de agradecerem o apoio, mas também uma possibilidade de aproximação. “Há pessoas que nunca viram nada mas que tem exactamente as mesmas dúvidas que as [pessoas] que vão ao Théâtre de la Ville (em Paris, para onde prepara uma nova peça a estrear em Novembro deste ano). Gosto de fazer esse encontro entre o que se faz cá e o que se faz lá”. Por isso chama ao seu centro cultural – que na verdade, sublinha várias vezes, está a fazer para a comunidade -, um “entre-espaços”.
“A minha companhia é uma companhia de formação, não é só de criação”. As aulas dos seus bailarinos não incluem só dança, “também incluem dança”. “Discutimos, falamos, aprendemos, trocamos ideias sobre religião, filosofia, política, e eventualmente dançamos”, explica. Por isso é que quando vai ao ferro-velho para alugar um andaime e diz que não tem dinheiro para pagar, a resposta é, invariavelmente “damos um jeitinho, dona Lia”. As pessoas sentem que o projecto lhes pertence e as diferenças na definição de arte contemporânea e cultura esbatem-se quando um projecto é da responsabilidade de todos. “No trabalho de criação de um espaço lida-se com uma concretude própria. Estás na realidade total”. E que o tempo só ilusoriamente ajuda a suavizar.
Ao fim de cinco anos Lia não acha que as coisas se tenham tornado mais fáceis, nem acha que o esforço tenha um impacto directo nas suas peças, de uma rudez e aspereza, mas também de uma poética sufocante sem par. Mas encontra um paralelo no tempo que as coisas levam para serem realizadas. “O tempo é um luxo, é uma coisa muito preciosa e os artistas vivem na pressa de apresentar coisas, porque nunca há dinheiro, porque são as obrigações do mercado que levam a produzir algo novo. E eu resisto”. “Não sei o que isto traz às minhas criações, nem sei o que faz, mas sei o que traz ao dia a dia: as minhas obrigações são mais práticas. O tempo é importante por isso”.
Por isso é que amanhã, às seis da manhã, Lia Rodrigues vai voltar a levantar-se e a procurar a melhor forma de assegurar que não é ultrapassada pelas imagens feitas da violência, pelas pressões dos co-produtores, pela desconfiança dos habitantes da Maré, pelas dificuldades inerentes a uma obra e pelo natural e compreensível cansaço. Amanhã às seis da manhã Lia estará um dia mais perto da inauguração não de um novo centro cultural, mas de um outro significado da palavra favela.
O autor viajou a convite do Festival Panorama de Dança de 2008. A Companhia Lia Rodrigues tem patrocínio bianual da Petrobrás e conta com apoio da Fundação Prince Claus para o projeto do centro cultural.

FONTE (foto incluída): idanca.net - Brazil
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