22 DE MAIO DE 2009 - 16h55
José Carlos Ruy: Com quantas Capitus se faz uma literatura?
Ou melhor, quantos Bentinhos e Capitus cabem em uma literatura? Pelo recém lançado romance de Chico Buarque, Leite Derramado, sempre cabe mais um, apresentado de forma nova, enriquecida por multiplas determinações, para usar a famosa expressão cunhada por Karl Marx.
Por José Carlos Ruy*
José Carlos Ruy: Com quantas Capitus se faz uma literatura?
Ou melhor, quantos Bentinhos e Capitus cabem em uma literatura? Pelo recém lançado romance de Chico Buarque, Leite Derramado, sempre cabe mais um, apresentado de forma nova, enriquecida por multiplas determinações, para usar a famosa expressão cunhada por Karl Marx.
Por José Carlos Ruy*
Eulálio e sua sonhada Matilde, o casal desencontrado, protagonista das memórias de um centenário, recoloca, em outra circunstância, antagonismo semelhante ao que atormentou a consciência do primeiro Betinho, o de Dom Casmurro (Machado de Assis, de 1899). Um registro mais recente do mesmo drama é o caso de Nina e Valdo, de Crônica da casa assassinada (Lúcio Cardoso, de 1959). São tramas em que uma leitura superficial, e corriqueira, ressalta a traição feminina como tema, sem perceber o que há de mais profundo nelas: o pavor masculino da traição da mulher. O problema, nesta variante de leitura, é masculino e não feminino.
Mas isto é apenas o enredo para expor uma problemática mais complexa: o auge e a decadência de uma mesma oligarquia. Em Machado, ele é exposto com maestria em Dom Casmurro, e faz parte da aguda análise daquela elite que compõe seus romances da maturidade. Em Lúcio Cardoso, o cenário da lancinante decadência é um pequeno município da Serra da Mantiqueira, onde os Menezes tentam manter a mesma ultrapassada hierarquia social herdada dos séculos anteriores e que agora está completamente fora da realidade.
As memórias de Eulálio d´Assumpção - com o "d´" e o "p" nobilitantes no sobrenome - não tem esse sofrimento. É como se fosse o ponto de chegada da trajetória, ladeira abaixo, daquela mesma elite. Seu avô, um figurão do Império, dono de fazendas de cacau na Bahia e de café em São Paulo, estariam à vontade nos romances de Machado de Assis. Eulálio, já sem fortuna, relata - na verdade, delira - suas memórias no leito de um hospital público, às vésperas de completar cem anos. Desfila preconceitos de classe da mesma forma que essas famílias decadentes que fazem o teatro das grandezas sociais das gerações passadas, e agora perdidas.
Não há registro de dor nas memórias de Eulálio, mas de alienação em relação à própria decadência. Alienação nítida na incapacidade de ver sua situação atual com realismo, refugiando-se num passado mítico. A memória congela o tempo, e Eulálio vê seu neto?, bisneto? tataraneto?, sem saber em que lugar genealógico colocar aquele rapaz que traz, no sobrenome, o sinal da mudança e da aristocracia perdida: Eulálio d´Assumpção Palumba, onde Palumba indica a mistura daquela elite com os plebeíssimos imigrantes que vieram para o Brasil.
O texto de Chico Buarque chega a ser cruel em relação à autoimagem da oligarquia. Um exemplo é a apresentação cheia de ironia da pretensa ausência de preconceito racial. Sua existência é transparente na referência aos pares Eulálios / Balbinos que se sucedem em três gerações da família d´Assumpção, onde evidentemente os balbinos (escravo, o primeiro; ex-escravos seus descendentes) ocupam as posições subalternas. Esse preconceito mal disfarçado - cuja negação é um mecanismo para sua reafirmação e permanência - perpassa a relação entre Matilde, "a mais moreninha das congregadas marianas que cantaram na missa do meu pai", e a sogra, as freiras do colégio aristocrático onde teria estudado, ou os amigos franceses de Eulálio.
Verbalizando, sem julgamento moral, a fantasiosa autoimagem daqueles que se colocam acima dos demais, a descrição que faz deles é ao mesmo tempo a negação explícita e crua de palavras que não correspondem aos fatos reais, mas são usadas para amenizá-los ou ocultá-los.
O realismo é visível também no cuidado com que transforma em arte a errática memória de um idoso, que é fragmentária, com repetições sucessivas a partir das quais, como num quebra cabeças, os cacos das lembranças permitem a construção de um conjunto coerente. Aqui se revela o domínio da escrita que transforma o processo mental do idoso, observado cuidadosamente pelo autor, em matéria prima para a literatura. "A memória é deveras um pandemônio, mas está tudo lá dentro, depois de fuçar um pouco o dono é capaz de encontrar todas as coisas", diz Chico Buarque pela fala de Eulálio.
No futuro, talvez Chico Buarque de Holanda venha a ser reconhecido mais como escritor do que como o fantástico músico que é. Os poemas de suas canções já bastariam para colocá-lo entre os mestres da língua portuguesa. Com Leite Derramado, ele ombreia com os grandes prosadores do idioma, não só no bordado cuidadoso das palavras e das frases, mas sobretudo na arquitetura da obra.
Serviço:
Mas isto é apenas o enredo para expor uma problemática mais complexa: o auge e a decadência de uma mesma oligarquia. Em Machado, ele é exposto com maestria em Dom Casmurro, e faz parte da aguda análise daquela elite que compõe seus romances da maturidade. Em Lúcio Cardoso, o cenário da lancinante decadência é um pequeno município da Serra da Mantiqueira, onde os Menezes tentam manter a mesma ultrapassada hierarquia social herdada dos séculos anteriores e que agora está completamente fora da realidade.
As memórias de Eulálio d´Assumpção - com o "d´" e o "p" nobilitantes no sobrenome - não tem esse sofrimento. É como se fosse o ponto de chegada da trajetória, ladeira abaixo, daquela mesma elite. Seu avô, um figurão do Império, dono de fazendas de cacau na Bahia e de café em São Paulo, estariam à vontade nos romances de Machado de Assis. Eulálio, já sem fortuna, relata - na verdade, delira - suas memórias no leito de um hospital público, às vésperas de completar cem anos. Desfila preconceitos de classe da mesma forma que essas famílias decadentes que fazem o teatro das grandezas sociais das gerações passadas, e agora perdidas.
Não há registro de dor nas memórias de Eulálio, mas de alienação em relação à própria decadência. Alienação nítida na incapacidade de ver sua situação atual com realismo, refugiando-se num passado mítico. A memória congela o tempo, e Eulálio vê seu neto?, bisneto? tataraneto?, sem saber em que lugar genealógico colocar aquele rapaz que traz, no sobrenome, o sinal da mudança e da aristocracia perdida: Eulálio d´Assumpção Palumba, onde Palumba indica a mistura daquela elite com os plebeíssimos imigrantes que vieram para o Brasil.
O texto de Chico Buarque chega a ser cruel em relação à autoimagem da oligarquia. Um exemplo é a apresentação cheia de ironia da pretensa ausência de preconceito racial. Sua existência é transparente na referência aos pares Eulálios / Balbinos que se sucedem em três gerações da família d´Assumpção, onde evidentemente os balbinos (escravo, o primeiro; ex-escravos seus descendentes) ocupam as posições subalternas. Esse preconceito mal disfarçado - cuja negação é um mecanismo para sua reafirmação e permanência - perpassa a relação entre Matilde, "a mais moreninha das congregadas marianas que cantaram na missa do meu pai", e a sogra, as freiras do colégio aristocrático onde teria estudado, ou os amigos franceses de Eulálio.
Verbalizando, sem julgamento moral, a fantasiosa autoimagem daqueles que se colocam acima dos demais, a descrição que faz deles é ao mesmo tempo a negação explícita e crua de palavras que não correspondem aos fatos reais, mas são usadas para amenizá-los ou ocultá-los.
O realismo é visível também no cuidado com que transforma em arte a errática memória de um idoso, que é fragmentária, com repetições sucessivas a partir das quais, como num quebra cabeças, os cacos das lembranças permitem a construção de um conjunto coerente. Aqui se revela o domínio da escrita que transforma o processo mental do idoso, observado cuidadosamente pelo autor, em matéria prima para a literatura. "A memória é deveras um pandemônio, mas está tudo lá dentro, depois de fuçar um pouco o dono é capaz de encontrar todas as coisas", diz Chico Buarque pela fala de Eulálio.
No futuro, talvez Chico Buarque de Holanda venha a ser reconhecido mais como escritor do que como o fantástico músico que é. Os poemas de suas canções já bastariam para colocá-lo entre os mestres da língua portuguesa. Com Leite Derramado, ele ombreia com os grandes prosadores do idioma, não só no bordado cuidadoso das palavras e das frases, mas sobretudo na arquitetura da obra.
Serviço:
Livro: Leite Derramado
Autor: Chico Buarque
Editora: Companhia das Letras, 2009
Páginas: 200
- Veja também vídeo com a leitura do 1º Capítulo por Chico Buarque.
* José Carlos Ruy é jornalista e editor do jornal A Classe Operária.
- Veja também vídeo com a leitura do 1º Capítulo por Chico Buarque.
* José Carlos Ruy é jornalista e editor do jornal A Classe Operária.
FONTE (imagem incluída): Vermelho - São Paulo,SP,Brazil
para mim o Enza Pound me parece extremamente snob,
ResponderExcluire se fossemos ler apenas sob otica dele seriamos iguais aos burros que andam de viseira,,,,