quinta-feira, abril 09, 2009

Inventar palavras até ao limite do risco


Correntes D'Escritas
Inventar palavras até ao limite do risco

É o mais importante encontro literário em Portugal. Foram mais cinco dias super-preenchidos das décimas Correntes D’Escritas.

Conceição Lima, da revista África 21 *A dupla de anfitriões Manuela Ribeiro/Francisco Guedes desdobra-se entre a profusão de abraços e as alíneas de um programa compacto como um ovo. «Só tenho pena de não poder dedicar-vos mais tempo», sorri Manuela, a alavanca das Correntes, um olho fixo na marcha das coisas, o outro circunvagando pelos cachos de convidados. Eleva o «trabalho de equipa», aquilo que alguém descreve como «profissionalização sem perder a ternura».

Muitos são, na verdade, velhos amigos, alguns infalíveis fregueses da Póvoa de Varzim, desde que foram forjados os primeiros elos das Correntes D’Escritas. Dez anos. Entre 11 e 14 de Fevereiro, o clima foi pois de celebração e árduo trabalho, a vir de trás e com orçamento aumentado para atender quase cerca de 150 nomes ibéricos, latino-americanos e africanos, reiterando a robustez dessa visão de encontro e convívio.

Pelos espaços africanos estão os angolanos Luandino Vieira, Eduardo Bettencourt Pinto, Jorge Arrimar, Manuel Rui e Ondjaki; de Cabo Verde, Corsino Fortes, Germano Almeida e Joaquim Arena; de Moçambique, Paulina Chiziane, Luís Carlos Patraquim, Ascêncio de Freitas e Guita Júnior; e Conceição Lima, por São Tomé e Príncipe. Do Brasil, Lêdo Ivo, Ivan Junqueira, Moacyr Sclir, Assis Brasil, António Cídero. Do país anfitrião, Nuno Júdice, José Carlos de Vasconcelos, Maria Teresa Horta, Mega Ferreira e Onésimo Teotónio de Almeida. Ausência notada a de Ana Paula Tavares, na sua terra natal de Angola.

O «limite» e o «risco» das palavras levam escritores às escolas, acontecem conversas e perguntas animadas, o açoriano Ivo Machado responde: «Ainda pequeno já queria ser poeta. Ou jardineiro».

No Auditório Municipal, público, como cogumelos. Mesas foram 14, repescando a sessões anteriores motes provocatórios como «Estou farto de palavras». Ou mui enigmáticos como este que coube a Paulina Chiziane: «O olhar escreve, ou melhor, a caneta vê».

Corsino Fortes integra a primeira das 14 mesas, ao lado de Eduardo Lourenço, Ana Luisa Amaral, Mega Ferreira, Juan José Millás e Lêdo Ivo. São instigados a discorrer sobre «O desafio da escrita». Lêdo Ivo confessa-se perplexo, porque «a escrita para mim é uma vocação e uma felicidade».

Ana Luísa fala de «ofício e prazer». «Eduardo Lourenço de um desafio impossível, desesperante e sedutor». Corsino Fortes lê poemas em crioulo cabo-verdiano e em português, distingue entre «libertação do espaço» e «libertação da mente», evoca Amílcar Cabral, fala de três fases no seu processo criativo, falta-lhe o pedaço de um poema, o moderador João Gobern suspeita de uma conspiração, nada disso, «Eu sou mesmo assim», diz Corsino, a plateia ri-se e espera, eis finalmente o naco do poema, cai uma chuva de palmas e o poeta proclama:

E não há fonte que não tenha bebido

da fronte deste homem.Partilhando a mesa com Almeida Faria, Mário Cláudio, Alice Vieira, Álvaro Uribe e Luis Fernando Verissimo, Paulina Chiziane canta uma estória, incita o público a acompanhá-la num refrão em língua shona. Não sem antes vincar o peso «dominante» da oralidade no seu país, onde o analfabetismo entre as mulheres ronda os 75 por cento. «Na minha realidade, o olhar escreve e a caneta só de vez em quando vê. O escritor tem de ver a cor da fogueira, tem de escutar o som e o movimento das coisas».

Guita Júnior, de Inhambane, vive de forma particular estas Correntes. «Vivo numa cidade pequena, com poucos contactos com fóruns de escritores, isto dá alma, dá, como dizemos em Moçambique, moka».

Editoras e editores, uma concorrida feira do livro, poesia e música no Novotel Ver Mar, novos lançamentos. Ondjaki autografa Materiais para a Confecção de um Espanador de Tristezas, Pneuma é a índica voz de Luís Carlos Patraquim, Manuel Rui entre-abre a Janela de Sónia. Helder Macedo traz Natália, Maria Teresa Horta Poesia Reunida, Rakushisha por Adriana Lisboa.

Zeferino Coelho, o editor da Caminho, anuncia uma aposta em jovens autores brasileiros, as Correntes convidaram João Paulo Cuenca, Daniel Galera e Amílcar Bettega. Hotel Ver Mar, antologia bilingue organizada pelo alemão Michael Kegler junta textos inéditos dos frequentadores das Correntes. Há exposições e álbuns de fotografias; De Caras com a Escrita de Rui Sousa, o infatigável fotógrafo das Correntes, e Boulevard das Correntes, do argentino Daniel Mordzinski.

A ameaça da multiplicação

As sessões audiovisuais estão apinhadas. É Dreda ser Angolano, de Fazuma, venceu o prémio de Melhor Documentário do Festival Internacional de Vídeo Musical. «Dreda quer dizer fixe», alguém explica. Para Essa palavra Sonho, um DVD de Ondjaki, o pessoal derrama-se por cadeiras e escadas.

O átrio é também lugar de encontros, de divulgação de experiências. António Biscaya organiza nas Canárias o Salão do Livro Africano, um encontro de escritores e editores independentes. «Aproveitar a estratégica posição das ilhas, criar um ponto de encontro com a literatura africana, de contacto real entre editores e escritores, estamos optimistas, algumas editoras já têm coisas traduzidas».

No auditório repleto e completamente renovado do Museu de Etnografia e História da Póvoa de Varzim o ministro português da Cultura afirmara-se «favorável ao multilinguismo», mas também a uma política de afirmação, expressão e divulgação da língua portuguesa «e não apenas da língua portuguesa culta e erudita». José António Pinto Ribeiro definiu a reestruturação do Instituto Camões e a criação de um Fundo para a Língua, já dotado de 30 milhões de euros (38,4 milhões de dólares), como parte de uma «política de internacionalização que Portugal deve assumir tal como os espanhóis o fizeram».

Participar no que é considerado o maior evento literário em Portugal, para Joaquim Arena «reforça a minha confiança na universalidade da literatura». Algo que, ao português Helder Macedo, há muito radicado em Londres e com profundas memórias de uma vivência moçambicana, não causa espanto.

«É um fenómeno único e explicável. Toda a tradição cultural portuguesa, excepto em termos de rivalidades políticas, incluiu sempre uma dimensão castelhana. Portugal não é matriz de coisa alguma, como pensam alguns. Portugal é uma nação plural, não é por acaso que no século XVI, qualquer coisa como 18 por cento da população de Évora é africana».

Com sete participações no activo, o galego Carlos Quiroga sabe que esta edição é especial. Ainda assim, não esconde uma certa apreensão de que o eventual crescimento possa «matar a criatura, o espírito de abraço, de encontro de amigos». Quiroga diz que Portugal, «sinónimo das Correntes», o tratou muito melhor do que a sua própria terra. «Sou um dissidente da norma oficial, sinto-me portanto filho e em dívida. Foi um deslumbramento desde o começo».

Foram homenageados Eduardo Prado Coelho, Eduardo Guerra Carneiro, Henrique Abranches, José António Gonçalves, Michel Laban e Ray-Gute Mertin.

E as Correntes ameaçam multiplicar-se. Francisco Guedes fala no interesse de outros municípios em festivais similares, Germano Almeida diz que Cabo Verde, com um festival de música e outro de teatro, precisa de um fórum de literatura «num formato idêntico ao da Póvoa de Varzim».

«É algo que já está fora de moda», medita apreciativamente o poeta Liberto Cruz.

«Milagre», clamam, em separado, Hélia Correia e Ana Luisa Amaral. Na recta final, um Gastão Cruz visivelmente emocionado subiu ao palco para receber o Prémio Correntes D’Escritas 2009. Corsino Fortes cumpriu a tradição de fazer anos na Póvoa. A noite foi jantar de despedida com música ao vivo e o pessoal a desbundar a sério.

É a Península Ibérica, é a África, é a América Latina. Inventámos esta linguagem e entendemo-nos, isto são as Correntes, resume Francisco Guedes.* Artigo publicado na edição de Março da revista África 21.

FONTE: África 21 Digital - Brasília,DF,Brazil

FOTO: Poetiza Maria Tereza Horta

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