Nas terras de Steinbeck
Gonçalo Cadilhe
9:00 Domingo, 8 de Mar de 2009
Gonçalo Cadilhe
9:00 Domingo, 8 de Mar de 2009
Passei por Jolon e não a vi. Voltei a consultar o mapa. Esta bifurcação já era depois, portanto tinha ido demasiado longe. Fiz inversão de marcha e procurei-a com mais calma. Como é que uma cidade pode desaparecer assim?
Situada ao longo de uma antiga estrada espanhola, Jolon tinha-se tornado a principal localidade do vale de San Antonio durante a segunda metade do século XIX. Um hotel com dois andares, um salão de baile, uma igreja, uma lavandaria chinesa, um silo, uma forja, um posto de correios e mesmo um telégrafo faziam de Jolon um desses lugares onde os viajantes gostam de parar uns dias a dissolver a poeira dos quilómetros.
Mas, poucas décadas depois, a linha ferroviária da Southern Pacific Railroad passou umas dezenas de quilómetros mais a leste, por King City. E Jolon perdeu a sua razão de ser. Foi abandonada. Em Portugal, Jolon ainda estaria lá porque o cimento não se move. Mas na América, a madeira desmonta-se e transporta-se. Jolon foi-se embora junto com os seus ex-habitantes. Desapareceu.
Encontro, por fim, uma pequena igreja e um armazém fechado. É aqui Jolon, tudo o que resta dela. Mas, à sua volta, as mesmas colinas, a mesma terra seca e promissora, o mesmo tipo de luz e de clima de há cem anos. Materializa-se assim um dos lugares mais importantes do meu imaginário juvenil: o território de "A Um Deus Desconhecido", um dos primeiros romances da carreira de John Steinbeck e um dos primeiros livros a mudar-me a vida.
"A Um Deus Desconhecido" conta a história de um jovem agricultor do Vermont que se despede da família e se estabelece no vale de Jolon nesses anos de prosperidade e promessa. Quando lhe chega a notícia da morte do pai, Joseph Wayne começa a acreditar que um enorme carvalho na sua propriedade conserva vivo o espírito do seu progenitor. Joseph desenvolve uma relação mística com a árvore, e com a terra e o ar que a rodeiam. Os seus irmãos, entusiasmados com a descrição da vida fácil e da terra fértil nas cartas de Joseph, juntam-se a ele algum tempo depois. Mas um deles, Burton, cristão devoto, assiste à relação taumatúrgica entre Joseph e a árvore - e vê nisso obra do Diabo.
Joseph ri-se das suspeitas de Burton, diz-lhe que é apenas um jogo que o faz sentir bem. Mas Burton, aterrorizado, decide abandonar o vale e mudar-se com a família para Monterey - na última noite, antes de partir, corta em segredo as raízes do carvalho. A árvore morre, a região entra numa dessas secas profundas e cíclicas tão temidas pelos agricultores da Califórnia, e os acontecimentos precipitam-se. O sacrifício final de Joseph, trágico e pagão, redimirá o pecado de Burton e trará de novo a água e a vida ao vale de Jolon.
Steinbeck, com este romance ambíguo e enigmático, pretendia acima de tudo desvincular-se da corrente literária do realismo. O motor de "A Um Deus Desconhecido" é a transcendência: a relação transcendental, simbiótica entre os colonos e uma terra ainda por colonizar. E os personagens principais do romance encontram-se na Natureza dessa Califórnia: as montanhas que abraçam o vale de Jolon e o separam da costa do Pacífico, a "curiosa feminilidade" da floresta, a chuva que escorre pela cara, as emanações negativas de um rochedo numa clareira. Seinbeck conta-nos a história do amor gentio de um homem pela Terra a que pertence.
"A Um Deus Desconhecido" libertou-me da religião organizada, abriu-me a sensibilidade para outras formas de relacionamento com o mistério da Criação que não passam pelos Livros Sagrados, pelos dogmas revelados, por uma autoridade central a quem temos de delegar a nossa espiritualidade. Dito assim, parece uma novela New Age. Mas Steinbeck terminou o livro em 1935 e eu li-o em 1987: tudo isto muito antes que o culto da New Age aparecesse em qualquer subúrbio chic e enfadado de Nova Iorque. Enfio-me pela estrada que segue do que resta de Jolon em direcção ao Pacífico, refazendo um dos itinerários fundamentais da trama do livro.
Atravesso um território primordial e encantado, que espera ainda o amor de um homem para o fertilizar. Não admira que esteja assim: entre Jolon e o Pacífico encontram-se três obstáculos garantidos a qualquer colonização humana. Uma reserva militar, que é utilizada como campo de tiro do Exército Americano. Não hoje. Pedem-me os documentos antes de prosseguir e avisam-me que não posso sair da faixa de alcatrão. Depois atravesso o parque nacional Los Padres. Mais uma vez proibido de sair dos limites definidos pela berma da estrada. Por fim, as montanhas de Santa Lucia, que do outro lado caem a pique sobre o mar. O pedaço de costa mais bonito da Califórnia, um dos mais bonitos do mundo.
Desço para o mar, prisioneiro de tanta beleza, livre de não ter de agradecer por isso a quem quer que seja. A beleza da paisagem pertence-me, não devo nada a nenhum deus por estar a possuí-la com o olhar.
Situada ao longo de uma antiga estrada espanhola, Jolon tinha-se tornado a principal localidade do vale de San Antonio durante a segunda metade do século XIX. Um hotel com dois andares, um salão de baile, uma igreja, uma lavandaria chinesa, um silo, uma forja, um posto de correios e mesmo um telégrafo faziam de Jolon um desses lugares onde os viajantes gostam de parar uns dias a dissolver a poeira dos quilómetros.
Mas, poucas décadas depois, a linha ferroviária da Southern Pacific Railroad passou umas dezenas de quilómetros mais a leste, por King City. E Jolon perdeu a sua razão de ser. Foi abandonada. Em Portugal, Jolon ainda estaria lá porque o cimento não se move. Mas na América, a madeira desmonta-se e transporta-se. Jolon foi-se embora junto com os seus ex-habitantes. Desapareceu.
Encontro, por fim, uma pequena igreja e um armazém fechado. É aqui Jolon, tudo o que resta dela. Mas, à sua volta, as mesmas colinas, a mesma terra seca e promissora, o mesmo tipo de luz e de clima de há cem anos. Materializa-se assim um dos lugares mais importantes do meu imaginário juvenil: o território de "A Um Deus Desconhecido", um dos primeiros romances da carreira de John Steinbeck e um dos primeiros livros a mudar-me a vida.
"A Um Deus Desconhecido" conta a história de um jovem agricultor do Vermont que se despede da família e se estabelece no vale de Jolon nesses anos de prosperidade e promessa. Quando lhe chega a notícia da morte do pai, Joseph Wayne começa a acreditar que um enorme carvalho na sua propriedade conserva vivo o espírito do seu progenitor. Joseph desenvolve uma relação mística com a árvore, e com a terra e o ar que a rodeiam. Os seus irmãos, entusiasmados com a descrição da vida fácil e da terra fértil nas cartas de Joseph, juntam-se a ele algum tempo depois. Mas um deles, Burton, cristão devoto, assiste à relação taumatúrgica entre Joseph e a árvore - e vê nisso obra do Diabo.
Joseph ri-se das suspeitas de Burton, diz-lhe que é apenas um jogo que o faz sentir bem. Mas Burton, aterrorizado, decide abandonar o vale e mudar-se com a família para Monterey - na última noite, antes de partir, corta em segredo as raízes do carvalho. A árvore morre, a região entra numa dessas secas profundas e cíclicas tão temidas pelos agricultores da Califórnia, e os acontecimentos precipitam-se. O sacrifício final de Joseph, trágico e pagão, redimirá o pecado de Burton e trará de novo a água e a vida ao vale de Jolon.
Steinbeck, com este romance ambíguo e enigmático, pretendia acima de tudo desvincular-se da corrente literária do realismo. O motor de "A Um Deus Desconhecido" é a transcendência: a relação transcendental, simbiótica entre os colonos e uma terra ainda por colonizar. E os personagens principais do romance encontram-se na Natureza dessa Califórnia: as montanhas que abraçam o vale de Jolon e o separam da costa do Pacífico, a "curiosa feminilidade" da floresta, a chuva que escorre pela cara, as emanações negativas de um rochedo numa clareira. Seinbeck conta-nos a história do amor gentio de um homem pela Terra a que pertence.
"A Um Deus Desconhecido" libertou-me da religião organizada, abriu-me a sensibilidade para outras formas de relacionamento com o mistério da Criação que não passam pelos Livros Sagrados, pelos dogmas revelados, por uma autoridade central a quem temos de delegar a nossa espiritualidade. Dito assim, parece uma novela New Age. Mas Steinbeck terminou o livro em 1935 e eu li-o em 1987: tudo isto muito antes que o culto da New Age aparecesse em qualquer subúrbio chic e enfadado de Nova Iorque. Enfio-me pela estrada que segue do que resta de Jolon em direcção ao Pacífico, refazendo um dos itinerários fundamentais da trama do livro.
Atravesso um território primordial e encantado, que espera ainda o amor de um homem para o fertilizar. Não admira que esteja assim: entre Jolon e o Pacífico encontram-se três obstáculos garantidos a qualquer colonização humana. Uma reserva militar, que é utilizada como campo de tiro do Exército Americano. Não hoje. Pedem-me os documentos antes de prosseguir e avisam-me que não posso sair da faixa de alcatrão. Depois atravesso o parque nacional Los Padres. Mais uma vez proibido de sair dos limites definidos pela berma da estrada. Por fim, as montanhas de Santa Lucia, que do outro lado caem a pique sobre o mar. O pedaço de costa mais bonito da Califórnia, um dos mais bonitos do mundo.
Desço para o mar, prisioneiro de tanta beleza, livre de não ter de agradecer por isso a quem quer que seja. A beleza da paisagem pertence-me, não devo nada a nenhum deus por estar a possuí-la com o olhar.
FONTE: Expresso - Porto,Portugal
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