terça-feira, março 24, 2009

A eterna Sagração da Primavera, de Stravinsky


Terça-feira, 24/3/2009

A eterna Sagração da Primavera, de Stravinsky



Existem obras de arte que, por mais que o tempo passe, não perdem seu caráter provocativo. É o caso de Le Sacre du Printemps, do compositor russo Igor Stravinsky.

Irreverente, agressiva, desconcertante, com uma vitalidade surpreendente, não há como manter os pés em terra firme com tal música. Segundo Pierre Boulez, A Sagração da Primavera é uma obra que, ao longo da história da música, pode gabar-se de não ter esgotado, passados tantos anos, seu potencial de novidade.

A peça musical de Stravinsky chocou o público francês no momento de sua primeira apresentação em 1913, em Paris, no Théatre des Champs-Élysées. Mas antes disso, em 1894, Debussy já havia desconcertado o público e a crítica de Paris com sua obra Prélude à l'après-midi d'un Faune. Mas o escândalo provocado pela obra do compositor russo foi infinitamente maior, tanto do ponto de vista da recepção do público quanto da renovação musical.

Stravinsky conta que ao iniciar a execução de sua obra, logo nos primeiros compassos, a Sagração foi recebida com risadas e gracejos e em seguida explodiu o pandemônio que as crônicas da época registram. A descrição do impacto sobre os espectadores é clara: podia-se ler nos rostos expressões de desagrado, surpresa e terror. Quem mantinha o olhar fixo não estava dizendo senão que estava em choque.

Vários músicos e orquestradores, entre eles Saint-Saëns, saíram horrorizados da sala logo na primeira parte da obra, protestando contra a maneira inusitada com que se tratava os instrumentos. A recepção variou do riso, inicialmente nervoso, para o protesto agressivo.

A obra se inicia com alguns compassos de fagote acrescentando com a introdução de uma melodia lituana, um andamento assimétrico e complexo e um timbre instrumental pouco comum (o fagote no registro mais agudo).

Debussy havia começado sua obra Prélude à l'après-midi d'un Faune com um solo de um instrumento de sopro (aliás, é um delicioso exercício ouvir as aberturas das duas obras, uma após a outra). De certa forma, então, Le Sacre tinha ali seu precedente próximo. Mas no caso de Stravinsky, aqueles sons exíguos e estranhos, um pouco canhestros e guturais, como uma voz que lembra um animal desconhecido, foram um choque frontal com a dignidade daquele teatro chique dos Champs-Élysées e afrontavam a expectativa do público: como pode ser possível começar dessa forma uma obra musical respeitável, ou melhor, um espetáculo de gala para a mais fina burguesia europeia?

A sugestão de imagens primitivas e um tanto bizarras do início da Sagração produz no espectador sentimentos angustiantes. O resultado no público de 1913 não foi outro que o escândalo inicial e depois a exasperação e, finalmente, a explosão de violento repúdio.

O caráter revolucionário da obra pode ser percebido na descrição que dela faz Manzoni: "acentos turbulentos e realmente revolucionários, ritmos ácidos insistentes, estratificações politonais, instrumentação sardônica, a inexorabilidade mecânica de certas páginas e, sobretudo, a força primordial de um ritmo alucinante, além da inaudita novidade e variedade de timbres".

Como não se impressionar com as melodias folclóricas deformadas, a selvagem articulação rítmica desenfreadamente livre, as asperezas harmônicas politonais, a recusa radical do fraseado longo, os contínuos deslocamentos do acento rítmico, a vertiginosa invenção timbrística, a totalidade da obra sentida como uma explosão de vitalidade?

Segundo o crítico alemão Hans Heinz Stuckenschmidt, há excesso no enorme complexo orquestral e, em particular, no grande número de instrumentos de percussão; excesso na fusão dos instintos mais primitivos e da sensualidade mais exacerbada. E não se pode parar aqui, pois há excesso ainda na violenta crueza das dissonâncias, na dança orgiástica final, submetida a contínuas mudanças de compasso, nas passagens bruscas do pianíssimo ao fortíssimo, dos tênues acentos melódicos de instrumentos solistas aos colossais acordes da orquestra inteira.

A reação do público a tal obra é a de quem se encontra diante de uma agressão física, biológica, diante de uma quantidade excessiva de som, de estímulos acústicos intensos. O volume é forte a ponto de, em alguns momentos, chegar a incomodar. Sentimo-nos como se estivéssemos diante de uma mera utilização física do som, que provoca exaltação, superexcitação. É a sensação de não ser mais um espectador diante de uma mensagem musical a ser ouvida e interpretada, mas de encontrar-se envolvido, sem possibilidade de escapar, dentro de um espaço vibrante que pressiona toda a superfície de nosso corpo.

Falou-se em "terror negro" a respeito de A Sagração de Stravinsky. A obra estava fora dos esquemas musicais tradicionais: não só deixava para trás a linguagem da tradição, mas parecia não ter mesmo relação com as novas experiências de Debussy. De onde provinha e para onde se encaminhava essa música? Segundo Stuckenschmidt, "o que faz a Sagração uma obra única no seu gênero é a reunião de elementos que parecem provenientes da primeira idade do mundo e do modernismo mais avançado."

Em consonância com a obra de vários artistas, a Sagração toma emprestada a máscara ou a figura do primitivo e do bárbaro. Nesta interpretação entram diversos fatores: a temática do balé, obviamente; o destaque que o ritmo assume na música, o que leva, nós ocidentais a pensar nas esculturas africanas, consideradas culturas primitivas; o uso obsessivo da repetição, que substitui as técnicas mais elaboradas da variação e do desenvolvimento; a ênfase insistente e "primordial" do som em si.

Para a cultura erudita classificar a obra de Stravinsky de "primitiva e bárbara" implicava algo negativo: perda de uma densidade de elaboração cultural sem uma compensação do mesmo plano. Por isso, T. W. Adorno classificou a Sagração como personificação da regressão.

A conexão com o balé foi importante para esta música. Assim como o mítico e o poético fauno de Mallarmé o foi pra Debussy. A visão ritual que a encenação estende sobre a música leva o espectador a aceitar inovações musicais que de outra forma seriam ainda mais indigestas. O que a lógica tradicional do discurso musical achava rústico e primitivo na Sagração era uma gestualidade musical, mistura de música e drama.

O "primitivo" stravinskiano é o resultado da utilização que o compositor fez de arquétipos pré-musicais, os quais todos nós, mais ou menos, temos ciência; esses arquétipos estabelecem coligações entre estruturas rítmicas, dinâmicas e timbrísticas e determinados campos da experiência sonora e intelectual. Por exemplo, uma massa sonora no registro grave é percebido por nós como escura; e se for composta por sons que não conseguimos discernir torna-se tenebrosa; e se, além disso, for tocada bem forte e contiver muitas dissonâncias será ameaçadora. Ora, a Sagração está cheia de situações sonoras deste gênero, inventadas pelo autor e, portanto, não codificadas anteriormente.

Tamanha renovação exigia um público aberto às experimentações das vanguardas do início do século. Jean Cocteau lastimou que a apresentação tenha se dado para um público que não merecia e que não estava preparada para a grandeza de A Sagração da Primavera.

Ao contrário de Debussy que, apesar de moderno, é agradável, Stravinsky soa aterrorisador. Mas a nova música se expandiu também a partir de Debussy. O Prélude à l'après-midi d'un Faune, de Debussy, foi inspirado num poema de Mallarmé. A ideia partiu de um motivo extramusical tipicamente impressionista. Observando e ouvindo com o espírito e os sentidos novos dos pintores e poetas de sua época, para o músico também o mundo parecia um conjunto de galáxias sonoras, com significados mais próximos de uma nebulosa de sentido do que de imagens com sentido completo.

Debussy cria um som suave, mas com algo felino, imprevisível; ritmo e metro livres, que o ouvido não consegue determinar, dando a impressão de serem improvisados; melodia indeterminada, suspensa, vagamente exótica, assimétrica e irregular, um motivo que é mais um arabesco do que uma frase musical lógica, cantável, como os temas clássicos. Sua sinuosidade não é regulada pelo sistema tonal, pelos esquemas simétricos das progressões, da rítmica simples, do andamento discursivo. Nem Mallarmé nem a poesia moderna em geral conta mais história. A música não poderia andar para trás.

Sucessões de acordes independentes, onde não estão mais presentes as relações tonais tradicionais; escalas de cinco tons e de seis tons, fraseados em arabesco ou fragmentos melódicos sem qualquer desenvolvimento, lançados e repetidos de modo imprevisto no espaço sonoro imóvel; conglomerados de timbres que resultam como manchas de cores.

O "discurso musical" não segue adiante, a lógica do desenvolvimento sendo substituído pela repetição, por meio do qual a imagem sonora é representada com múltiplos reflexos nuançados, que lembram a catedral de Monet. O significado, como nos versos de Mallarmé, explode em ambiguidades, em muitas direções ― sendo assim, maior o número de interpretações (o contrário do "discurso" clássico).

Stravinsky estava atento às transformações desse tipo. A Europa sempre visitada por ele na companhia de Diaghilev permitiu que o compositor conhecesse as obras de Debussy, Satie e Schöenberg (de Pierrot Lunaire), e que fosse influenciado por eles. Mas foi além. Revalorizando o ritmo, Stravinsky renovou a concepção orquestral: renunciando às riquezas debussianas, instaurou o reinado da sonoridade pura e individualizada. Sob seus golpes demolidores ― e os de Debussy ― desapareceu a orquestra romântica. Já não existe mais "massa orquestral" (principalmente wagneriana).

Os traços distintos do ritmo de Stravinsky evidenciam-se em A Sagração da Primavera: uso característico da síncope, valor das pausas, deslocamento das acentuações e, sobretudo, simultaneidade de desenhos rítmicos com oposição de compassos binários e ternários. E, acima de tudo, sua onipresença: dentro de todo o panorama da música ocidental, nenhuma obra ousara tanto, no sentido de privilegiar o ritmo a ponto de fazer dele a mola propulsora de todo o discurso sonoro. O ritmo é o nó vital de sua estética e em torno dele giram os outros componentes de sua linguagem.

A ausência de foco e o desmoronamento da narrativa, tal como praticada por artistas como James Joyce e Picasso conduz ao universo mental não-lógico, não-objetivo e essencialmente sem causa, no qual todos nós vivemos agora. A música de Stravinsky caminhava na mesma direção.

Stravinsky sempre considerou a música como uma manifestação autônoma, liberta de toda intenção estranha à sua natureza. Criação pura. Essa arte autônoma, sem referências sentimentais, literárias ou filosóficas, foi também o objetivo estabelecido pela maioria dos compositores mais importantes do século XX. Em Crônicas de minha vida, Stravinsky disse: "Ao compor Sacre, imaginei todo o espetáculo da obra como uma sequência de movimentos rítmicos de uma extrema simplicidade, executados por grandes blocos humanos com um efeito imediato sobre o espectador, sem minúcias supérfluas nem complicações que traíssem o esforço".

O que interessa a Stravinsky é uma música russa que se situa para além do folclore, depurada de quaisquer referências particulares, como que para passar uma quintessência da Rússia. No projeto inicial, Stravinsky imaginou criar uma espécie de sinfonia que receberia o título de "O grande sacrifício". Diaghilev acabou por convencer o compositor a mudar de projeto, transformando sua obra num grande balé, formado por um conjunto de quadros da Rússia pagã. O pintor e arqueólogo Nicolas Roerich trabalhou com Stravinsky no argumento da evocação ritual da primavera, que funde dados etnográficos das mais diversas origens.

Longe de ser música de programa, a obra é muito mais essencialmente uma exortação ritual dirigida a pulsões naturais que se destinam a realizar-se através do som. A eclosão em causa diz respeito, na verdade, a forças energéticas de natureza acústica; a obra alimenta-se de matérias sonoras das mais complexas, razão pela qual o trabalho que é feito com timbres e ritmo não pode satisfazer convenções estabelecidas. A partitura valoriza as famílias instrumentais nos seus registros mais variados, dentro de um efetivo orquestral de grandes dimensões: 38 instrumentos de sopro, um conjunto de instrumentos de cordas que lhe é proporcional e uma percussão à altura.

Segundo Olivier Messiaen, há na obra de Stravinsky planos sonoros contrastados, graças a uma engrenagem rítmica que passa do mais simples ao mais complexo. E por meio de uma arquitetura rigorosa, cada fenômeno sonoro assume toda a sua força no momento presente, como se cada motivo temático, uma vez manifestado, estivesse destinado a desaparecer.

Posteriormente Stravinsky ficou marcado pelo jazz. Para o compositor, o jazz representa uma forma de desenraizamento comparável ao que ele sentia em relação às tradições populares transmitidas oralmente e ao universo modal que nossa linguagem tonal veio substituir pouco a pouco. O jazz representa essa separação violenta, essa dilaceração que existe entre os recursos mais ou menos normalizados oferecidos pelo mundo ocidental e as fontes primitivas e rituais que lhe cabe reatualizar, ainda que manifeste-se mascaradas por ele. A música de Stravinsky revela, ela própria, tensões jamais resolvidas entre mundos musicais que se entrechocam. Tal como faz o jazz, Stravinsky desvia-se das convenções do sistema tonal, transgride-as com tal violência que este sistema, imagem por excelência do racionalismo europeu, rompe seus limites do tempo que ele contribuiu para destruir ― o tempo sacralizado do rito.

Pierre Boulez considera a Sagração uma obra-manifesto, um ponto de referência para todos os que procuram estabelecer a certidão de nascimento do que ainda é chamado música contemporânea. Como disse ainda Boulez: "Stravinsky resiste". Cada audição de A Sagração da Primavera confirma isso.

Londrina, 24/3/2009

FONTE (foto incluída): Digestivo cultural - São Paulo,SP,Brazil

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