Sexta, 27 de março de 2009, 07h57
Diários nordestinos de Glauber
Diários nordestinos de Glauber
João Carlos Teixeira Gomes
Eu e Glauber esperávamos o ônibus na pracinha defronte ao Mosteiro de São Bento, na quente manhã do verão baiano. A idéia da viagem ao Nordeste tinha partido do meu obstinado amigo, louco para conhecer diretamente a cáustica realidade do Nordeste e colocá-la como substância dos seus filmes: seca, miséria, fome, êxodo, cangaço, misticismo. O banditismo de Lampião estava sepultado no tempo e imobilizado nas cabeças cortadas do Nina Rodrigues, expostas como os macabros troféus da civilização (mas na imaginação glauberiana o Nordeste era uma caixa de Pandora de onde tudo poderia sair, inclusive os fantasmas do passado).
Impacientes, reclamávamos do atraso. Glauber temia que a viagem tão esperada fosse adiada. Sua ânsia do conhecimento da miséria da seca, já entrevista na leitura apaixonada dos romances de Graciliano e Zé Lins, liberava sua torrencial loquacidade, esparramando-se em frenéticos protestos. Afinal, apareceu o tão almejado ônibus, que, aliás, não era ônibus, mas lotação, um precário lotação dos anos 50, veículo obviamente inadequado e incômodo para a Odisséia que nos esperava nas insuportáveis estradas nordestinas, estirões infindáveis de barro e poeira, sob o sol dardejante do agreste. Desconforto, sede, resignação.
Janeiro, 22, 1958, 10:00 - O motorista caolho
O lotação parte. Volto-me para Glauber e comento: "Você já reparou? Nosso motorista é cego de um olho, juro!". Ele ri e responde: "Melhor, combateremos à sombra!". Imaginava mais peripécias, mais aventuras, mais emoções, tudo tipicamente glauberiano. Mas eu não tirava o olho do motorista cego. Para mim, motorista de um olho só naquelas estradas torradas pelas fornalhas do diabo só podia ser motorista cego. Atrás de nós, no lotação superlotado, aboletavam-se dois cometas gaúchos, que iam vender seus bregueços nas praças do Nordeste. Riam e falavam o tempo todo com seu sotaque dos pampas, maravilhando Glauber, que puxou e encontrou conversa, deliciando-se com as colocações pronominais dos cometas e o uso corriqueiro que faziam do pronome "vós". Tudo parecia bem, até que, de repente...
....De repente, o motorista cego percebeu que não poderia atravessar a mesma ponte na qual irrompia um caminhão em sentido contrário e embicou para cima de um rio. Pânico. Gritos. Devastação total. O mundo de cabeça para baixo. O mundo às avessas. Um dos cometas, impulsionado de trás, deu-me uma formidável porrada na cabeça, quase desmaio. Estilhaços de vidro por todos os lados, janelas e portas partidas, todas as cadeiras arrancadas, pernas quebradas, braços lascados pelos estiletes. Uma mulher, metade do corpo para fora, numa das janelas arrombadas, gritava: "Meu cheque caiu no rio!". Glauber não sofreu um arranhão. Do lado de fora, incólume, articulando as mãos em forma de câmaras cinematográficas, berrava, em êxtase: "Tomadas dramáticas! Grandes cenas! Grandes cenas!" E eu, combalido, com a perna direita sangrando, afundei num hospital. Os cometas fizeram o que fazem os cometas: sumiram.
"Vamos voltar para Salvador!", protestei, estremunhado e remendado, e acrescentei: "Esta viagem é uma loucura, pelas estradas da morte! ". Glauber, sereníssimo, ileso, apenas retrucou: "Nunca! Vamos até o fim, estamos descobrindo o Brasil, o mundo só acaba em Caruaru!". Resignei-me. Nada poderia deter o aluvião glauberiano, pura lava e ímpeto. Ali estavam nascendo pelo menos "Deus e o Diabo" e "O Dragão da Maldade", ninguém conseguiria contar a sua fome do Nordeste, o desejo de sentir a crueza da terra com as pulsões da sua visão dramática da vida, o impulso da resistência herdado das leituras da Bíblia, onde aprendeu os mistérios das sagas incontroláveis dos povos deserdados, em busca de Canaã. O presbiteriano que cantava piedosos hinos nas noites baianas se transmudava no peregrino incendiado pela sede de conhecimento, tocado pela bravura do registro heróico do percurso de uma gente faminta e esquecida, que se agarrava ao misticismo para escapar das misérias do mundo dos coronéis e do latifúndio. "Vamos adiante, grande Glauber!" - bradei, controlando a dor da perna lacerada, pois também queria imergir na combustão daquela aventura irrepetível. E rumamos para Sergipe, onde recalibramos as forças durante três dias, pois nossa meta ainda estava distante e o sonho continuava límpido e aceso, como devem ser todos os sonhos adolescentes.
Esqueci-me de dizer que estávamos nas faixas dos 18 anos, viris e impacientes, com todo o apelo do vasto mundo à nossa frente, além das barreiras dos medos, dos acidentes incontroláveis, dos velhos dragões da prudência, que desconhecíamos, ou dos motoristas cegos. "Avante, Glauber!". E lá íamos, como dois jovens e impenitentes desbravadores, príncipes do imprevisto, paladinos das seduções do mistério, cônscios de que tínhamos uma missão a cumprir, que era alta, era bela e, sobretudo, irreprimível. Conhecer o Nordeste para colocá-lo nas telas do mundo.
Finalmente, a emoção do São Francisco, longas águas invioláveis e barrentas, infestadas de piranhas. A frágil barcaça nos conduzia para as terras de Alagoas. A bela cidade de Penedo resplandecia, encarapitada no alto de uma elevação que a transformava numa construção imponente e misteriosa. Ladeiras estreitas, velhas igrejas, um clima barroco patente em prédios escurecidos, pátina mágica, pelo tempo. Encantamento das coisas perdidas, das súbitas revelações, das transcendências poéticas que emergem das coisas simples e inesperadas. Um alto momento do áspero percurso, compensando a aflição dos intermináveis estirões bravios e poeirentos, marcados por ostensivo abandono e em cujo percurso a vida se esgarça nas sensações mais precárias, soma de nadas, diluição do imprevisível, valhacouto do espanto. Glauber irrompeu pela cidade como um tufão, fez amizades, ensaiou poemas, projetou tomadas. À noite, exaustos, encharcamo-nos, sôfregos, da bendita cachaça alagoana, e sentamos à beira do tenebroso rio para conversar, discutir sobre o sentido da vida, do amor e da amizade, o mistério das mulheres, os rumos do Brasil e do mundo, as projeções da cultura, os planos do cinema, da literatura e do jornalismo. Recitamos os amados poetas. Glauber modulava os versos de "Infância", de Paulo Mendes Campos, sempre repetidos: "À noite, arquiteturas corrompidas...".. Os russos brilhavam no espaço sideral com seus surpreendentes engenhos, inventando estrelas. A arrogância tecnológica americana fora ultrapassada. Glauber, sempre loquaz, entusiasmava-se com as realizações do comunismo pós-stalinisita, enaltecia os sputiniks, antevia o fim do chicote e da exploração do homem pelo homem, sonhava alto. Éramos radicalmente democratas, até à subversão. A Rússia, a grande vitoriosa da guerra contra o Eixo fascista com seu imbatível Exército, era uma magnífica potência industrial, lembrava ele, elogiando o caminho dos astronautas pelas rotas das estrelas. E metíamos as mãos pelas águas do insondável e trevoso São Francisco, até que um tropeiro de voz aguda advertiu: "Piranhas!" "Piranhas!"
Penedo. O surpreendente oásis no implacável deserto nordestino. A terra alagoana nos brindou com maravilhosas surpresas: no trem para Maceió, a inesperada convivência com o imenso Ascenso Ferreira, o poetão que encantou os dois adolescentes com um recital exclusivo das suas poesias. O casual encontro se aprofundou em Recife, que era, afinal, o grande porto da viagem, completado logo após em Caruaru, para onde Glauber foi exclusivamente a fim de conhecer e entrevistar mestre Vitalino, cujas mãos de mago davam vida às rudes formas do barro.
Recife e suas pontes, a metrópole nordestina, o odor forte dos seus mangues, a efervescência da sua vida cultural, o contato com grandes escritores, poetas, artistas plásticos. As belas putas nordestinas, morenas de bundas barrocas, saindo, contritas, das missas matutinas, véus na cabeça. As entrevistas glauberianas, ampliando o acervo das informações obtidas através das pesquisas de campo. Um incomensurável repositório de experiências vividas, como nenhum diretor de cinema realizou antes no Brasil, imprescindível não apenas para os filmes do cineasta, mas também para o ensaísta que se aprofundou sempre na nossa realidade, para interpretá-la com a magia da imagem inquieta e o poder de fogo das palavras.
Foi assim a primeira viagem de Glauber Rocha ao Nordeste. Tive a alegria de testemunhá-la como cúmplice. É óbvio que tudo isto evoco sem distanciamento, movido pela emoção da partilha. Acompanhando hoje, no Rio de Janeiro, a série de óperas em que uma cadeia de cinemas está retransmitindo, em alta definição, as mais belas e modernas realizações da Metropolitan Opera House, diretamente de Nova Iorque, pude ver, encantado e perplexo, como algumas das audaciosas soluções cênicas e dramáticas das obras já se encontravam nas concepções de Glauber, não só patentes em seus filmes (que são óperas loucas), como até mesmo nos espetáculos pioneiros (recitais no palco da poesia lírica) das "Jogralescas", no colégio Central.
Quis terminar meu artigo com esse depoimento, pois nunca é demais lembrar que o gênio de Glauber, um grande realizador cuja obra anda hoje meio esquecida nas telas, deverá ser sempre evocado como um notável momento da cultura baiana e, no seu plano mais vasto, brasileira.
Hosanas! Não foram muitos os que, como ele, nos deixaram tão imponente legado, que temos o dever nacional de preservar. Glauber foi - e continua sendo - um dos mais poderosos caminhos para o conhecimento do Brasil, terra difícil e ardilosa, como as terras de magia, sem as quais o mundo é um território de exílio - na verdade insípido e crepuscular.
Janeiro, 22, 1958, 7:00 - Tragédia pressentida
Eu e Glauber esperávamos o ônibus na pracinha defronte ao Mosteiro de São Bento, na quente manhã do verão baiano. A idéia da viagem ao Nordeste tinha partido do meu obstinado amigo, louco para conhecer diretamente a cáustica realidade do Nordeste e colocá-la como substância dos seus filmes: seca, miséria, fome, êxodo, cangaço, misticismo. O banditismo de Lampião estava sepultado no tempo e imobilizado nas cabeças cortadas do Nina Rodrigues, expostas como os macabros troféus da civilização (mas na imaginação glauberiana o Nordeste era uma caixa de Pandora de onde tudo poderia sair, inclusive os fantasmas do passado).
Janeiro, 22, 1958, 9:00 - Começa a viagem
Impacientes, reclamávamos do atraso. Glauber temia que a viagem tão esperada fosse adiada. Sua ânsia do conhecimento da miséria da seca, já entrevista na leitura apaixonada dos romances de Graciliano e Zé Lins, liberava sua torrencial loquacidade, esparramando-se em frenéticos protestos. Afinal, apareceu o tão almejado ônibus, que, aliás, não era ônibus, mas lotação, um precário lotação dos anos 50, veículo obviamente inadequado e incômodo para a Odisséia que nos esperava nas insuportáveis estradas nordestinas, estirões infindáveis de barro e poeira, sob o sol dardejante do agreste. Desconforto, sede, resignação.
Janeiro, 22, 1958, 10:00 - O motorista caolho
O lotação parte. Volto-me para Glauber e comento: "Você já reparou? Nosso motorista é cego de um olho, juro!". Ele ri e responde: "Melhor, combateremos à sombra!". Imaginava mais peripécias, mais aventuras, mais emoções, tudo tipicamente glauberiano. Mas eu não tirava o olho do motorista cego. Para mim, motorista de um olho só naquelas estradas torradas pelas fornalhas do diabo só podia ser motorista cego. Atrás de nós, no lotação superlotado, aboletavam-se dois cometas gaúchos, que iam vender seus bregueços nas praças do Nordeste. Riam e falavam o tempo todo com seu sotaque dos pampas, maravilhando Glauber, que puxou e encontrou conversa, deliciando-se com as colocações pronominais dos cometas e o uso corriqueiro que faziam do pronome "vós". Tudo parecia bem, até que, de repente...
Janeiro, 22, 11:30 - De cabeça para baixo
....De repente, o motorista cego percebeu que não poderia atravessar a mesma ponte na qual irrompia um caminhão em sentido contrário e embicou para cima de um rio. Pânico. Gritos. Devastação total. O mundo de cabeça para baixo. O mundo às avessas. Um dos cometas, impulsionado de trás, deu-me uma formidável porrada na cabeça, quase desmaio. Estilhaços de vidro por todos os lados, janelas e portas partidas, todas as cadeiras arrancadas, pernas quebradas, braços lascados pelos estiletes. Uma mulher, metade do corpo para fora, numa das janelas arrombadas, gritava: "Meu cheque caiu no rio!". Glauber não sofreu um arranhão. Do lado de fora, incólume, articulando as mãos em forma de câmaras cinematográficas, berrava, em êxtase: "Tomadas dramáticas! Grandes cenas! Grandes cenas!" E eu, combalido, com a perna direita sangrando, afundei num hospital. Os cometas fizeram o que fazem os cometas: sumiram.
Janeiro, 23, 24,25 - 1958 - O recomeço, desde as 9:00
"Vamos voltar para Salvador!", protestei, estremunhado e remendado, e acrescentei: "Esta viagem é uma loucura, pelas estradas da morte! ". Glauber, sereníssimo, ileso, apenas retrucou: "Nunca! Vamos até o fim, estamos descobrindo o Brasil, o mundo só acaba em Caruaru!". Resignei-me. Nada poderia deter o aluvião glauberiano, pura lava e ímpeto. Ali estavam nascendo pelo menos "Deus e o Diabo" e "O Dragão da Maldade", ninguém conseguiria contar a sua fome do Nordeste, o desejo de sentir a crueza da terra com as pulsões da sua visão dramática da vida, o impulso da resistência herdado das leituras da Bíblia, onde aprendeu os mistérios das sagas incontroláveis dos povos deserdados, em busca de Canaã. O presbiteriano que cantava piedosos hinos nas noites baianas se transmudava no peregrino incendiado pela sede de conhecimento, tocado pela bravura do registro heróico do percurso de uma gente faminta e esquecida, que se agarrava ao misticismo para escapar das misérias do mundo dos coronéis e do latifúndio. "Vamos adiante, grande Glauber!" - bradei, controlando a dor da perna lacerada, pois também queria imergir na combustão daquela aventura irrepetível. E rumamos para Sergipe, onde recalibramos as forças durante três dias, pois nossa meta ainda estava distante e o sonho continuava límpido e aceso, como devem ser todos os sonhos adolescentes.
Esqueci-me de dizer que estávamos nas faixas dos 18 anos, viris e impacientes, com todo o apelo do vasto mundo à nossa frente, além das barreiras dos medos, dos acidentes incontroláveis, dos velhos dragões da prudência, que desconhecíamos, ou dos motoristas cegos. "Avante, Glauber!". E lá íamos, como dois jovens e impenitentes desbravadores, príncipes do imprevisto, paladinos das seduções do mistério, cônscios de que tínhamos uma missão a cumprir, que era alta, era bela e, sobretudo, irreprimível. Conhecer o Nordeste para colocá-lo nas telas do mundo.
Janeiro, 26,27,28,29,30 - l958 - Penedo e o êxtase
Finalmente, a emoção do São Francisco, longas águas invioláveis e barrentas, infestadas de piranhas. A frágil barcaça nos conduzia para as terras de Alagoas. A bela cidade de Penedo resplandecia, encarapitada no alto de uma elevação que a transformava numa construção imponente e misteriosa. Ladeiras estreitas, velhas igrejas, um clima barroco patente em prédios escurecidos, pátina mágica, pelo tempo. Encantamento das coisas perdidas, das súbitas revelações, das transcendências poéticas que emergem das coisas simples e inesperadas. Um alto momento do áspero percurso, compensando a aflição dos intermináveis estirões bravios e poeirentos, marcados por ostensivo abandono e em cujo percurso a vida se esgarça nas sensações mais precárias, soma de nadas, diluição do imprevisível, valhacouto do espanto. Glauber irrompeu pela cidade como um tufão, fez amizades, ensaiou poemas, projetou tomadas. À noite, exaustos, encharcamo-nos, sôfregos, da bendita cachaça alagoana, e sentamos à beira do tenebroso rio para conversar, discutir sobre o sentido da vida, do amor e da amizade, o mistério das mulheres, os rumos do Brasil e do mundo, as projeções da cultura, os planos do cinema, da literatura e do jornalismo. Recitamos os amados poetas. Glauber modulava os versos de "Infância", de Paulo Mendes Campos, sempre repetidos: "À noite, arquiteturas corrompidas...".. Os russos brilhavam no espaço sideral com seus surpreendentes engenhos, inventando estrelas. A arrogância tecnológica americana fora ultrapassada. Glauber, sempre loquaz, entusiasmava-se com as realizações do comunismo pós-stalinisita, enaltecia os sputiniks, antevia o fim do chicote e da exploração do homem pelo homem, sonhava alto. Éramos radicalmente democratas, até à subversão. A Rússia, a grande vitoriosa da guerra contra o Eixo fascista com seu imbatível Exército, era uma magnífica potência industrial, lembrava ele, elogiando o caminho dos astronautas pelas rotas das estrelas. E metíamos as mãos pelas águas do insondável e trevoso São Francisco, até que um tropeiro de voz aguda advertiu: "Piranhas!" "Piranhas!"
Janeiro e fevereiro de l958 - A magia recifense
Penedo. O surpreendente oásis no implacável deserto nordestino. A terra alagoana nos brindou com maravilhosas surpresas: no trem para Maceió, a inesperada convivência com o imenso Ascenso Ferreira, o poetão que encantou os dois adolescentes com um recital exclusivo das suas poesias. O casual encontro se aprofundou em Recife, que era, afinal, o grande porto da viagem, completado logo após em Caruaru, para onde Glauber foi exclusivamente a fim de conhecer e entrevistar mestre Vitalino, cujas mãos de mago davam vida às rudes formas do barro.
Recife e suas pontes, a metrópole nordestina, o odor forte dos seus mangues, a efervescência da sua vida cultural, o contato com grandes escritores, poetas, artistas plásticos. As belas putas nordestinas, morenas de bundas barrocas, saindo, contritas, das missas matutinas, véus na cabeça. As entrevistas glauberianas, ampliando o acervo das informações obtidas através das pesquisas de campo. Um incomensurável repositório de experiências vividas, como nenhum diretor de cinema realizou antes no Brasil, imprescindível não apenas para os filmes do cineasta, mas também para o ensaísta que se aprofundou sempre na nossa realidade, para interpretá-la com a magia da imagem inquieta e o poder de fogo das palavras.
Foi assim a primeira viagem de Glauber Rocha ao Nordeste. Tive a alegria de testemunhá-la como cúmplice. É óbvio que tudo isto evoco sem distanciamento, movido pela emoção da partilha. Acompanhando hoje, no Rio de Janeiro, a série de óperas em que uma cadeia de cinemas está retransmitindo, em alta definição, as mais belas e modernas realizações da Metropolitan Opera House, diretamente de Nova Iorque, pude ver, encantado e perplexo, como algumas das audaciosas soluções cênicas e dramáticas das obras já se encontravam nas concepções de Glauber, não só patentes em seus filmes (que são óperas loucas), como até mesmo nos espetáculos pioneiros (recitais no palco da poesia lírica) das "Jogralescas", no colégio Central.
Quis terminar meu artigo com esse depoimento, pois nunca é demais lembrar que o gênio de Glauber, um grande realizador cuja obra anda hoje meio esquecida nas telas, deverá ser sempre evocado como um notável momento da cultura baiana e, no seu plano mais vasto, brasileira.
Hosanas! Não foram muitos os que, como ele, nos deixaram tão imponente legado, que temos o dever nacional de preservar. Glauber foi - e continua sendo - um dos mais poderosos caminhos para o conhecimento do Brasil, terra difícil e ardilosa, como as terras de magia, sem as quais o mundo é um território de exílio - na verdade insípido e crepuscular.
João Carlos Teixeira Gomes é escritor, jornalista e membro da Academia de Letras da Bahia. É autor de "Gregório de Mattos, o Boca de Brasa", "Glauber Rocha, esse vulcão", "Memórias das Trevas" e "Assassinos da Liberdade".
FONTE (foto incluída): Terra Magazine - São Paulo,SP,Brazil
FOTO: O escritor João Carlos Teixeira Gomes relata uma viagem com o cineasta Glauber Rocha aos sertões do Nordeste, em 1958: uma aventura irrepetível
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