domingo, março 15, 2009

"Amoklauf": o caso de Winnenden


"Amoklauf": o caso de Winnenden
15-Mar-2009

O caso do jovem alemão que matou os colegas numa escola tem sido explicado na perspectiva de que se trata de um problema psicológico individual. Mas é necessário examinar outro motivo, que está à vista de todos: porque é que o acto de agressão é dirigido contra a escola? Na Alemanha, está há décadas em vigor um sistema escolar profundamente autoritário.

Texto de João Alexandrino Fernandes.

I
As palavras “Amokläufer” e “Amoklauf” são palavras estranhas, mesmo na língua alemã. A primeira parte do termo, “Amok”, foi trazida da Malásia e significa, traduzido para alemão, “Wut” ou “wütend”, ou seja, respectivamente, raiva, fúria, ou enraivecido, enfurecido. A segunda parte da palavra provém do verbo alemão “laufen”, que é um verbo bastante polivalente, e que, neste contexto, significa o decurso de um acontecimento, ininterruptamente, durante um certo período de tempo. “Amokläufer” é portanto o indivíduo que actua sob o impulso continuado da raiva ou da fúria, ininterruptamente, durante um certo lapso de tempo. “Amoklauf” é o decurso do acto em si. No entanto, é preciso salientar que não se trata nestes casos de uma explosão súbita de sentimentos, por mais violenta que seja, e que depois se acalma. Não, aqui estamos em presença de algo que podemos caracterizar como uma raiva fria, doentia, sob o efeito da qual o autor concretiza um plano, pensado em pormenor e executado com método, como se fosse uma máquina, e em que leva em consideração a sua própria morte. O “Amokläufer” como que desliga os sentimentos, tornando-se insensível ao mundo e por isso, durante a execução do plano, não fala, ou se alguma frase se lhe ouve é uma frase do género da que se ouviu a Tim Kretschmer numa das salas de aulas em que já tinha estado a disparar: “mas vocês ainda não estão todos mortos?”
Este facto não é novo na Alemanha, já aconteceu anteriormente, e a sua explicação também não é simples. Há muitos factores que se apontam como concorrendo para estas tragédias. Problemas de educação, falta de acompanhamento familiar, uma construção deficiente da personalidade que conduz ao isolamento, frustrações e contrariedades que anos e anos a fio se acumulam sem encontrarem solução, insucesso nas relações pessoais e sociais, o vício em jogos de vídeo de guerra, os chamados “ego-shooter”, a construção de mundos paralelos na Internet, como por exemplo através da participação em grupos de pessoas obcecadas pelo suicídio, finalmente o interesse e o acesso a armas de fogo, podemos dizer que todos estes factores se encontram geralmente presentes na pessoa do criminoso e contribuem para esta deformação da personalidade.

Julgando por aquilo que a Polícia alemã tem apurado, todos os elementos apontados surgem aqui. Um facto também muito importante é que o “Amokläufer” juvenil, como também aqui é o caso, dirige o ataque contra a sua própria escola. Trata-se de um aluno que ao longo da sua vivência escolar obtinha resultados fracos, que era alvo de mobbying ou de outra forma, mais ou menos subtil, de exclusão ou de afastamento pelos colegas, tratado com indiferença por parte dos professores, e que se sentia interiormente como aquilo que na América trocista e cinicamente se designa por “looser”, palavra que, e é mais um facto a lamentar, já entrou no vocabulário corrente dos adolescentes alemães.

Importante neste caso é também que Tim Kretschmer já tinha estado em tratamento psiquiátrico, que interrompera. Terá também há poucas semanas inclusivamente escrito uma carta aos pais, dizendo que se sentia muito mal e que não via nenhum futuro para a sua vida. Era uma pessoa discreta, que no entanto, partilhava o interesse do pai por armas de fogo, sendo um bom atirador. Pelo menos nestes últimos tempos tinha-se voltado para os jogos violentos - a Polícia já confirmou que tinha “Counterstrike” instalado no computador -, para chats depressivos e suicidas na Internet, ocupava-se portanto com pensamentos de suicídio e de vingança. Exercitava-se em casa com armas de ar comprimido, as chamadas “soft-air”, e o acesso às armas de fogo estava-lhe facilitado, dado que o pai, membro do clube popular local de atiradores, tinha em casa 16 armas de fogo, embora legais e registadas, uma das quais veio a ser utilizada no crime. É possível que tenha anunciado o ataque na Internet não tendo sido levado a sério, trata-se de um facto que já foi afirmado, depois posto em dúvida e que agora está a ser investigado.
II
Como se pode depreender, a tentativa de explicar um caso destes orienta-se sempre numa determinada perspectiva: trata-se de um problema psicológico individual. Porém, sendo evidentemente esta uma explicação importante, é apenas uma parte da explicação. É necessário examinar ainda um outro motivo, que está à vista de todos, mas que se trata como intocável: A pergunta é: porque é que o acto de agressão é dirigido contra a escola? O criminoso poderia expressar a sua raiva em qualquer outro lugar, poderia disparar em seu redor em qualquer outro lugar. Porque é que se dirige sempre contra a escola, o que é que faz estas pessoas escolherem as escolas como alvo? Esse é um motivo que nunca se procura investigar, como se ele não existisse. Sobre este ponto dever-se-iam também considerar alguns aspectos.

Na Alemanha está há décadas em vigor um sistema escolar profundamente autoritário. Inicia-se logo na escola primária. Durante os quatro anos de escola primária as crianças são observadas, testadas, e a partir do início da terceira classe fazem os seus testes com notas atribuídas até às décimas. Terminada a primária, portanto aos dez anos de idade, são separaradas em função da notas por três escolas secundárias, o liceu, (Gymnasium), uma escola que corresponderia sensivelmente à antiga escola comercial e industrial (Realschule) e uma terceira escola para os alunos que obtiveram os piores resultados, aqueles que nem para uma nem para outra obtiveram resultados na primária (Hauptschule). Ao ensino superior só vêem a ter acesso os alunos que seguirem para o liceu, os outros não. Ou seja, o sistema escolar alemão decide sobre o futuro de uma pessoa aos 10 anos de idade.

A insustentabilidade científica de semelhante sistema é já desde há anos criticada por muitos e reconhecidos pedadogos e psicólogos alemães. Mas há um interesse político em que só uma pequena parcela dos alunos possa um dia vir a integrar a elite dirigente. E por isso, o sistema político faz-se surdo às críticas e não permite a alteração. Isto porque os primeiros candidatos ao liceu são sempre os filhos das elites, que desta forma se reproduzem a si mesmas.

Dito de outra forma, a escola é o primeiro e mais poderoso instrumento de selecção social, visando a reprodução das elites e da organizacao social por estas dirigida. Os jovens alemães são como que metidos numa engrenagem de poder desde a infância. Aqueles que se conseguem adaptar, progridem, adquirem um grande património de conhecimentos e o lugar a uma posição privilegiada na sociedade. Adquirem a cultura de elite, normalmente da elite de que já provêem e tornam-se os seus defensores. Formam as classes alta e média-alta da sociedade.

Os outros formam as classes média-baixa e baixa: os técnicos, os operários qualificados e no fim da hierarquia os trabalhdores menos qualificados, que estão mais próximo daquilo que hoje em dia corresponderia ao operariado, no contexto de uma sociedade industrializada europeia. O que é também muito importante, é que todas as classes se reproduzem a si mesmas, porque a escola primária, na impossibilidade, óbvia embora formalmente negada, de avaliar correctamente crianças entre os seis e os dez anos de idade, em termos de extrair daí um padrão fixo de desenvolvimento para o futuro, usa, oculta mas efectivamente, um outro critério, guia-se pela ascendência da criança, considerando para tal a profissão e o estatuto social dos pais: em regra, e como exemplo, filho de licenciado ou de académico seguirá em princípio o liceu, filho de operário será operário, qualificado ou não. Este tratamento diferenciado não é evidentemente assumido pelo sistema escolar, mas é de facto praticado.

Feita esta primeira e fundamental distribuição, começa o segundo ciclo, no qual é transmitido aos alunos expressamente o princípio da concorrência: só os melhores dos melhores poderão ter um dia bons empregos, porque são os únicos que poderão ter sucesso nos complicados e extremamente selectivos processos de candidatura para as empresas. De modo que os alunos se vêem forçados, quer queiram, quer não, a participar num processo de luta pelas notas, que já fora iniciado na primária, e é reforçado logo a partir do primeiro ano do secundário. A pressão pelo sucesso e a censura pelo insucesso tornam-se uma constante da vida destes jovens. É assim evidente que todos os alunos se encontram sob um enorme estado de tensão, e embora não se tornem em “Amokläufer”, muitos, mas mesmo muitos, pagam por este mesmo estado de coisas outros preços, entre os quais um particularmente grave, o alcoolismo precoce. Os jovens alemães começam a beber muito cedo, desde os doze, treze anos, e não só cerveja, mas também bebidas brancas, tal como vodka, aguardente e semelhantes. E quanto mais se desce na hieraquia social, maior é o hábito de consumo de álcool, não só nos rapazes, mas também nas raparigas. Pior ainda é que bebem deliberadamente até à embriaguez e frequentemente até entrarem em coma alcoólico, tendo que ser levados para o hospital, havendo até já o caso de uma morte. Este é um problema conhecido, contra o qual ninguém sabe o que fazer. Mas também, como é óbvio, a ligação entre esta situação e a natureza do sistema escolar em que os jovens são obrigados a viver é ignorada, de forma a que o poder político não se veja confrontado com a necessidade notória e premente de reformular toda a estrutura da escola.

III

Daí que as explicações de índole exclusivamente psicológica que se procuram para este caso se ocupem essencialmente em mostrar o estado anímico do criminoso, partindo por essa via para a explicação dos factos. Mas esta forma de explicação desempenha também uma outra finalidade, esta já não ligada ao esclarecimento, ao conhecimento, do caso em si. Do que se trata é de fazer subestimar o papel que a própria organização social desempenha no surgimento de personalidades distorcidas, na forma que psicologicamente se explicou. É através do recurso a todo o conjunto de interpretações psicológicas dos factos, com o qual os meios de comunicação social inundam o público, que a elite dominante na sociedade procura, e consegue, realizar uma determinada finalidade: atribuir o crime cometido exclusivamente a um defeito, uma falha, um erro do indivíduo e, a partir daí, separar do facto criminoso o enquadramento social no contexto do qual, e só no contexto do qual, ele surge. Georg Lukács menciona este tipo de procedimento quando diz que: “ o objectivo do pensamento burguês, mesmo que nem sempre consciente, é a apologia da ordem estabelecida das coisas ou pelo menos a prova da sua imutabilidade”. E é exactamente isso que é feito. Usando aqui um termo pedido emprestado a John Rawls, é lançado um véu sobre a realidade, que não permite ver mais do que aquilo que o poder quer que se veja. A partir do momento em que todo o esclarecimento dos factos é condicionado a uma única linha de comprensão - a psicologia do criminoso - e a busca da verdade se limita à busca dos seus motivos, a partir do momento em que tudo o que está em causa é conseguir unir alguns factos separados e dar-lhes uma ligação plausível que conduza à afirmação de uma causalidade psicológica que afirme a culpa do indivíduo, a ordem social, tal como se encontra disposta, poderá ter sofrido uma ou outra pequena beliscadela, de que rapidamente se recomporá, mas no fundamental, nunca foi tocada, mostrando assim o seu carácter de imutabilidade. E é isso que acaba sempre por estar em causa. Se de facto existe uma relação entre actos como o de Winnenden e o tipo de escola em que o autor viveu e contra a qual se dirigiu, é uma hipótese, certeza não há porque não existem dados recolhidos para a avaliar. Mas também não existem dados porque não se investiga o problema neste sentido. Porém há algo que podemos assumir como certo: numa outra escola, num lugar de amizade e de aprendizagem, num lugar de realização das faculdades de cada um, de crescimento e desenvolvimento pacífico, de reconhecimento de cada um por aquilo que é e pode fazer, livre de pressões e de censuras, sem medo do futuro, as sementes da violência não encontrariam terreno onde medrar.

João Alexandrino Fernandes

Nota: a citação de G. Lukács é retirada de “Geschichte und Klassenbewußtsein, 1968, Früschriften II, Band 2, P.220.” Quanto a J. Rawls, refiro-me à ideia do „véu de ignorância”, (veil of ignorance) utilizado pelo autor no contexto da teoria do contrato social, em “A Theory of Justice”, 1971”.

FONTE: Esquerda - Lisboa,Portugal

FOTO: Wieder ein blutiger Amoklauf

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