Inigualável riqueza do génio pessoano
FERNANDO MADAÍL
Fernando Pessoa. Em 1958, na inauguração do "rectângulo de mármore" que assinala a casa onde o poeta nasceu, o discurso do escritor e universitário Vitorino Nemésio era ofuscado, em gongorismo, pelas palavras do presidente da Câmara de Lisboa
Pessoa já era o poeta de "mais intensa voga dos tempos modernos"
"Se exceptuarmos o longo período da adolescência, vivido na África do Sul, pode dizer-se que Fernando Pessoa fez discorrer a sua vida num triângulo formado pela casa familiar ou a pensão, num café do Chiado [a Brasileira] e noutro do Terreiro do Paço [o Martinho da Arcada]", discursava Vitorino Nemésio na cerimónia de descerramento da lápida comemorativa na casa onde nasceu o poeta, conforme se lê, em notícia de uma coluna, na segunda página da edição do Diário de Notícias de 1 de Dezembro de 1958.
"Esse espaço urbano, tão alfacinha, lhe bastou para reduzir a poesia e pensamento a uma das experiências vitais mais intimamente dramáticas e ricas da Europa contemporânea, tudo isso sob o exterior inalterável da boa educação do homem da rua", sentenciava o romancista de Mau Tempo no Canal e então "ilustre director" da Faculdade de Letras de Lisboa.
"Assim", concluía o mais prestigiado orador da cerimónia, "a Câmara Municipal e os amigos de Fernando Pessoa, lembrando ao viandante a casa onde nasceu o homem de génio, dotam a cidade de Lisboa de um dos seus maiores pergaminhos, que a aura cosmopolita do poeta, já hoje fortemente desenhada, tornará facilmente inteligível ao turista do Largo de S. Carlos" - como já escrevera o jornalista, a casa onde nasceu o autor de Mensagem era "o prédio n.º 4 do Largo de S. Carlos, situado defronte do nosso primeiro teatro lírico".
O discurso de Vitorino Nemésio, de que se reproduzia na íntegra apenas esta passagem, era muito mais claro que as "palavras" do presidente da autarquia, tenente-coronel Salvação Barreto, que tinha preferência na ordenação dos parágrafos da notícia. "Honra-se a Câmara Municipal de Lisboa, associando-se à iniciativa de comemorar a data do nascimento do poeta português de maior projecção no nosso tempo." E, no entanto, como já tinha sido explicado ao leitor, "o dia de ontem foi escolhido por ser aquele em que o homenageado faleceu - o dia e o momento, às 12 horas". Enfim, pormenores.
"Fernando António Nogueira Pessoa", prosseguia Salvação Barreto, "bem merece, pela sua complexa personalidade, pelo ardor patriótico dos seus poemas, pela riqueza inigualável do seu estro, este modesto registo do seu inconfundível valor, grande entre os maiores."
"Bem poucos o conheceram em vida e lhe mediram a estatura. Como frequentemente acontece aos grandes homens, também a este sucedeu merecer na consciência pública o justo apreço dos seus altos méritos, só após o seu passamento." Até parecia que o "escritor, filólogo, conferencista de raro merecimento" de que falava o presidente não era Nemésio, mas ele próprio.
"Não foi curta a vida dos homens que puderam produzir as obras geniais, aquelas que perenemente acompanham as civilizações e perduram, assim, na memória das gerações. Curta é a vida dos que ficam e não chega, parece, para se votarem à admiração e ao reconhecimento devidos aos que passaram e foram grandes como Fernando Pessoa", sublinhava Salvação Barreto, quando ainda ninguém pensava que até a arca do poeta, então ainda pouco conhecida, viria a ser causa de polémica entre herdeiros e autarcas.
Nemésio tinha referido que se se juntasse ao desejo de mestres e alunos das universidades brasileiras que pediam cursos sobre Pessoa ("com um entusiasmo que não cansa") o interesse manifestado pelas edições francesas, inglesas, alemãs e espanholas "teremos o caso literário português de mais intensa voga dos tempos modernos". Desta evidência até à universalidade pessoana, à posterior moda portuguesa e ao cânone ocidental ainda se passaram uns anos.
FERNANDO MADAÍL
Fernando Pessoa. Em 1958, na inauguração do "rectângulo de mármore" que assinala a casa onde o poeta nasceu, o discurso do escritor e universitário Vitorino Nemésio era ofuscado, em gongorismo, pelas palavras do presidente da Câmara de Lisboa
Pessoa já era o poeta de "mais intensa voga dos tempos modernos"
"Se exceptuarmos o longo período da adolescência, vivido na África do Sul, pode dizer-se que Fernando Pessoa fez discorrer a sua vida num triângulo formado pela casa familiar ou a pensão, num café do Chiado [a Brasileira] e noutro do Terreiro do Paço [o Martinho da Arcada]", discursava Vitorino Nemésio na cerimónia de descerramento da lápida comemorativa na casa onde nasceu o poeta, conforme se lê, em notícia de uma coluna, na segunda página da edição do Diário de Notícias de 1 de Dezembro de 1958.
"Esse espaço urbano, tão alfacinha, lhe bastou para reduzir a poesia e pensamento a uma das experiências vitais mais intimamente dramáticas e ricas da Europa contemporânea, tudo isso sob o exterior inalterável da boa educação do homem da rua", sentenciava o romancista de Mau Tempo no Canal e então "ilustre director" da Faculdade de Letras de Lisboa.
"Assim", concluía o mais prestigiado orador da cerimónia, "a Câmara Municipal e os amigos de Fernando Pessoa, lembrando ao viandante a casa onde nasceu o homem de génio, dotam a cidade de Lisboa de um dos seus maiores pergaminhos, que a aura cosmopolita do poeta, já hoje fortemente desenhada, tornará facilmente inteligível ao turista do Largo de S. Carlos" - como já escrevera o jornalista, a casa onde nasceu o autor de Mensagem era "o prédio n.º 4 do Largo de S. Carlos, situado defronte do nosso primeiro teatro lírico".
O discurso de Vitorino Nemésio, de que se reproduzia na íntegra apenas esta passagem, era muito mais claro que as "palavras" do presidente da autarquia, tenente-coronel Salvação Barreto, que tinha preferência na ordenação dos parágrafos da notícia. "Honra-se a Câmara Municipal de Lisboa, associando-se à iniciativa de comemorar a data do nascimento do poeta português de maior projecção no nosso tempo." E, no entanto, como já tinha sido explicado ao leitor, "o dia de ontem foi escolhido por ser aquele em que o homenageado faleceu - o dia e o momento, às 12 horas". Enfim, pormenores.
"Fernando António Nogueira Pessoa", prosseguia Salvação Barreto, "bem merece, pela sua complexa personalidade, pelo ardor patriótico dos seus poemas, pela riqueza inigualável do seu estro, este modesto registo do seu inconfundível valor, grande entre os maiores."
"Bem poucos o conheceram em vida e lhe mediram a estatura. Como frequentemente acontece aos grandes homens, também a este sucedeu merecer na consciência pública o justo apreço dos seus altos méritos, só após o seu passamento." Até parecia que o "escritor, filólogo, conferencista de raro merecimento" de que falava o presidente não era Nemésio, mas ele próprio.
"Não foi curta a vida dos homens que puderam produzir as obras geniais, aquelas que perenemente acompanham as civilizações e perduram, assim, na memória das gerações. Curta é a vida dos que ficam e não chega, parece, para se votarem à admiração e ao reconhecimento devidos aos que passaram e foram grandes como Fernando Pessoa", sublinhava Salvação Barreto, quando ainda ninguém pensava que até a arca do poeta, então ainda pouco conhecida, viria a ser causa de polémica entre herdeiros e autarcas.
Nemésio tinha referido que se se juntasse ao desejo de mestres e alunos das universidades brasileiras que pediam cursos sobre Pessoa ("com um entusiasmo que não cansa") o interesse manifestado pelas edições francesas, inglesas, alemãs e espanholas "teremos o caso literário português de mais intensa voga dos tempos modernos". Desta evidência até à universalidade pessoana, à posterior moda portuguesa e ao cânone ocidental ainda se passaram uns anos.
FONTE: Diário de Notícias - Lisboa - Portugal
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