terça-feira, dezembro 09, 2008

'Cultura latina pode nos tragar', diz Brouwer


'Cultura latina pode nos tragar', diz Brouwer
Compositor cubano fala da relação entre as raízes do continente e a tradição musical européia
João Luiz Sampaio
Homem de estatura mediana e olhar penetrante, desconcertado mas solícito perante o assédio do fotógrafo, o compositor cubano Leo Brouwer recebeu o Estado para uma conversa na tarde de quarta-feira, pouco antes de seu primeiro ensaio com o Quaternaglia, que vai estrear na semana que vem Gismontiana, obra dedicada a Egberto Gismonti. Durante pouco mais de meia hora, falou de música brasileira, literatura, de cultura latino-americana. Antes da conversa, sua mulher avisa: ele não fala de política, está cansado de ser mal interpretado. Condições aceitas e a conversa flui... você pode tirar o homem da política, jamais a política do homem.

O senhor vai estrear em São Paulo Gismontiana, homenagem ao brasileiro Egberto Gismonti. Como foi seu primeiro contato com a cultura brasileira? Em que medida o senhor considera que ela o influenciou?

Estimo muito a cultura brasileira, desde pequeno. A obra de Portinari, Di Cavalcanti, Villa-Lobos, Camargo Guarnieri me foram muito marcantes, assim como a literatura. Com o tempo, surgiu o contato pessoal com Chico Buarque, Caetano Veloso, Gismonti, Marlos Nobre, Edino Krieger. No final dos anos 60, criei um grupo em Havana para tocar e divulgar a música brasileira. Não acho, porém, que houve influências mas, antes, raízes comuns. Fundamentalmente, a cultura de origem africana. Tanto no Brasil quanto em Cuba, havia um movimento para preservar essa herança. E é compreensível, trata-se de uma das fontes culturais mais poderosas que existe.

O começo de sua carreira é muito marcado pelo resgate dessas raízes. A partir dos anos 60, no entanto, o contato com a vanguarda européia mudou os rumos de sua composição que, ainda assim, jamais abriu mão de suas heranças. No Brasil, vanguarda e nacionalismo brigaram durante décadas. Como foi possível conciliar, em sua obra, os dois mundos?

Esse diálogo seria impossível se as raízes nacionais fossem tomadas literalmente. Haveria, então, uma contradição incontornável. Mas então me encontrei com o violão. E entendi que, tratando o instrumento de maneira inteligente, a partir da inserção de novas linguagens, esse diálogo seria possível, chegaríamos, já naquela época, ao pós-moderno.

A combinação de formas aparentemente contraditórias me atraía. A vida, afinal, é assim. Mas acredito que, na Europa, esse diálogo seria impossível, seria entendido mais como uma curiosidade turística.

Como era o ambiente cultural na Havana dos anos 60? Como era recebida sua música?

Nos primeiros anos da revolução, havia uma liberdade muito grande, assim como há hoje. A diferença estava na fascinação do público, no interesse dos jovens pelo novo, pela experimentação. Fazíamos concertos com obra radicais e reuníamos 2 mil, 3 mil pessoas, enquanto obras de Brahms ou Rachmaninoff atraíam 700, 800. Houve um boom cultural muito grande e sentíamos que a música era uma referência concreta, com mensagens tão importantes quanto aquilo que nos dizia a obra de Borges, García Márquez, Cortázar. Isso se perdeu.

Em Concerto Barroco, Alejo Carpentier trata da situação do artista latino-americano perante o cânone, a tradição européia. Como o senhor experimentou essa situação?

A presença dessa questão na vida do artista é muito difícil de contestar. Vivemos em meio a uma natureza muito rica, a uma cultura excepcional, que questiona as próprias noções de geração, classe social, ao mesmo tempo em que evidencia os choques entre elas. Carpentier é um exemplo interessante. Tive o privilégio de ser amigo dele e pudemos conversar muito sobre isso. Ele era um prodígio de erudição mas não teria produzido a obra que produziu se tivesse apenas absorvido o seu entorno, para citar Ortega y Gasset. É, em certo momento, necessário buscar o distanciamento desse nosso fenômeno cultural tão avassalador que pode acabar nos tragando. É como uma escola de samba. Quando você está na avenida, desfilando, você sente aquele entorno, mas não consegue ver a escola em seu conjunto. Para isso, é preciso distanciamento. Mas queria aproveitar para ressaltar um aspecto importante, o perigo que nos cerca, a banalização das nossas raízes. Aqui também o distanciamento leva a um respeito que impede a transformação de nossas raízes tão preciosas em comercialismo barato, turístico.

O senhor falou em pós-modernismo. Após décadas de escolas e dogmas excludentes, vive-se hoje, na composição, uma liberdade muito ampla. Isso é um avanço? A sensação de que tudo vale a pena não é também, de certa forma, redutora?

Há uma distinção fundamental a ser feita. O pós-modernismo não pode ser o ambiente em que tudo vale a pena mas, sim, em que tudo pode valer a pena. Nos anos 60 e 70, começou a surgir um caminho unívoco para a vanguarda, que acabou se transformando na repetição de modelos. A vanguarda, enfim, virava tradição, fechada em si mesma. Em 1967, escrevi uma obra chamada A Tradição se Rompe, que terminava com um acorde medieval, o que, de certa forma, engloba e permite todos os sons. Precisávamos romper, e não fui o único, houve Berio, Penderecki, com os dogmas revolucionários que viravam status quo.

Como foi conviver com artistas como Alejo Carpentier, Kryzstof Penderecki, Julio Cortázar? Qual a lembrança que tem desse período? A efervescência de então pode repetir-se?

Era mesmo um momento extraordinário. Uma explosão naquele pós-guerra, um renascimento. Não se trata apenas das idéias que discutíamos ou da arte que propúnhamos. O que chamava a atenção era a paixão com que fazíamos isso, o ideal artístico, o rigor intelectual. Lembro de noites de conversa com Takemitsu, Morton Feldman, Cortázar. Estava em Paris quando Carpentier me chamou para seu hotel e lá discutimos sobre Concerto Barroco enquanto analisávamos a partitura de Vivaldi. Os concertos para milhares de pessoas... Foram grandes anos. Hoje? Vivemos na tal da aldeia global, o que acabou com a exaltação do fenômeno cultural, que se associou a um fenômeno econômico capitalista profundamente danoso, com a manipulação da informação, o poder da televisão. Os anos 60 e 70 foram de florescimento, e acho difícil reproduzir esse espírito. Mas acredito no poder de países como Brasil e China, que podem se tornar novas grandes potências.

Discografia básica

BROUWER - GUITAR MUSIC: Pelo selo Naxos, com preços acessíveis, há em alguns volumes uma boa coletânea da música para violão de Brouwer. Nesse primeiro volume da série, Ricardo Cobo interpreta Dos Aires Populares Cubanos, Berceuse: Canción de Cuna, Ojos Brujos, Danza Caracteristica e os fundamentais Estudios Sencillos.

RARA: Com obras de Brouwer e de alguns de seus contemporâneos, como Hans Werner Henze e Juan Blanco, o disco, além de mostrá-lo como intérprete, é um bom levantamento da produção dos anos 70 e da música que era feita então, em um diálogo de Brouwer com diversos autores e influências (Deutsche Grammophon).

BROUWER - GUITAR MUSIC: No quarto volume da coleção dedicada pela Naxos à sua obra para violão, o destaque, além de obras curtas do início da carreira do compositor, é a interessante La Ciudad de las Columnas, obra escrita em 2004 que evoca, em uma jornada musical, as diversas paisagens e imagens da capital cubana.

IN MEMORIUM: Seleção de obras de Leo Brouwer com a violonista Maria Esther Guzman, em homenagem a Andres Segovia. A regência é de Brouwer, à frente da Orquestra de Córdoba. Destaque para o Concerto Elegíaco, escrito para Julian Bream (há uma gravação, difícil de achar, da estréia da peça, com ele e o compositor, pelo selo RCA).

LEO BROUWER: O Concerto n.º 5 para Violão e Orquestra, “Helsinki”, abre o CD, que segue com a Suíte Iberia e termina com Yesterday to Penny Lane, sete transcrições para músicas dos Beatles, como Yesterday e Here, There and Everywhere. Com a Filarmônica de Tampere, regência de Tuomas Ollila e solos de Timo Korhonen (Ondine).

QUATERNAGLIA: O talentoso quarteto brasileiro de violões surgiu sob o signo da música de Leo Brouwer e, desde então, tem sido um dos principais divulgadores de sua música. No álbum de estréia do conjunto, eles interpretam, entre outras obras, a Toccata do compositor (o disco pode ser adquirido pelo site http://www.luthiermusic.com/).

THE BLACK DECAMERON: O exímio violonista John Williams interpreta com a London Sinfonietta O Decameron Negro e o Concerto de Toronto, dedicado a ele pelo compositor. O disco é o encontro de um dos maiores violonistas de todos os tempos com o compositor que ajudou a revolucionar o instrumento (Sony Classics).

FONTE: O Estado de São Paulo - São Paulo,SP,Brazil

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