Seriam mais de setenta anos, em breve. E quase nunca esse lapso de tempo, brevíssimo à escala cósmica, permite um punhado de poetas assim, de acto e de facto.
Na transiente e verificável vida que nos foi dado ver, existem sempre “estranhos estrangeiros” que pouco se mostram e que muito são. Contra o rigor do vento e das chuvas, esta é daquelas figuras maiores da nossa cultura que não pode ser lacerada pela inclemência do tempo e pela intolerância crítica. “Monstro sagrado” da nossa literatura e também das artes plásticas, e o epíteto é de Eugénio Lisboa, seria Rui Knopfli a atribuir-lhe o apodo de “engenheiro de almas”.
Connosco cruzou este homem sem que o soubéssemos todos. Completo e diferente, as esplanadas e as nossa ruas viseenses mais típicas recordam ainda a sua presença intensa e inconformada. Artista renascentista pela vastidão de apetências manifestadas (pintura, cenografia, docência, urbanismo, arquitectura, apicultura, jardinagem, pecuária...), é como poeta que o convoco, na sua pluralidade de máscaras e personalidades. Sempre corrosivo, clama para que o homónimo escritor António Quadros passasse a assinar António Quadras, uma vez que o pintor era ele; adentro do mundo poético, vingará em si um certo João Pedro Grabato Dias, nascido em Inhaminga (Moçambique) e mestiço de “industano, celta, judeu e com prováveis avós nos Concheiros de Muge.”
António Augusto de Melo Lucena e Quadros nasceu aqui bem perto de nós, em Viseu, no dia 9 de Julho de 1933, vindo a morrer em Santiago de Besteiros , no dia 1 de Julho de 1994, com inclusos sessenta e um anos de idade.
Desconfiado desde cedo da ductilidade do artefacto de verbal, não mais o largou a ideia demiúrgica da refundação e da recriação da linguagem. A incorformação e a heterodoxia serão assim uma pregnância de sempre, desde os primeiros escritos até às últimas criações, como um método que não admitia a fácil cedência ou a tergiversação. Há sinais humanos que dizem o homem que connosco priva. Lembro este, coonestado há pouco por um seu amigo e admirador, feito tão mais admirável quanto se sabe como os homens são volúveis em face das ternas palavras ou das passageiras glórias: chega a ser absolutamente superior a modéstia que leva Grabato Dias a não reclamar, na década de sessenta (1968), um prémio literário que ganhara em Moçambique (“Prémio Literário de Poesia da Câmara Municipal de Lourenço Marques”) com o nome de Grabato de Tete. Sem alardes, passado o fulgor, soube-o Eugénio Lisboa, membro do júri, siderado pela confissão silenciosa e desinteressada do Poeta. Na mesma senda, segue um Knopfli (quem lê?) ao defender, com respeito máximo, que António Quadros sempre foi um envergonhado camponês de Santiago de Besteiros.
Em 1970, sai a lume, em Lourenço Marques, um livro espantoso de nome 40 e Tal Sonetos de Amor e Circunstância e Uma Canção Desesperada. Na constrição da forma poética fixa (“Ó soneto, ó espartilho carcereiro!”), a colectânea pauta-se pela ousadia expressional e pela subversão inventiva, abundando, a par de um camonianismo estruturante, neologismos, justaposições estranhizantes e “infracções” ortográficas. A linguagem estende o seu corpo ginástico pelo calor vulcânico de cada sílaba, expandindo-se, suspendendo-se e recriando-se, logo reganhando a estrutura profunda do texto um halo de corrosão, sarcasmo e humor. Tal erupção léxica facilita em muito a causticidade e a intensidade diferenciadora de um refinadíssimo humor que só encontra alguma equivalência em Alexandre O’Neill. No humor, num território que é idiossincrasia e experimentação, levanta Grabato Dias uma ars poetica única (“Humor, minha automática secreta”). Poesia “ensimesmada, onírica, ironicamente realista, brutal, descabelada, ardentemente bizarra, reveladora de um mundo fantasmagórico e quase demasiado verdadeiro” (Eugénio Lisboa dixit), poucas vezes a nossa literatura conheceu tão descontrolada paródia (“Amor. Te. Ti, tigo. A morte. Amo-te / sem R, sem risco ao meio da morte”), tão acertado humor sobre a biografia poética (“No mundo em pedaços repartida / ficou-me a mim e ao luís vaz a vida, / galinha gorda rebolante ao espeto.”) e tão evidente gargalhada de dessacralização artística (“Me, mi, Mimi, migo... Ó amiga, as migas / ainda são um bom prato, e até com ligas / de duquesa se faz tanto soneto.”).
Iniciada a obra impressa em livro de modo arrebatador, muito havia a esperar de uma obra que mais e mais se acrescentou: A Arca – Ode Didáctica na Primeira Pessoa. Tradução do sânscrito ptolomaico e versão contida do Autor (1971), O Morto – Ode Didáctica (1971), Uma Meditação, 21 Laurentinas e Dois Fabulírios Falhados (1971), As Quybyricas. Poema éthico em outavas que corre como sendo de Luis Vaaz de Camões (1972), Pressaga (Ode Didáctica da Primeira Singular à Segunda Plural sobre as Terceiras, Segundas e Primeiras Pessoas) (1974), Eu, o Povo (1975), Facto / Fado. Pequeno Tratado de Morfologia. Parte VII. (1982), O Povo é Nós (1991), Sagapress (1992) e Sete Contos para um Carnaval (1992). Sabe-se existir ainda obra inédita e impressa de diminuta circulação, muita dela sem data.
Escolho, para conclusão, falar um pouco sobre As Quybyricas, até porque desde cedo se pensou tratar-se de um livro que muito desse que falar. “Testemunho irónico e fascinante”, assim o diz a releitura de Gil de Carvalho, esta obra de configuração épica é uma devastadora crítica ao regime português de então, esgotando-se o livro em poucos dias, sinal de que os leitores haviam entendido a perfídia subversiva. Polimórfico e sedutor, este longo poema de onze cantos e 1180 estâncias encerra tonalidades épicas, burlescas, dramáticas, jocosas, líricas, bucólicas e outras que fazem de si um imenso exemplar de descaso literário: afinal, quantos poemas como este no nosso século XX, em que “Luso descobre / que a herança imperial pouco mais era / que arco destinado a outra esfera”?
“O proscénio da luz começa aqui na pele”, diz o fabuloso João Pedro Grabato Dias. Estará o palco iluminado para esta diferença de acto e de facto?
FONTE (image include): revista de arte e crítica de viseu: da poesia excepcional: grabato ...
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