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10/8/2008 21:32:00
Criatura de papel?Por Felipe Fortuna Convivi por mais de dez anos com uma mulher fora do comum: além de belíssima, dominava o latim e o italiano e manejava com perfeição o arco-e-flecha. Perfeita amazona, talentosa ao tocar alaúde, essa mulher é uma das poetas mais intensas que se pode ler: e confessou seu amor por um poeta e diplomata quando ainda se encontrava casada com um comerciante da sua cidade natal. Viajante fugaz, artista passável, esse amante deixava a mulher fora de si com sua presença, porém muito mais com as seguidas ausências, que a faziam rimar versos de aguda saudade: “Ó belos olhos, ó olhares cruzados, / Ó quentes ais, ó lágrimas roladas, / Ó negras noites em vão esperadas, / Ó dias claros em vão retornados! (...) / De ti me queixo: esses fogos que trago / No coração causaram muito estrago, / Mas não te queima um lampejo sequer.”
Essa mulher se chama Louise Labé, viveu e morreu em Lyon entre 1522 e 1566 e seu único livro – Obras, publicado em 1555 –, se transformou num modelo do lirismo apaixonado da Renascença e de todos os tempos. Também se tornou a manifestação pioneira e irradiante do feminismo. Pois, consciente da sua singularidade em meio aos literatos, Louise Labé escreveu que “As severas leis dos homens não mais impedem as mulheres de se aplicarem às ciências e às disciplinas. (...) Aquelas que têm facilidade devem empregar essa honesta liberdade que nosso sexo antigamente tanto desejou para cultivá-las; e mostrar aos homens o equívoco em relação a nós quando nos privavam do bem e da honra que delas podiam vir.” Sua lucidez ia a extremos e flagrava até mesmo o mau comportamento de outras mulheres, que recriminavam os modos liberados (ou libertinos) da poeta. Contra essas mulheres algo invejosas, Louise Labé escreveu em sua “Elegia III”: “Não condeneis de maneira tão rude / Um jovem erro em minha juventude, / Se um erro foi: porém, quem sob o Céu / Se vangloria de jamais ser réu?” Conhecedora dos pontos culminantes dos sentimentos, a poeta compôs ainda a “Disputa de Loucura e de Amor”, impressionante peça teatral acerca das poucas diferenças e das muitas similaridades entres aqueles dois deuses que regem a vida humana.
Traduzi a obra integral de Louise Labé, finalmente publicada em 1995 numa edição que suponho agora esgotada. Juntei-me assim a um cortejo de admiradores da poeta lionesa, fascinados com sua obra de apenas 24 sonetos, 3 elegias e uma peça. Rainer Maria Rilke, também seu tradutor, considerava a poeta uma das grandes amantes já existentes, cuja força sentimental ultrapassaria o ser amado. Na História da Loucura (1972), Michel Foucault classificou o texto em prosa como crucial para o questionamento da distinção entre razão e loucura, considerada a possibilidade de infiltração de uma na outra. Obviamente, a vida e a obra tão intensas de Louise Labé muitas vezes se enredaram em controvérsias e incompreensões, algumas chocantes. O teólogo Calvino preferiu chamar a poeta de plebeia meretrix, como se estivesse gritando na rua. E até Simone de Beauvoir, em O Segundo Sexo (1949), sentenciou: “Louise Labé era sem dúvida uma cortesã: de todos os modos, teve uma grande liberdade de comportamento.”
Nenhuma dessas críticas e opiniões negativas conseguiu abalar o culto em torno àquela obra excelente. Em 2006, porém, a professora Mireille Huchon publicou um livro radical: Louise Labé, Uma Criatura de Papel. Especialista na literatura do século XVI, respeitada docente da Sorbonne, ela formulou a seguinte tese: o único livro de Louise Labé teria sido elaborado por pelo menos três escritores, todos homens, incluindo-se o amante Olivier de Magny; a poeta amorosa seria, portanto, uma invenção de beletristas que pretenderam “louvar Louise”, seguindo a moda iniciada pelo italiano Petrarca ao “louvar Laura” em seus poemas... Em suma: toda a obra de Louise Labé não passaria de uma espetacular impostura, de uma fraude que conseguiu atravessar séculos. Por meio de explicações eruditas e análises que beiram a investigação de um detetive, estaria provado que Louise Labé fora mesmo “uma criatura de papel”, ou uma “mulher de palha” que jamais escrevera um verso.
A autoridade de Mireille Huchon – ampliada nas páginas de Le Monde por um artigo de apoio do acadêmico Marc Fumaroli, também especialista na Renascença francesa – pairou por algum tempo, ameaçadora, sobre a convicção de que Louise Labé escreveu sobre seus amores e transmitiu novas idéias. Aos poucos, porém, foi a obra singular que se impôs sobre as dúvidas quanto à existência da escritora: afinal, os documentos demonstram que houve em Lyon uma Louise Labé admirada por outros poetas. Portanto, qual o sentido de fabricar uma escritora a partir de alguém que já existia? Por que uma falsificação coletiva teria perdurado por tanto tempo, sem qualquer suspeição? E qual o propósito artístico da fraude?
O argumento mais forte contra a tese da “criatura de papel” é, insisto, a existência da obra de Louise Labé: muito superior e mais coerente, na qualidade, na inovação e na sua unidade do que a obra daqueles que teriam elaborado a impostura – entre os quais, o poeta Maurice Scève, chefe literário da sua geração. A obra da poeta, marcante pelo estilo pessoal e por características de pensamento, dificilmente poderia ser produto de um grupo de falsificadores.
Resta, porém, compreender os esforços de Mireille Huchon, que coletou pacientemente várias presunções e nunca apresentou a prova irrefutável da sua tese. A quimera de Louise Labé se prolongou, na prática, para a quimera das idéias de sua intérprete, que está viva e existe. A professora demonstra todos os defeitos do especialista, que trabalha com os instrumentos técnicos e acadêmicos e nunca se pergunta sobre o significado intrínseco dos versos que leu. Volto à poeta: “Eu vivo, eu morro; no fogo eu me afogo. / No calor sinto o frio que me perfura; / A vida é muito mole e muito dura. / Sinto fastios e alegrias logo.” Ao contrário de Mireille Huchon, eu ainda quero sonhar muitas vezes com Louise Labé.
Essa mulher se chama Louise Labé, viveu e morreu em Lyon entre 1522 e 1566 e seu único livro – Obras, publicado em 1555 –, se transformou num modelo do lirismo apaixonado da Renascença e de todos os tempos. Também se tornou a manifestação pioneira e irradiante do feminismo. Pois, consciente da sua singularidade em meio aos literatos, Louise Labé escreveu que “As severas leis dos homens não mais impedem as mulheres de se aplicarem às ciências e às disciplinas. (...) Aquelas que têm facilidade devem empregar essa honesta liberdade que nosso sexo antigamente tanto desejou para cultivá-las; e mostrar aos homens o equívoco em relação a nós quando nos privavam do bem e da honra que delas podiam vir.” Sua lucidez ia a extremos e flagrava até mesmo o mau comportamento de outras mulheres, que recriminavam os modos liberados (ou libertinos) da poeta. Contra essas mulheres algo invejosas, Louise Labé escreveu em sua “Elegia III”: “Não condeneis de maneira tão rude / Um jovem erro em minha juventude, / Se um erro foi: porém, quem sob o Céu / Se vangloria de jamais ser réu?” Conhecedora dos pontos culminantes dos sentimentos, a poeta compôs ainda a “Disputa de Loucura e de Amor”, impressionante peça teatral acerca das poucas diferenças e das muitas similaridades entres aqueles dois deuses que regem a vida humana.
Traduzi a obra integral de Louise Labé, finalmente publicada em 1995 numa edição que suponho agora esgotada. Juntei-me assim a um cortejo de admiradores da poeta lionesa, fascinados com sua obra de apenas 24 sonetos, 3 elegias e uma peça. Rainer Maria Rilke, também seu tradutor, considerava a poeta uma das grandes amantes já existentes, cuja força sentimental ultrapassaria o ser amado. Na História da Loucura (1972), Michel Foucault classificou o texto em prosa como crucial para o questionamento da distinção entre razão e loucura, considerada a possibilidade de infiltração de uma na outra. Obviamente, a vida e a obra tão intensas de Louise Labé muitas vezes se enredaram em controvérsias e incompreensões, algumas chocantes. O teólogo Calvino preferiu chamar a poeta de plebeia meretrix, como se estivesse gritando na rua. E até Simone de Beauvoir, em O Segundo Sexo (1949), sentenciou: “Louise Labé era sem dúvida uma cortesã: de todos os modos, teve uma grande liberdade de comportamento.”
Nenhuma dessas críticas e opiniões negativas conseguiu abalar o culto em torno àquela obra excelente. Em 2006, porém, a professora Mireille Huchon publicou um livro radical: Louise Labé, Uma Criatura de Papel. Especialista na literatura do século XVI, respeitada docente da Sorbonne, ela formulou a seguinte tese: o único livro de Louise Labé teria sido elaborado por pelo menos três escritores, todos homens, incluindo-se o amante Olivier de Magny; a poeta amorosa seria, portanto, uma invenção de beletristas que pretenderam “louvar Louise”, seguindo a moda iniciada pelo italiano Petrarca ao “louvar Laura” em seus poemas... Em suma: toda a obra de Louise Labé não passaria de uma espetacular impostura, de uma fraude que conseguiu atravessar séculos. Por meio de explicações eruditas e análises que beiram a investigação de um detetive, estaria provado que Louise Labé fora mesmo “uma criatura de papel”, ou uma “mulher de palha” que jamais escrevera um verso.
A autoridade de Mireille Huchon – ampliada nas páginas de Le Monde por um artigo de apoio do acadêmico Marc Fumaroli, também especialista na Renascença francesa – pairou por algum tempo, ameaçadora, sobre a convicção de que Louise Labé escreveu sobre seus amores e transmitiu novas idéias. Aos poucos, porém, foi a obra singular que se impôs sobre as dúvidas quanto à existência da escritora: afinal, os documentos demonstram que houve em Lyon uma Louise Labé admirada por outros poetas. Portanto, qual o sentido de fabricar uma escritora a partir de alguém que já existia? Por que uma falsificação coletiva teria perdurado por tanto tempo, sem qualquer suspeição? E qual o propósito artístico da fraude?
O argumento mais forte contra a tese da “criatura de papel” é, insisto, a existência da obra de Louise Labé: muito superior e mais coerente, na qualidade, na inovação e na sua unidade do que a obra daqueles que teriam elaborado a impostura – entre os quais, o poeta Maurice Scève, chefe literário da sua geração. A obra da poeta, marcante pelo estilo pessoal e por características de pensamento, dificilmente poderia ser produto de um grupo de falsificadores.
Resta, porém, compreender os esforços de Mireille Huchon, que coletou pacientemente várias presunções e nunca apresentou a prova irrefutável da sua tese. A quimera de Louise Labé se prolongou, na prática, para a quimera das idéias de sua intérprete, que está viva e existe. A professora demonstra todos os defeitos do especialista, que trabalha com os instrumentos técnicos e acadêmicos e nunca se pergunta sobre o significado intrínseco dos versos que leu. Volto à poeta: “Eu vivo, eu morro; no fogo eu me afogo. / No calor sinto o frio que me perfura; / A vida é muito mole e muito dura. / Sinto fastios e alegrias logo.” Ao contrário de Mireille Huchon, eu ainda quero sonhar muitas vezes com Louise Labé.
Felipe Fortuna nasceu no Rio de Janeiro, em 1963. Mestre em Literatura Brasileira (PUC/RJ), é poeta e ensaísta, e vem colaborando regularmente na imprensa brasileira. Publicou Ou Vice-Versa (1986), Atrito (1992) e Estante (1997), poemas; A Escola da Sedução (1991) e A Próxima Leitura (2002), crítica literária; Curvas, Ladeiras - Bairro de Santa Teresa (1997) e Visibilidade (2000), ensaios. Traduziu a obra integral da poeta francesa Louise Labé no volume Amor e Loucura (1995). Diplomata, atualmente trabalha em Londres. Em 2005, publicou um novo livro de poemas, juntamente com os três anteriores, no volume Em Seu Lugar (Editora Francisco Alves). E-mail: felipefortuna@felipefortuna.com
FONTE: http://www.cronopios.com.br/
¿Cuándo usted puede venir a mi país? deseó conocerle. Paloma en llamas
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