terça-feira, maio 20, 2008

"Quero a profundidade da pele" - Carlito Azevedo

Carlito Azevedo
"Quero a profundidade da pele"
Entrevista/Carlito Azevedo
Carlito Azevedo se define como herdeiro do concretismo, do modernismo, da poesia marginal e do surrealismo. Seu estilo, porém, é pessoal. E, se dos grandes mestres assimilou a pletora de gêneros, é dos poetas contemporâneos que vêm a identificação de quem vive as angústias e venturas deste final de século. O poeta reconhece a dívida geracional ainda não resgatada: "Minha geração não avaliou exatamente a terrível perda de Ana Cristina César, Paulo Leminski e Cacaso". O poeta Haroldo de Campos saúda Carlito como um de seus herdeiros, ao que ele, modesto, cita Valéry: "O importante não é o prêmio, mas sim não ter feito por merecer". Para Carlito, que não se alinha com as vanguardas, ousado é ser "absolutamente tradicional": "Quando um autor escreve hoje um soneto, terá de se medir com Dante e Shakespeare. Esta é uma ousadia muito maior do que partir para um campo em que não há adversário". Em seu novo livro Sob a noite física (Sette Letras), o desejo juvenil de ser pintor reaparece em seus versos. As imagens que povoam seu imaginário surgem, inspiradas, em seus poemas.

- Em As banhistas, seu ponto de partida era um quadro de Cézanne. Neste livro, um dos poemas é dedicado à pintura de Vieira da Silva. Qual o papel da pintura em sua poesia? A relação da poesia de João Cabral com a pintura serviu de guia para você?

- Há aí um lado pessoal pois eu queria ser mais pintor do que poeta. Mas ao mesmo tempo em que achava que não tinha talento para a pintura, minhas tentativas poéticas recebiam apoio. Até hoje, quando escrevo crítica, não gosto de escrever sobre poesia, e sim sobre pintura, assunto com o qual me sinto mais à vontade para dialogar. E, na língua portuguesa, quando você pensa em um poeta falando sobre pintores, você tem que pensar em João Cabral. Foi ele quem fez isso com mais radicalidade e talento.

Existem duas famílias de poetas: as que trabalham mais com a imagem e as que trabalham com idéias mais fluidas. Por exemplo, com o quadro Os jogadores de cartas, tanto é possível descrever a imagem concretamente - as roupas, textura, as expressões - como partir daquilo ali para idéias mais metafísicas. Eu não quero ir além da imagem. Concordo com Oscar Wilde que diz que "o mais profundo é a pele". A profundidade que quero é a da pele.

- Vários de seus poemas trazem alusões à obra de poetas: Cabral, Lautréamont, Drummond. Que relação mantém com a tradição?

- Eu sou absolutamente tradicional. Até os anos 50, com as vanguardas, com a idéia da poesia concreta, existia a idéia de que era legal romper com a tradição. Este é o lado do modernismo e das vanguardas com que menos me identifico. Acho mais ousado estar dentro da tradição do que tentar criar do lado de fora. É mais ousado quem tenta dialogar com uma tradição enorme, pois terá que se medir com grandes criadores.

Quando um autor escreve hoje um soneto, ele terá que se medir com Dante, com Camões, com Shakespeare. É essa uma ousadia muito maior do que partir para um campo novo em que não há um adversário. Gosto muito de saber que tenho uma família no tempo e no espaço, com a qual dialogo constantemente.
- Por que suas poesias trazem tantas palavras em francês?

- Minha influência principal vem da literatura francesa, principalmente de Apollinaire, Max Jacob e Pierre Verdi. A língua francesa teve o privilégio de ter sido trabalhada no século passado por quatro criadores fenomenais: Baudelaire, Rimbaud, Verlaine e Malarmé. Com isso, ela entrou no século seguinte beneficiada, previamente poética.

Quando estou escrevendo um poema, a música da língua francesa é algo que ecoa e entra naturalmente em minha poesia. O verso já vem em francês. Também vem um pouco do meu ofício de tradutor de literatura francesa.
- O poeta Alexei Bueno declarou recentemente que "o panorama geral da poesia brasileira neste momento é em grande parte dedicado a bagatelas e insignificâncias como só talvez no período do neoparnasianismo se tenha visto". A poesia brasileira para ele peca por falta de ambição em relação a seus temas, frívolos demais na opinião dele. O que você acha?

- Não concordo com este ponto de vista, pois é muito cedo para se julgar qualquer coisa. Frívola também foi considerada a poesia de Carlos Drummond de Andrade, de Mário de Andrade, e alguns anos depois as pessoas perceberam que eles eram grandes criadores. Eu não sou vigia da poesia alheia.

- Você acha que o momento é fértil para lançar livros de poesia? Você identifica um perfil nesta nova linhagem de poetas?

- Com certeza. As estréias poéticas, de 1990 para cá, foram muitas e boas. Mas, ao contrário de outras épocas, em que havia um tipo de poesia predominante, hoje, cada um tem seu estilo e é bom que seja assim. A partir do momento em que você não tenta imitar ninguém, a variedade e a multiplicidade são muito mais enriquecedoras. Como diz Arnaldo Antunes, em uma de suas músicas: "riquezas são diferenças". A riqueza do momento está na diversidade de poéticas.

- Na orelha de seu novo livro, Sob a noite física, há uma citação de Haroldo de Campos, que o identifica como um dos seus "herdeiros". Você se sente à vontade com essa identificação?

- Sou herdeiro do concretismo como sou do modernismo, da poesia marginal e do surrealiasmo, pois, tendo vindo depois deles, não ignorei o legado de nenhum.

Aproveitei de cada um o que queria e, se um deles me considera um herdeiro, tenho certeza de que, se isso é um elogio, acho que não fiz por merecer. Paul Valéry diz o seguinte: "o importante não é o prêmio. O importante é não ter feito por merecer".

- O legado do concretismo continua vivo?
- Vivo e transformado. Lendo o novo livro do Antônio Cícero, Guardar, você vê como ele metabolizou bem a herança concretista e, ao mesmo tempo, conseguiu trabalhar aquilo, com coloquialidade, com seus estudos de filosofia e literatura grega. O estado puro do concretismo só foi possível nos anos 50. Depois, várias questões que vieram com o passar do tempo, como o sexo e a droga nos anos 70, foram deixadas de fora da poesia concreta. Um poeta que ignora as novas informações e fica restrito a um conjunto de temas não está vivendo seu tempo com a intensidade que ele exige.
- A poesia é para você um exercício solitário ou algo a ser vivido e compartilhado em grupos, escolas, movimentos?

- É solitário, mas o diálogo entre os poetas da mesma geração é fundamental. Não consigo gostar de um poeta de qualquer outro século como gosto dos do meu tempo.

Se nos outros eu encontro a perfeição, a maestria e a exuberância, a aflição do cotidiano, dos corpos na cidade, isso só encontro nos poetas contemporâneos, como, por exemplo, Antônio Cícero, Arnaldo Antunes, Paulo Leminski e Ana Cristina César.

- Do que você mais sente falta no ambiente literário no Brasil?
- Sinto falta de pessoas. Minha geração ainda não avaliou exatamente a terrível perda de Ana Cristina César, Paulo Leminski e Cacaso. Os três, que morreram muito jovens, poderiam até hoje estar publicando livros e críticas e participando de debates de poéticas. É como uma seleção perder três titulares.

(in Caderno Idéias, Jornal do Brasil, 14.12.96)

Nota do JP: Carlito Azevedo é um dos poetas mais+mais, a Lista dos 20!
Leia obra poética de Carlito Azevedo
FONTE: Jornal de Poesia

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