domingo, maio 18, 2008

A literatura fora do castelo


RESENHA
A literatura fora do castelo
Henrique Araújo

especial para O POVO
Para o crítico literário José Castello, a crítica especializada e a leitura despretensiosa igualam-se; a técnica e o estilo são menores se comparados ao susto que a obra provoca

17/05/2008 01:16

Perguntas anotadas escrupulosamente num bloquinho de papel como os tantos que se avolumam nas redações de jornais, o entrevistador foi bater à porta da entrevistada, uma filósofa parisiense, leitora incorrigível de uma brasileira: Clarice Lispector. Era setembro de 1996 quando o repórter literário acomodou-se na sala da pensadora, uma residência confortável numa Paris friorenta, sacou da algibeira o calhamaço de questões e, imprevisto, calou-se. "Sem pensar, atirei minha miserável lista de perguntas sobre uma almofada. Elas não me valiam mais nada", escreveria o repórter. "A entrevista, precocemente, se desviava de meus objetivos e tomava um rumo que eu não podia deter." O repórter depusera as armas, refém das brechas não reguladas por manuais de bom jornalismo.

O repórter do parágrafo acima chama-se José Castello, tem 58 anos, publicou Inventário das Sombras, Vinícius de Moraes: o poeta da paixão e a ficção Fantasma. É crítico literário com têmpera híbrida, colabora com jornais e sites de literatura. O repórter depõe as armas é o primeiro ensaio do último livro publicado por ele, no final de 2007: A literatura na poltrona - jornalismo literário em tempos instáveis (Record, 204 páginas). Nele, Castello esclarece: depor as armas não quer dizer bater em retirada ou entregar-se sem lutar. Quer dizer... Ele mesmo diz: "Fiz tudo ao contrário do que estava habituado a fazer". Como lixo, continua, as perguntas endereçadas à filósofa HélÕne Cixous foram atiradas no sofá. O repórter viu-se sem prumo, mas não sem rumo. "Em vez de fazer novas perguntas, eu devia me limitar a ouvir. Fazer do silêncio, um caminho. Da espera, uma resposta. E das respostas, perguntas." Embora possam soar excessivamente retóricas, as frases de Castello têm, ao menos ao longo dos quinze ensaios que integram o livro, uma razoável aplicabilidade. Ou mesmo um grande poder de convencimento.

Sai-se de A literatura na poltrona com algumas noções ligeira ou totalmente abaladas. Uma delas é a de entrevista. Outra: a de crítica literária. Outra mais e, talvez, a principal delas, que, longe de interessar apenas a jornalistas, tem que ver com o mundo de devoradores de livro: a própria noção de literatura. Aqui, Castello não somente arrola um sem-número de escritores e referências literárias - mas sempre bem encaixadas, requeridas pelo fio argumentativo e nunca puramente ornamentais -, mas, cozinhado-os, chega ao seguinte acerca da literatura: que ela espante. Sim, que o texto literário desconforte, desampare, desassossegue. Para ele, literatura não é estilo, técnica ou erudição, mas susto, espanto, choque, abalo.

Mais de Castello. Sobre a relação entre crítica especializada e a apreciação lúdica ou despretensiosa das obras - entre uma coisa e outra, ele interpõe apenas o objeto livro -, ele escreve: "A literatura não é o lugar da ciência. A literatura é o lugar das experiências incompletas." Adiante, acrescenta: "Toda literatura é feita de mal-entendidos". Ou seja, o terreno movediço, para não falar em lamaçal, onde circula o literário impossibilita que se conceba um projeto que possa garantir a análise precisa do texto, uma leitura absolutamente técnica, certeira. O texto, segundo Castello, é abismo, buraco a que cada um enxerga a partir de lugares e tempos distintos, obedecendo a referências e significados bastante indeterminados.

Sobre a moda das oficinas literárias - a que, em parte, Castello confessa também ter aderido, mas noutro sentido - lemos que não há leis ou normas a serem ensinadas, que há bem mais jogo de cena do que qualquer outra coisa. Para o autor de A literatura na poltrona, livros são sinônimo de imaginação (ou da falta dela). Dito isso, ele avança: imaginação não se ensina, mas se estimula. É isso que Castello tenta fazer nas oficinas que ministra, sempre de olho no que, para ele, constitui a única cláusula pétrea existente quando se fala em literatura. "Só existe uma lei: seduzir o leitor." A relação entre livro e leitor é, ensina Castello, erótica.

SERVIÇO

A literatura na poltrona - jornalismo literário em tempos instáveis - mais novo livro do jornalista e escritor José Castello.

Editora Record, 204 pgs. Preço: R$ 35.

FONTE (photo include): O POVO Online - CE,Brazil

Nenhum comentário:

Postar um comentário