quarta-feira, abril 16, 2008

A teoria pura do direito e a argumentação - Chaïm Perelman


A teoria pura do direito e a argumentação
Chaïm Perelman
Pet-Jur - PUC-Rio

O esforço notável de Hans Kelsen de constituir uma ciência do direito livre de toda ideologia, de toda intervenção de considerações extra-jurídicas, e que se concretizou pela elaboração de sua teoria pura do direito (Reine Rechtslehre), foi talvez o fato que suscitou mais controvérsias entre os teóricos do direito do último meio século.
As teses apresentadas por esse mestre inconteste do pensamento jurídico, com a clareza e a força de convencimento que caracterizam todos os seus escritos, colocaram em questão tantas idéias comumente admitidas, atingiram tantas conseqüências paradoxais -- das quais a mais escandalosa diz respeito à concepção tradicional da interpretação jurídica, bem como ao papel do juiz na aplicação do direito --, que nenhum teórico do direito poderia nem as ignorar nem abster-se de posicionar-se a seu respeito.
A ciência do direito, como conhecimento de um sistema de normas jurídicas, não pode constituir-se, segundo nosso autor, senão excluindo tudo o que é estranho ao direito propriamente dito. O direito, sendo um sistema de normas coercitivas válido em um Estado determinado, pode ser distinguido nitidamente, por um lado, das ciências que estudam os fatos de toda espécie, o que é e não o que deve ser (o Sein oposto ao Sollen), e, por outro, de todo sistema de normas diverso -- de moral ou de direito natural -- com o qual gostaríamos de confundi-lo ou ao qual gostaríamos de subordiná-lo. Uma ciência do direito não é possível, segundo Hans Kelsen, a não ser que seu objeto seja fixado sem interferências estranhas ao direito positivo. Eis porque a teoria pura do direito se apresenta como a "teoria do positivismo jurídico".
Nesta perspectiva, um ato ilícito é um ato que é "a condição de reação específica do direito, do ato de coerção". A sanção é pronunciada pelos juízes, aqueles que têm a competência para aplicar as regras do direito nas situações determinadas pela lei. Esta será válida se tiver sido elaborada e promulgada em conformidade com regras de um nível superior que determinam as condições de funcionamento dos poderes legislativo e executivo. Essas condições são normalmente fixadas numa constituição que fornece a lei fundamental do sistema jurídico ou que remete a uma outra lei que garante a validade da atual constituição.
Todo sistema de normas e de atos jurídicos é, ao mesmo tempo, hierarquizado e dinâmico. Ele é hierarquizado porque os atos jurídicos adquirem validade a partir de sua conformidade a normas jurídicas, que dependem por sua vez de outras normas, e assim por diante, até atingir-se a lei fundamental, que não tem justificação jurídica, mas é pressuposta por todas as normas e todos os atos jurídicos do sistema.
Um sistema de direito difere de um sistema formal, segundo Hans Kelsen, porque ele não é estático, mas dinâmico. Efetivamente, as normas inferiores e os atos jurídicos não podem ser deduzidos de normas que condicionam sua validade, mas que fornecem unicamente o quadro dentro do qual as normas inferiores, bem como os atos jurídicos que as aplicam, podem inscrever-se validamente.
O legislador, o juiz, o administrador (ao menos no caso do administrador indireto) recebem, numa medida variável, a autoridade necessária, seja para criar novas leis no quadro da lei constitucional, seja para concretizar, para individualizar uma norma geral nos casos particulares de aplicação. Em todos esses casos, sua ação é criadora do direito, de forma que o legislador não interpreta a constituição, mas decide votar certas leis, em virtude do poder legislativo que a constituição lhe atribui, assim como o juiz, aplicando a lei, não tem por missão dizer seu sentido correto (richtig), mas decidir, dando sua sentença, qual é, dentre as interpretações possíveis da lei, aquela que ele quer privilegiar, na ocorrência: sua decisão, exatamente como a do legislador, não é, segundo Kelsen, a expressão de um conhecimento, mas um ato de vontade.
A motivação de uma decisão judiciária, assim como o preâmbulo que justifica um projeto de lei, pertence não à teoria do direito, mas à política jurídica, que precisam ser nitidamente dissociadas. Se é incontestável que o direito é um meio em vista da realização de finalidades sociais de toda espécie, a ciência do direito, como conhecimento de um sistema de normas, não tem por objeto senão o estudo dessas normas e de seu significado, independentemente das conseqüências que resultariam de sua aplicação. Todo recurso à interpretação teleológica das normas jurídicas sai, segundo nosso autor, dos quadros da ciência do direito, pertencendo à política jurídica.
A teoria pura do direito se caracteriza, como acabamos de mostrar muito brevemente, por um intransigente dualismo que opõe, por um lado, o ser ao dever ser, a realidade ao valor (e conjuntamente as ciências da natureza às ciências do espírito, a natureza à sociedade, bem assim a causalidade à imputação) e, por outro, o direito à moral e o direito positivo ao direito natural.
A ciência do direito, enquanto conhecimento do direito positivo deve eliminar impiedosamente todas as considerações que são essencialmente estranhas a seu objeto e que introduzem sub-repticiamente, por intermédio de ideologias de toda espécie, tomadas de posição decorrentes da política jurídica, fazendo-as passar por resultados cognitivos, decorrentes da ciência do direito. Foi extraindo as conseqüências lógicas das teses que vimos de expor que Hans Kelsen concebeu a teoria pura do direito, em que o ponto de partida (a norma fundamental) bem como todos os pontos de passagem (de uma norma geral a uma norma particular, ou de uma norma a um caso de sua aplicação), dependem de decisões, de atos de vontade, que não se fundam em direito, mas se justificam por considerações de ordem política ou moral.
Mas pode o conhecimento guiar a vontade em moral e em política ? Se se adota o dualismo kelseniano, que é também o de Hägerström, deve-se renunciar à ilusão da razão prática em todos os domínios, e não somente em direito. É o resultado estabelecido por Alf Ross em sua Kritik der sogenannten praktischen Erkenntnis (Leipzig, 1933). Mas então pode-se falar seriamente de uma decisão razoável, de um julgamento bem motivado, de uma escolha justificada, de uma pretensão fundamentada ? E se semelhantes asserções não forem mais que racionalizações destinadas a enganar os ingênuos, exprimiria toda vida social alguma coisa que não relações de força ? E a filosofia prática serviria a outra coisa senão para cobrir com um manto de respeitabilidade aquilo que os interesses e as paixões impõem pela coerção ?
Parece-me que todos os paradoxos da teoria pura do direito, bem como todas as suas implicações filosóficas, derivam de uma teoria do conhecimento que não atribui valor senão a um saber incontroverso, inteiramente fundado nos dados da experiência e na prova demonstrativa, negligenciando totalmente o papel da argumentação. Na verdade, nem a experiência nem a demonstração lógica permitem a passagem do ser ao dever ser, da realidade ao valor, do comportamento às normas.
Daí, como toda justificação racional das normas parecem excluídas da perspectiva kelseniana, elas dependeriam efetivamente de imperativos religiosos, de revelações sobrenaturais. As metafísicas racionalistas que procuraram um fundamento puramente humano para nossas normas e nossos valores seriam apenas ideologias, esforçando-se em vão por substituir o fundamento religioso não racional. E, neste ponto, é difícil deixar de seguir nosso autor: se nos recusamos a considerar comprobatórias intuições controvertidas, não existe, no domínio das normas e dos valores que regem nossa ação, provas demonstrativas e constringentes.
Mas seria preciso, à falta de prova demonstrativa, renunciar a justificar por uma argumentação igualmente convincente e possível nossas escolhas e decisões, nossos valores e normas ? E seria preciso, na ambição de constituir uma ciência do direito e uma teoria pura do direito, considerar como juridicamente arbitrário tudo o que só pode ser justificado por meio de semelhante argumentação ?
Para constituir uma ciência do direito, tal qual ela é, e não tal qual deveria ser, é necessário, parece-me, renunciar ao positivismo jurídico, da maneira concebida por Kelsen, para consagrar-se a uma análise detalhada do direito positivo, da maneira como se manifesta efetivamente na vida individual e social, e mais particularmente nas cortes e tribunais. É esta que revela, de fato, que o dualismo kelseniano não corresponde nem à metodologia jurídica, nem à prática judiciária.
Notemos, para começar, que um sistema de direito não se apresenta de uma maneira tão formal e impessoal como um sistema axiomático, lógico ou matemático. Estando constituido um sistema formal, suas propriedades podem ser investigadas através de um estudo objetivo, inteiramente independente da vontade do lógico ou do matemático. Quer se trate de provar que o sistema é coerente, i.e., que nele não podemos demonstrar uma proposição e sua negação, ou de provar que ele é completo, i.e., que nele podemos demonstrar qualquer proposição bem formulada ou sua negação, as propriedades do sistema dependem somente da sua própria estrutura. Mas não é assim em direito.
Nos sistemas jurídicos modernos, o juiz é obrigado, sob pena de sanções penais, a julgar e motivar suas decisões. Efetivamente, "le juge qui refusera de juger, sous prétexte du silence, de l'obscurité, ou de l'insuffisance de la loi, pourra être poursuivi comme coupable de déni de justice" * (Código Napoleão, artigo 4o.). Ele deve dizer o direito em todos os casos de sua competência. Portanto, ele está obrigado a julgar e argumentar como se o sistema de direito que aplica estivesse livre de lacunas e não comportasse antinomias.
Para evitar o "déni de justice", o juiz deve obrigatoriamente considerar aparentes as lacunas e as antinomias, ainda que não resulte do sistema, de uma forma não ambígua, a maneira como ele deve proceder para atingir o resultado, isto é, a decisão fundamentada que se espera dele. Se se presume o sistema de direito isento de lacunas e antinomias, isto se deve ao poder de decisão conferido ao juiz.
Mas esse poder, que não é limitado por um quadro legal claramente definido de uma vez por todas -- já que os termos de uma lei, claros e isentos de ambigüidade em certos casos de aplicação, podem deixar de sê-lo em outros -- não é tampouco um poder arbitrário que o juiz pode usar a seu talante: ele se encontra, efetivamente, na obrigação de fundamentar suas decisões. As decisões, suas motivações, contribuem na elaboração da ordem jurídica, uma vez que fornecem precedentes para decisões futuras.
O sistema jurídico se constitui, na verdade, progressivamente, pois os precedentes possibilitam a aplicação da regra de justiça, que exige que se trate da mesma maneira situações essencialmente semelhantes. É bem verdade que esta regra não é nem unívoca nem constringente, pois o juiz está autorizado a mostrar que a nova situação não é essencialmente semelhante ao precedente; mas não é suficiente apenas pretendê-lo, é preciso justificar tal ponto de vista.
É por causa do papel inegável do precedente e da regra de justiça que a jurisprudência fornece material à doutrina; esta enquadrará numa estrutura conceitual as decisões judiciárias que justificam a construções teóricas, fornecendo, por sua vez, argumentos que motivarão decisões futuras. Não se pode dar conta da vida real do direito sem reconhecer esta interação da jurisprudência e da doutrina, em que o conhecimento e a vontade colaboram intimamente para satisfazer, a um só tempo, na medida do possível, nossas necessidades de segurança e de eqüidade.
Admitindo que o juiz possui um poder de decisão, tão maior quanto mais vagos forem os termos da lei, seria normal que ele se servisse do direito considerando o que ele é realmente: um meio para a realização de certos fins políticos e sociais. Se se concede ao juiz um poder de interpretação que a Corte Suprema do país pode limitar em algumas matérias -- como em direito penal, por exemplo -- é dela, no fim das contas, da maneira como ela compreende seu papel no sistema jurídico, que depende a extensão deste poder.
É inegável que, em cento e cinqüenta anos, a concepção deste papel, na Bélgica e na França, evoluiu enormemente, e que as Cortes de Cassação tomaram com o texto do Código Napoleão liberdades inimagináveis no início do século XIX. Da mesma forma que a inaplicação constante de certos textos os faz cair em desuso, a aplicação regular de certas teorias pode modificar totalmente o sentido e a extensão de textos legais, neles introduzindo disposições estranhas à lei. É preciso negar que, nesses casos, trata-se de direito positivo ? Seria opor ao direito real e efetivamente aplicado uma concepção do direito tal qual ele deveria ser. Mas que ciências ou teorias podem prevalecer contra os fatos, mesmo se os fatos nos mostram, contrariamente à teoria, uma interação constante do normado e do normativo ?
É igualmente um fato, contrariando as teses positivistas, que nas decisões judiciárias são introduzidas noções provenientes da moral; algumas foram fundadas, no passado, no direito natural; nós as consideramos hoje, mais modestamente, como conformes aos princípios gerais do direito. A partir de alguns raros textos do código civil, interpretados ademais de encontro com seu sentido literal, o direito internacional privado construiu um edifício que se impõe à solução dos conflitos de leis, onde a noção de ordem pública internacional foi elaborada levando em conta considerações de ordem moral e política. Pode-se negar que esta noção faça parte do direito positivo, considerando-a pertinente apenas à política jurídica ?
A teoria pura do direito se encontra confrontada com dificuldades em conseqüência da oposição inegável que existe entre a idéia de um sistema de direito identificado com a soberania do Estado -- que considera uma norma estatal a lei fundamental -- e as exigências de construção de um direito público internacional -- em que a lei fundamental seria uma norma de caráter supra-estatal. As duas construções seriam igualmente arbitrárias, ou haveriam razões, decorrentes da argumentação para dar preferência a uma concepção nacional ou internacional da lei fundamental ?
Cada teórico do direito deve tomar posição a esse respeito, se não se contentar em desenvolver hipóteses sobre sistemas jurídicos possíveis, mas desejar descrever um sistema de direito tal qual ele funciona efetivamente. Se se pode, retomando uma comparação do próprio Kelsen, confrontar os dois pontos de vista opostos dos sistemas geocêntrico de Ptolomeu e heliocêntrico de Copérnico, qual o astrônomo que não fez sua opção, por razões que julgou suficientemente válidas ? E por que proibir em direito o que pareceu normal em astronomia, ainda que a ideologia se tenha imiscuído na matéria, como no caso de Galileu ?
Se uma ciência do direito pressupõe tomadas de posição, elas não serão consideradas irracionais quando podem ser justificadas de uma forma razoável, graças a uma argumentação de que se reconheça a força e a pertinência. É verdade que as conclusões de tal argumentação não são nunca evidentes, e que elas não podem, como a evidência, constranger a vontade de todo ser racional.
Elas só podem incliná-la na direção da decisão melhor justificada, aquela que se apóia na argumentação mais convincente, ainda que não se possa afirmar que ela exclui toda possibilidade de escolha. É por isso que a argumentação apela à liberdade espiritual, embora seu exercício não seja arbitrário. Graças a ela, podemos conceber um uso racional da liberdade, ideal que a razão prática se propõe em moral e em política, mas também em direito. * "O juiz que se recusar a julgar, sob o pretexto do silêncio, da obscuridade, ou da insuficiência da lei, poderá ser processado como culpado de denegação de justiça".

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Texto traduzido do original francês por Ricardo R. Almeida, no âmbito da linha de pesquisa de retórica e teoria da argumentação do PET-JUR da PUC-RJ, no segundo semestre letivo de 1993.
Publicado em PERELMAN, Chaïm. Droit, morale et philosophie, Paris, Librairie Générale de Droit et Jurisprudence, 1968. Anteriormente publicado em Law, State, and International Legal Order: Essays in Honor of Hans Kelsen, The University of Tennessee Press, Knoxville, 1964.

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