quinta-feira, abril 24, 2008

Sobre a «história» do Padre Costa

Sobre a «história» do Padre Costa
Opinião
Cristino Cortes
22/04/2008 09:04:9
O livro de que hoje vou falar faz apelo - e logo desde a capa, com a inscrição, em letra mais miúda, « o sacerdote trancosano que gerou 299 filhos em 53 mulheres » - a uma das lendas porventura mais conhecidas de Trancoso. Que ela releva do domínio da fantasia popular esclarece-nos o autor - curiosamente também de apelido Costa - em posfácio que resolveu apôr ao seu livro; mas isto depois de, com base nela, ter construído um belo, e bom, romance histórico. (Mas já lá vamos.)
Pessoalmente, a primeira vez que nele ouvi falar - e eu também sou daquelas bandas - foi quando visitava, na companhia do meu filho, as gravuras rupestres e bem pré-históricas de Foz Coa, já lá vão uns anos. Éramos nós os únicos visitantes daquela manhã e o guia, simultaneamente motorista, tinha de dizer alguma coisa. Ao passarmos perto de uma determinada casa na aldeia da Muxagata, se me não falha a memória, ele referiu-nos que aquela constava ter sido uma das casas em que o famoso Padre Costa exercera o seu «ministério».
E como, na altura, já tínhamos conversado o suficiente sobre as nossas proveniências geográficas e simpatias clubísticas atreveu-se mesmo a informar que igualmente constava que entre os descendentes do famoso sacerdote se achava o Presidente de um conhecido clube de futebol do norte do País!
Não lhe demos troco, sorrimos da informação - Ai, sim?! - e viemos à nossa vida. Não sei se antes, se depois, receberia no entanto, lá no meu serviço, cópia do suposto documento de perdão de D. João II - supostamente arrumado no maço 7 do armário 5 do Arquivo Nacional da Torre do Tombo. Mas se assim é, e enquanto o dito documento não for mesmo encontrado - o que é sempre uma hipótese, ao menos teórica - a história do Padre Costa tem muito de lenda local. No lançamento público da obra, que teve lugar no dia 1 de Outubro passado em instalações da Câmara Municipal de Trancoso e com apresentação do autor por parte do respectivo Presidente, Dr. Júlio Sarmento ( cuja cultura e preparação intelectual ali ficaram bem manifestas ), Fernando Santos Costa tudo isso explicou.
Parece haver um fundo histórico para esta tradição no caso de um pároco da freguesia de S. Pedro, Álvaro Saraiva, a quem D. João II terá efectivamente perdoado a existência de uma filha, filha igualmente de Maria Eanes, solteira. «Parece», digo eu, pois para esse caso também se não encontrou, ainda, a necessária prova documental. Mas esse seria o «modelo» do famoso Padre Costa.
Depois é bem sabido como quem conta um conto acrescenta um ponto, no caso acrescenta uma meia dúzia de filhos; e sobretudo pretendia Santos Costa - e neste ponto estou em completa discordância - que o Padre assumiria como suas as «façanhas» de muitos dos homens das redondezas.
Isso é que não, oh meus amigos. É certo que muitas das mulheres assim pelo menos adúlteras automaticamente ficariam perdoadas se se tivessem envolvido com o Padre da freguesia - e são aliás de realçar os laços de parentesco ( aqui provavelmente o exagero ), de ascendência profissional ou de interdito religioso ( afilhadas e comadres ) que uniam o Padre às suas sucessivas e decerto simultâneas companheiras de ocasião.
Mas já é altura de nos aproximarmos do âmago da «história» contada por Fernando Santos Costa. O ilustre autor imaginou bem a figura do famoso Padre. Francisco Costa teria nascido em Trancoso em 1425, reinava ainda em Portugal, embora já com a colaboração do filho, o Senhor D. João I, o de Boa Memória. Aos 27 anos tomou posse da paróquia de S. Tiago, hoje inexistente, mas que na época estendia a sua jurisdição até à actual Vila Franca das Naves. O julgamento e o perdão do rei terão ocorrido em 1487 - e a morte sobreveio-lhe em 1495, aos 70 anos, quando fugiu do convento onde cumpria a sua pena para ir avisar o soberano que lhe perdoara da conspiração que contra ele tramavam os Reis Católicos, seus ex-compadres.
Há dois capítulos, VI e VII, que têm exactamente a mesma designação: As rivalidades sacerdotais. Não é engano, não. Na Trancoso da época havia uma forte competição, no campo das conquistas femininas, entre o Abade de Sta. Maria e o Abade de S. Tiago, sendo razoável admitir que algumas delas fossem comuns a ambos os sacerdotes, porventura pouco intervaladamente . Não querendo entrar em pormenores que aqui seriam desajustados - já que o que importa é ler o livro - apenas direi que o «nosso» Abade de S. Tiago ganhou por dois a um.
Os episódios seleccionados por Santos Costa têm um grau diverso de verosimilhança. Não me parece razoável, por exemplo, que numa audiência de apelo judicial o rei D. João II comentasse a sua vida familiar com o impetrante que pela primeira e única vez via à sua frente - ou que Garcia de Resende, em idênticas circunstâncias, logo lhe começasse a cantar os seus versos.
( Compreensível, e bem achada, é, ao invés, a situação de aperto intestinal em que o Francisco Costa se encontraria. Se soltasse aqueles diabos todos é bem possível que o rei, olfactativamente ofendido, lhe mandasse cortar a cabeça. )
A trama dos últimos capítulos, com a suposta carta de um nobre de Castela, D. Alonso da Silva, irmão do Conde de Cifuentes, da maior confiança dos Reis Católicos, a provar uma conjura para eliminar o Príncipe Perfeito, e sobretudo o episódio do incêndio no palhal com a tão oportuna morte do noviço que a dita carta roubara e depois o ainda mais oportuno enforcamento da mulher que poderia saber de mais e com ele, inteiramente nua, se entregava ao «pecado da carne» - esse capítulo tem, a meu ver, muita influência de Umberto Eco e do seu Nome da Rosa.
Santos Costa construiu um Padre que, na fase final da vida, nos surpreende muito positivamente. Por um lado ter-se-á arrependido do seu passado e não terá reincidido na tarefa de aumentar ainda mais a população da Beira Alta - o que é talvez um ponto a seu favor, mas não parece muito plausível para além de ter estado na origem expressa do perdão real, que implicitamente o desculparia de alguma compreensível recaída. Depois terá adquirido uma admiração louca, e uma dedicação a toda a prova pelo rei que lhe perdoara - o que pode ser, e só lhe fica bem.
Querendo dar o ambiente da época - o que Santos Costa faz bem, é com gosto que o reconheço - o autor incorreu, a meu ver, em alguns exageros. Há ali páginas com descrições a mais, são listagens e enumerações que abonam a erudição do romancista - e não há motivos para duvidar da respectiva correcção - mas que tornam enfadonha a leitura.
A lista dos bens e rendas do Mosteiro na página 93, a descrição do conteúdo da biblioteca duas páginas adiante, ou a transcrição do retrato físico de D. João II feito por Rui de Pina na página 82, eis alguns exemplos que ilustram o meu ponto de vista. Em contrapartida talvez se justificasse incluir a tradução, em nota de pé de página, das expressões latinas, ou italianas, usadas ao longo da obra.
Há duas cenas de bruxaria, e a segunda pouco acrescenta à primeira. É certo que a ideia da muda o querer utilizar como animal de cobrição não deixa de ter a sua ironia - para quem tão poucos escrúpulos tivera nessa função ao longo da vida. Mas o ponto alto dessa preocupação de Santos Costa é a enumeração, pela boca de um médico judeu, das supostas relíquias conservadas no seio da religião católica ( de então ): a par do leite de Maria, ou do seu anel de noivado, das múltiplas cabeças de João Baptista, das unhas ou de um dente de leite de Jesus Cristo - até um peido de S. José, «produzido» enquanto rachava lenha, teria sido recolhido por um anjo numa garrafa!
E há alguns lapsos, porventura inevitáveis. No capítulo dedicado à audiência real em Setúbal o tratamento dado ao soberano oscila entre a Alteza e a Majestade - o que, se na boca de um atarantado, e aflito, Francisco Costa poderia ser compreensível, já na experiência de um cortesão refinado como Garcia de Resende se compreenderá menos. Na página 29, logo na primeira linha, onde se fala em três séculos deve entender-se apenas dois; em boa verdade nem esse lapso de tempo medeia entre os anos de 1267 ( pág. 25 ) e 1473 ( pág. 31 ). E o que serão os irmãos melícios da página 15? Serão gémeos? O sonho referido na página 139 como tendo sido contado a Frei João de Buarcos havia-o na verdade sido, nas páginas 104/105, aos frades Jorge e Pedro, mal eles saberiam o que os esperaria dentro em breve; mas isto não quer dizer, obviamente, que o bom do Padre o não houvesse também contado, mais tarde, a esse seu companheiro de eleição. Na mesma página 139 há, aliás, um outra pequena incongruência - ele dirige-se ao Frei João, mas chama-lhe, antes, Frei Diogo , talvez por ambos estarem a pensar no bibliotecário!
Nada disto, no entanto - e pouco é - , anula o agrado geral e a satisfação intelectual com que se lê esta obra de Santos Costa. O autor vem enobrecer uma longa linhagem de escritores que, com mérito, se têm dedicado à ficção sobre factos mais ou menos históricos. Pela época abordada seria fácil aproximá-lo de Fernando Campos e da sua Esmeralda Partida. ( Estou certo que ambos apreciariam a companhia um do outro. ) É um belo romance este - e dele sai um Padre Francisco Costa porventura excessivamente idealizado após a condenação mas fazendo bem jus ao seu carácter de lenda viva de Trancoso. E a própria terra do Bandarra- hoje cidade, não o esqueçamos - fica bem servida com esta obra e com este autor.
FONTE: Diário dos Açores - São Miguel,Açores,Portugal

Nenhum comentário:

Postar um comentário