domingo, abril 27, 2008

A poética de Agostinho Neto

A poética de Agostinho Neto
Hoje
somos as crianças nuas das sanzalas do mato
os garotos sem escola a jogar bola de trapos
(...)
os contratados a queimar vidas nos cafezais
os homens negros ignorantes
que devem respeitar o homem branc
oe temer o rico
somos os teus filhos
dos bairros de pretos
além aonde não chega a luz eléctrica
os homens bêbedos a cair
abandonados ao ritmo dum batuque de morte
teus filhos
com fome
com sede
com vergonha de te chamarmos Mãe
com medo de atravessar as ruas
com medo dos homens.
A descrição é, por si só, elucidativa. Numa leitura denotativa possível, emerge no leitor o cenário objectivo que põe a nu as mágoas e as necessidades de apelar à mudança, que transforma o seu sonho do eu-lírico numa esperança sagrada, no sentido de que nada a poderia inibir ou destruir senão a força da própria necessidade de liberdade que, tal como a noite é escura e, ainda assim dá lugar à luz, também a opressão poderia seguir o seu curso filosófico dando origem à liberdade do homem “em busca de vida”.
Para Agostinho Neto, só assim se poderia construir e reconstruir a “(...) bela pátria angolana/ Nossa terra, nossa mãe”, começando por destacar a riqueza cultural à económica, como elemento fulcral no alcance do sonho. E isso se vê, e se sente, nas quatro primeiras estrofes do seu poema Havemos de voltar:
Às casas, às nossas lavras
às praias, aos nossos campos
havemos de voltar
Às nossas terras
Vermelhas do café
Brancas do algodão
Verdes dos milharais
Havemos de voltar
Às nossas minas de diamantes
Ouro, cobre, de petróleo
Havemos de voltar
Aos nossos rios, nossos lagos
Às montanhas, às florestas
Havemos de voltar
Neto introduz-nos a casa como primeira proposta de alcance ao basilar, não só pelo facto de ter escrito essas linhas a partir do exílio, onde o desejo de regressar à terra pátria se torna ardente, mas porque a casa é um dos imensos sinónimos que a família possui enquanto núcleo da sociedade para os povos de origem bantu.
A referência à família afigura-se importante em Neto pois, na ordem natural, ela representa o núcleo das comunidades e sociedades africanas. E essa alegria fica demonstrada na orientação da solidariedade e de vida comunitária, extrapolando o conceito familiar composto por pai, mãe e filhos, mas alargando-o à aldeia.
Na segunda estrofe, o poeta prioriza a terra, habitat dos seus ancestrais, nos quais o poeta se inspira, pois se sonha um dia em voltar, é porque alguém terá parido o objecto de desejo do sujeito poético. Mas terra também vem simbolizar uma cultura elementar do povo, pois está relacionada à prática da agricultura, em que o café, o algodão e o milho não só personificam o labor das gentes, como também a riqueza da terra onde estão as casas, símbolo primário nos versos do poema, no qual o poeta sacraliza a ambição/esperança maior dos homens “em busca de todas as áfricas do mundo”.
E como o caminho para o factor económico se abre com a agricultura, na estrofe seguinte Neto faz referência à riqueza do subsolo, como as minas de diamantes, ouro, cobre e petróleo. Tais riquezas materiais exibem-se como mestres na manutenção dos ideais alimentados no seu sonho de pátria livre e independente. No conjunto de versos da estância seguinte, Neto leva-nos à verdadeira natureza, aos seus mananciais de energia equiparados a grandeza dos seus sonhos.
Por isso, rios, lagos, montanhas e florestas servem não só para calcular a imensidão da Angola desenhada pelo poeta mas, também, como um arco-íris que se vê e se admira, para depois repousar o olhar que se perde num belo horizonte apaixonante, que cabe num poema, e que se torna pequeno para caber no coração dos angolanos.
Vale lembrar que na diligência em nome do estabelecimento de um paralelismo entre pátria e liberdade, Ernest Renan pariu a ideia de que sem liberdade política não pode haver pátria. Por aí também se terá compenetrado Karl Marx, pois segundo este intelectual alemão, as massas populares não tinham pátria por lhes ter sido negado o controle de suas próprias colectividades.
Nisso, o eu-lírico em Neto é, no fundo, um revolucionário bastante sonhador, fantasiando a construção da pátria a partir dos “olhares longínquos/ corações medrosos/ braços fortes/ sorrisos profundos como águas profundas” dos contratados.
Em Noite, Neto revela o renovar cíclico da crença, ao comparar a vida do homem num bairro escuro à noite. Nisso, aproveita lançar o repto de que também a noite é escura, sem luz, mas que ela dá lugar ao sol que, naturalmente, traz a luz. Portanto, não estaríamos a algemar a teorização ao se pretender afirmar que há uma expressão latina que se adequa a essa visão poética da esperança em Agostinho Neto: Dum spiro, spero [Enquanto respirar, terei esperanças]. E nesse exórdio, Neto assenta o seu princípio de construção da pátria angolana, aglutinando os valores do passado e a experiência do presente para “criar amor com os olhos secos”.
Nos seus versos, há um sentimento de esperança revelador de um sentido ideológico plural que, não variando no significante, sofre mutações quanto ao seu significado.
E isso verificamos na expressão “Sou aquele por quem se espera”, numa abertura ao imenso campo interpretativo em que o sujeito poético se multiplica em “nós”, enquanto filhos duma mesma Angola, revolucionários por um mesmo ideal, causa cujo cerne está na busca da vida negada aos “homens negros ignorantes”, aos contratados e seus descendentes, condenados à nascença a aprender a esperar.
É assim que no sacro apelo à liberdade, Agostinho Neto faz emergir uma esperança simbolizada por expressões bastante sugestivas e activas como “tu me ensinaste a esperar/ como esperaste nas horas difíceis”, “mística esperança”, “partidos para uma fé que alimenta a vida” [em Adeus à hora da largada], “olhares longínquos”, “sorrisos profundos como águas profundas”, “cheios de saudades” [em Contratados], “Caminhos largos/ cheios de gente cheios de gente” [em Fogo e ritmo], “Vou pelas ruas/ às apalpadelas” [em Noite].
Tais expressões modelos ajudam-nos a perceber o sentido activo que Neto atribui à expressão esperança. Ou seja, o poeta, perante a desconstrução dos diferentes versos dos poemas seleccionados para análise, leva-nos a considerar a ideia de que a liberdade se conquista, porque “Nós vamos em busca da luz”, um desejo “Transformado em força/ inspirando as consciências desesperadas” [Aspiração]
Ainda sobre a esperança na construção duma pátria angolana, Agostinho Neto usa-a no sentido expectante, realçando o seu optimismo e confiança num futuro adequado à entoação de hinos à liberdade para aqueles que vivem “nos bairros escuros do mundo/ sem luz nem vida”, uma esperança quase divinal, que alimenta a chama guerrilheira por uma Angola livre e independente.
Portanto, não só a vida produz esperança, como a própria esperança alimenta a vida, um sentido filosófico que preenche a vida poética do autor. E é mesmo assim que o poeta constrói o sujeito poético, maltratando-o com os horrores característico do contexto histórico criticado pelo poeta, como quando se refere, em “Contratados”, sobre o dia-a-dia dos seus irmãos “Fatigados/ esgotados de trabalhos/ (...)/ Cheios de injustiças/ calados no imo das suas almas”.
Porém, também os eleva ao divinatório sentimento de fé [Havemos de voltar] no retorno a uma “Angola libertada/ Angola independente”, encontrando o apogeu desse seu desejo no regresso “À bela Pátria angolana/ Nossa terra/ nossa mãe” [Adeus à hora da largada].
E a poesia de Neto corre, livremente, nas veias da arte, seguindo o seu curso estilístico nos afluentes da vida, como liberdade e solidariedade, disposições presentes no espírito de pátria, as mesmas que presenciámos em Mussunda amigo:
Inseparáveis
E caminhando ainda para o nosso sonho
Caricatamente, tanto Agostinho Neto como Olavo Bilac e Xanana Gusmão recorrem aos mesmos elementos poéticos característicos e personificadores dos seus ambientes naturais e socioculturais para revelar o abstracto padrão definidor das suas pátrias. E neles, o singular disfarça-se de plural para construir o património comum a um determinado grupo de indivíduos confinados num mesmo território: a pátria!
FONTE: Jornal de Angola - Luanda,Luanda,Angola

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