sexta-feira, abril 18, 2008

Poesia presente: Claudia Roquette-Pinto por Heitor Ferraz


prosa.poesia
JARDIM HIPOTÉTICO
Poesia presente: Claudia Roquette-Pinto

Por Heitor Ferraz

Musicalidade, precisão vocabular e imagens da natureza marcam o trabalho da poeta carioca, autora de “Zona de Sombra”

Claudia Roquette-Pinto nasceu em agosto de 1963, no Rio de Janeiro. O sobrenome ilustre, como ela mesma explica, vem do bisavô paterno, Edgar Roquette-Pinto, que foi, “entre outras coisas, antropólogo, cientista, desbravador (em todos os sentidos), além de ser o responsável pela implantação da radiofonia no Brasil”. Num artigo sobre suas múltiplas atividades, o jornalista Ruy Castro o definiu como “homem-multidão”.

Ela cursou letras na PUC do Rio, mais especificamente tradução literária, atividade que exerce desde que se formou. Atualmente também começou a praticar tradução simultânea, mais por necessidade, ela conta, pois como se tornou uma praticante do budismo tibetano, sempre que algum lama aparece em visita, ela se torna a tradutora oficial. Durante o tempo de faculdade, criou o jornal cultural “Verve”, um empreendimento “quixotesco”, como ela define esta aventura editorial que durou cinco anos.

Em 1991, Claudia publicou seu primeiro livro de poesia. “Os dias gagos” -com orelha de Paulo Henriques Brito, que havia sido seu professor na faculdade- já apresentava uma poeta rigorosa, preocupada com a forma, com a construção precisa de metáforas e com o próprio destino da poesia brasileira. Num poema despachado, sobre o suicídio de Ana Cristina César, ela escrevia: “à sombra dos coturnos floresceram uns cogumelos/ e para ter a eternidade é só/ cair sem deixar testamento”. No final, ela arremata dizendo: “você nos desistiu/ nós não te enterraremos”.

Hoje, Claudia acha esse poema um rompante de “ruptura bastante adolescente”, como declarou em entrevista à revista “Oroboro”1. Adolescente ou não, Claudia já sabia o que queria. E procurava se afastar desse culto nacional aos mortos que não permite uma leitura mais objetiva da literatura.

Em seu livro de estréia, que ela considera imaturo, “já que na verdade é mais um apanhado do que eu sabia fazer e estava fazendo na época do que propriamente um livro com um projeto”, algumas características de sua poesia posterior já se fazem notar.

A primeira coisa que se percebe é a musicalidade. Claudia tem um ouvido fino para a cadência do poema, como já observava Paulo Henriques. Depois, a precisão vocabular na construção das metáforas. E, por fim, a presença de imagens da natureza, principalmente de flores. Muitas flores, que acabam por perpassar toda a sua obra e com forte significado.

Num poema, ela descreve todos os barulhos de um jardim (o poema se chama “no jardim”), inclusive os inaudíveis, como o momento em que o “crisântemo fulmina/ num amarelo que dói dói dói”. Parece que neste poema ela deixa uma pista sobre sua poética, ou seja, a maneira como naquele momento ela pensava a poesia: “o silêncio estrila e me espeta.// eu escuto o que tem que ser dito”.

Esta beleza que ainda surge numa profusão de poemas (com grandes lances, como em “tarde no mojave” ou “visitação da morte”) será depurada alguns anos depois no livro seguinte, “Saxífraga”, de 1993 (ed. Salamandra). Nele, as flores começam a ganhar relevo desde o título do livro. Ou melhor, já na capa, onde se pode ver um detalhe do quadro “Flower Still Life”, de 1700, pintado pela holandesa Rachel Ruysch, considerada uma das mais importantes pintoras do gênero. São flores ampliadas, e uma abelha no miolo de uma das flores.

- Não sei explicar porque minha poesia se enreda tanto com as flores. Só sei que foi assim desde sempre. Será que tem alguma relação com o fato de eu ter crescido numa casa com um jardim grande, a casa dos meus avós? Ou por que costumo passar grandes temporadas numa fazenda?

De qualquer forma, independente da resposta, Claudia prefere deixar a questão “no campo do desconhecido”. Mas reconhece que as flores brotam e rebrotam em sua poesia. E, se não for exagerar a nota, não só as flores, mas a natureza-morta é um dos seus motivos mais recorrentes.

Em belos poemas, ela faz referência a este gênero de pintura que ganhou força no século 17 e que continua sendo praticado até hoje. Claudia -seguindo a lição de Bandeira, em seu “Maçã”- descreve uma berinjela, no poema “bãdinjâna”. Depois, um tomate, em “tomatl”. Nesse jogo, ela vai aproximando os frutos ao corpo, como em “castanhas, mulheres”. Apesar de não aparecerem em seqüência dentro do livro, algumas páginas depois, ela penetra camadas de quadros de Frieda Kahlo e das flores vistosas de Georgia O’Keeffe, fazendo com que dos frutos nasça o corpo em toda plenitude.

– Neste livro –diz ela–, eu estava investigando, ou melhor, tentando acompanhar com o poema vários tipos de movimento de aproximação, desde os mais óbvios, como, por exemplo, o da abelha com a flor, o de um homem com uma mulher (de aproximar-se e ser convidado a penetrar num mundo desconhecido, e não apenas no sentido literal, genital, dessa idéia) ou o do pintor (ou da pintora), com seu tema etc.

Este jogo de aproximação representa, para ela, “o movimento do poeta (ou da poeta?), tentando chegar junto de um cerne, um sentido que é, por natureza, fugidio e, talvez, por isso mesmo, extremamente sedutor; gostaria de pensar que, como poeta, posso não precisar me perder de todo desta criança que se debruça para examinar a vida prodigiosa que palpita infinitamente dentro dos frutos, para citar Bandeira. Veja só o poema ‘tomatl’. A propósito, ‘Maçã’, de Bandeira, é um dos meus poemas favoritos (e quase foi uma das epígrafes do livro...)”.

E o poema de Bandeira, de fato, ecoa por dentro de vários poemas de Claudia...

Claro que não é só a natureza –com flores, frutos, saxi ou sexifragâncias (para lembrar um poema de Drummond – que habita esta poética. Há, neste livrinho magro, de 40 páginas, outros momentos fortes, como, por exemplo, os poemas de seção “ele:” ou um poema descritivo como “space-writing (sobre foto de man ray)”:

para escrever no espaço: o
arco do braço mais
ágil que o sobressalto
das idéias em fuga (tinem
os cascos)
o traço
que as mãos no encalço (desa
tino de asas) percursam:
circunvoluções do
improviso na moldura
findo o lapso resta
em claro (i
tinerário de medusas)
a escrita que perdura para o
espasmo o “olho armado” o
rapto
do obturador

Os poemas de Claudia nem sempre são fáceis de desvendar -mas o leitor sente, na pele, uma sedução que vem com as palavras, como a maneira como ela arma o poema. O leitor, como Man Ray escrevendo num vidro, busca as “idéias em fuga”, o “improviso na moldura”.

– Num certo sentido, a minha maneira de encarar a poesia não mudou muito, não –conta Claudia.– Acho que isso se deve a dois fatos: o primeiro deles é que escrever poesia sempre foi algo muito vital para mim, uma atividade que executo por necessidade, uma coisa quase orgânica (e a título de brincadeira, gosto de citar, a esse respeito, um comentário escatológico do Auden, que diz que os poetas gostam de seus próprios poemas, assim como as pessoas em geral costumam gostar do cheiro de seus próprios gases...). O segundo é que, no meu processo de escrita, existe um grau de indeterminação, uma certa “inconsciência”, que está sempre presente, e a qual me habituei a seguir sem questionar, mais ou menos como quando estou fazendo uma leitura de tarô para alguém. Preciso de uma completa disponibilidade interna para que a coisa se dê. E sei que, se ficar por demais atada a um “objetivo”, essa naturalidade irá se perder. Embora, é claro, que eu geralmente tenha uma “meta”, melhor dizendo, uma vaga idéia do que quero obter com aquele ato de escrita. Mas há sempre uma infinidade de fatores que se interpõem, alguns deles acidentais, mas todos sempre internos ao poema, que acabam me levando numa direção diferente, insuspeita a princípio. Em suma, para tentar responder à sua pergunta: sei que ao escrever estou tecendo uma urdidura, mas não é apenas a minha mão a fazer o trabalho.

Depois da pesquisa das coisas, dos objetos em foco, descritos com precisão e atenção, Claudia publicou um livro que parece ser daquelas obras fundamentais e de passagem, que concentram uma crise e a sua solução. Trata-se de “Zona de sombra”, que saiu em 1997, pela editora 7 Letras. É um livro em que a própria poesia parece ocupar o centro de toda atenção. É o momento de uma reflexão cerrada sobre o ato da escrita. Talvez venha daí a sua complexidade.

Diz ela que nesta época se encontrava apaixonada pela poesia de Georg Trakl, Hölderlin e Paul Celan. Apesar de tudo, os poemas não são sombrios -como o título poderia sugerir. Claudia abre com uma epígrafe de Paul Celan: “Dê também sentido ao seu dito:/ dê-lhe a sombra”. O livro então, como notou Marcelo Sandmann, no ensaio “Cepas resistentes à droga da vida”2, vai transitar entre a penumbra e a luz, entre o dito e o não-dito. Como se Claudia aceitasse a “indeterminação” do poema, como ela havia falado. Ou ainda, como ela própria escreve em “a caminho”: “meu enxame de equívocos”, lembrando aí as ambigüidades criadas pelas imagens num poema.

Um dos poemas mais lindos deste livro é, sem dúvida, “cadeira em mykonos”, com a descrição de uma cadeira pela sua própria ausência. É como ver pela sombra, como o título do livro sugere (e mesmo a obra escultórica de Cristina Rogozinski, usada como ilustração de capa, nos leva para este caminho, ao apenas esboçar as bordas de uma tigela). Vale a pena transcrevê-lo aqui:

I
nela não se auréola, nem é falsa
a idéia, que dela se alça,
como o fogo da lenha
um grego, aliás, quem a
aprisionou, como a um inseto
sobre a camurça-conceito:
na língua, terceiro objeto,
menos cadeira, se a escrevo
tampouco devo (se a quero)
nos arrabaldes das sílabas
buscar madeira de mobília
preciso (para que a tenha)
adestrar-me ao negativo,
do branco contíguo
da parede, hauri-la
como figura: literal
(modo-de-éden) nua
entre lençóis de cal
II
ícaro sem penas
noiva muda em cendais de secagem rápida
quadrúpede engendrado para solidões

Pela leitura deste poema, é possível perceber o uso denso que ela faz das metáforas, das imagens que chegam para construir uma ausência, além da precisão na escolha das palavras. Armar toda essa urdidura não é tarefa fácil –é, pelo visto, uma conquista lenta, como quem vai navegando um rio com todas as agruras do caminho, como se pode ler no poema “a caminho” (que ecoa Guimarães Rosa aqui e ali), deste mesmo livro:

estava a caminho: canoa
comprida-boa partindo
a sombra, a meio-e-meio, no rio
silêncio-cutelo e, certo,
o dia aberto seu ventre
azáfama de zangões urgentes)
cego.
– A minha sensação, ao tentar escrever um poema, é sempre a de uma “caçada”, uma aproximação. Quando a idéia do poema aparece na minha mente, procuro me pôr em total disponibilidade (infelizmente nem sempre isso é possível) e fazer o menor “ruído”, o menor movimento possível, digamos assim, para não espantar o bicho. Já usei algumas vezes a comparação com uma cena do “Mowgli”, o desenho animado do Disney, para me referir ao poema. Na cena em que o tigre é apresentado, quando ele entra na história, não é visto logo por inteiro, mas através de uma floresta de bambus. O que vemos primeiro, então, são aquelas listras amarelas e pretas se movendo, sorrateiramente, no meio do bambuzal. Só depois é que o tigre, em toda a sua plenitude, aparece. Pois escrever o poema, para mim, é exatamente isso: ver as listrar passando por entre os bambus e tentar, a partir delas, enxergar (e dar a ver) o tigre inteiro, já sabendo de antemão que o poema será tão-somente o resultado fugaz e aproximado deste relance.

“Zona de Sombra” representa a maturidade poética de Claudia. É um livro que surpreende a cada página, a cada poema. Não que os poemas sejam fáceis. A escrita de Claudia se enovela diante do leitor, provoca (“o intuito é provocar a quem está escutando”, como se pode ler em “colar”) e volta a se enredar, como ela diz em “esta” (um dos poemas mais bonitos do livro):

que ensimesma
pétala que volteia
idéia que embaraça
à pela, em novelo
segredo a desenredar
desde o centro, corpo adentro (...)
Em relação aos livros anteriores, este tematiza bastante a própria poesia –traço que já estava presente desde o primeiro livro, mas que aqui se torna uma necessidade maior, para encontrar uma poética, uma maneira de dizer a sua presença no mundo. É um momento em que a reflexão sobre a poesia se adensa e prepara para o vôo mais amplo e mais contundente de “Corola”, livro que sairá em 2000 (Ateliê Editorial).

– “Zona de Sombra” foi um livro no qual o meu desafio era falar de um processo de abordagem do mundo (no caso, a poesia), que não está, de forma alguma, dissociada da vida, mas imersa nela-, sem abrir mão de uma certa “penumbra”.

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1 - "Oroboro - Revista de poesia e arte", nº 3, março/abril/maio de 2005. Editada em Curitiba e distribuída pela Iluminuras.
2 - Idem.

FONTE (photo include): http://p.php.uol.com.br/

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