sábado, abril 26, 2008

Poemas reunidos, de Ivan Junqueira crítica de Antônio Carlos Secchin

Jornal de Poesia
Antônio Carlos Secchin
asecchin@ism.com.br
Odes à morte para consagrar a vida
Antonio Carlos Secchin
Poemas reunidos, de Ivan Junqueira.
Editora Record, 400 páginas.
R$ 27
Fragmentos, destroços, cinzas e naufrágios. É dessa matéria mutilada, perecida ou irrecuperável que se tece a poesia de Ivan Junqueira, conforme o consenso da alentada fortuna crítica que encerra o volume de seus "Poemas reunidos".
Nascendo com "Os mortos" (1964), prosperando com "A rainha arcaica" (1979) e "O grifo" (1986), e culminando em "A sagração dos ossos" (1994), os 127 poemas enfeixados nesta coletânea testemunham, de um lado, a parcimônia de uma produção regida por um rigor extremo, e, de outro, a fidelidade a formas e temas obsessivamente reelaborados ao longo de décadas dedicadas à reflexão sobre o poético a partir das mais diversas angulações: não 0 apenas a do criador, mas as do ensaísta e do tradutor.
Ao crítico atento à produção contemporânea e autor de estudos fundamentais sobre Vinícius e Dante Milano alia-se o tradutor de Baudelaire, Eliot e Dylan Thomas, e ambos, crítico e tradutor, confluem para a figura do poeta, enriquecida, portanto, pela escuta atenta de tantas dicções diferentes da sua, e apta a elaborar o próprio discurso através de um diálogo vivo com as vozes que a precederam.
Sim, porque a obra em progresso de Ivan não deixa, de certo modo, de ser uma "obra em regresso": regresso às fontes primordiais do lirismo (como a notável série de "A rainha arcaica"), de par com um inegável fascínio pelo mito no que ele possa conter de imemorialidade; abundante utilização de formas fixas (poemas em tercetos, quadras, quintilhas, em rimas soantes ou toantes) - embora, a rigor, aqui talvez não se deva falar em "regresso", uma vez que tal prática nunca foi de fato banida da produção dos mais importantes poetas brasileiros de nosso século.
Conhecer a tradição não para perpetuá-la, mas para auscultar o que nela pulsa para além de sua paralisante configuração totêmica, eis o desafio a que se lançou a poesia de Junqueira. Os contestadores dessa vertente poderiam argumentar que, com freqüência, se torna indiscernível a fronteira entre o passado como referência e o passado como reverência. Assim , o (inegável) tom "solene" de Ivan (adepto de um léxico descoloquializado) perpetuaria uma linguagem já demolida pelo modernismo de 22.
Ora, o caminho de 22 também se ritualizou e gerou jurisprudência - a tal ponto que o mimetismo de seus traços mais visíveis possibilitou o surgimento de uma legião de poetas cujo pressuposto era o desconhecimento de tudo que a precedeu, como se a ignorância do verso medido representasse algum respaldo de qualidade para o verso livre, ou como se toda a noção de moderno se esgotasse na prestação de um serviço poético obrigatório confinado às fórmulas das "antifórmulas".
Morte, amor e arte se constituem no núcleo de onde se irradia toda a perquirição existencial da obra de Ivan. Difícil divisar um poema em que, autônomos ou interligados, tais temas não compareçam. Em outro texto, tive ocasião de salientar que na poesia de Junqueira o sentimento amoroso não é trégua apaziguadora, mas território que conserva a crispação de toda a vida vizinha, com suas rações cotidianas de perda, miséria e dor; apenas em parcos momentos extáticos o amor cintila sobre a contingência humana.
À arte caberia o movimento de "salvação" do precário - ma non troppo, sem o conforto das certezas que este herdeiro (desconfiado) da vertente simbolista faz questão de pôr em xeque. A arte musical, tão celebrada em seus versos, é sinônima de delicadeza e harmonia, promessa de um mundo sem fissuras, cujo contraponto formal é o sofisticado jogo de assonâncias e demais recursos fônicos a serviço de uma sintaxe que também se desdobra em períodos complexos - num fluxo de todo oposto à noção de poesia como espasmo ou lampejo ocasional.
A diferença é que, subvertendo a ortodoxia de um certo simbolismo, em Ivan a criação não garante perpetuidade: a arte pode perecer, e restar, em seus restos, ironicamente, a matéria que ela não logrou perenizar, a exemplo da resistência, mineral e literal, dos ossos "Foram damas tais ossos, foram reis/ e príncipes e bispos e donzelas/ mas de todos a morte apenas fez/ a tábua rasa do asco e das mazelas./ E ali, na areia anônima eles moram. / Ninguém os escuta. Os ossos não choram".
Guiados pelos títulos dos livros, alguns consideram Ivan Junqueira uma espécie de "poeta da morte", numa versão atualizada do imaginário macabro de Augusto dos Anjos. Não me parece correta a aproximação. Enquanto no autor paraibano salienta-se um comprazimento com o destino irreversível da matéria orgânica, descrito em minúcias que muitas vezes se limitam às mutações físicas dos fenômenos observados, perpassa a obra de Ivan um obstinado lamento frente à finitude, e um desesperado anseio - mesmo vão - de vencê-la.
Nele, falar tanto da morte é maneira avessa de, nesse espaço fascinantemente repulsivo, prospectar o seu antídoto. Torna-se premente indagar pelo que prospera para além do corpo extinto: "escuta a voz escura das raízes/ (...) limalha/ fina do que é findo e ainda respira"; "gazela e touro, na parede impressos, / em pedra se convertem, quase eternos"; "a condição do ser é não ser término".
Na capa dos "Poemas reunidos", uma árvore ressecada se ergue contra o céu sem nuvem, em desolada e inóspita paisagem. Esse império do árido não impede que, entre ramos retorcidos, se perceba uma tênue e tenaz folhagem. Exata imagem da obra poética de Ivan Junqueira, que, sob a visível sagração da morte, deixa aflorar a consagração da vida.
ANTONIO CARLOS SECCHIN é ensaísta, poeta e professor da Faculdade de Letras da UFRJ
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