quarta-feira, abril 02, 2008

Duas epígrafes portuárias

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Grécia e Portugal
Duas epígrafes portuárias

Texto publicado em 01 de Abril de 2008 - 04h05
por Alessandro Atanes *

Vencedor de três edições do prêmio Jabuti, do prêmio da Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA) e do Portugal Telecom de Literatura, o escritor Milton Hatoum, considerado por muitos o maior romancista brasileiro da atualidade, chega com um novo livro, Órfãos do Eldorado, uma novela (em linhas gerais, uma narrativa mais curta que um romance e mais longa que um conto).

Vale lembrar que os títulos dos livros de Hatoum, com a exceção de Dois Irmãos (2000), costumam indicar um território literário: Relato de um certo Oriente (1989), Cinzas do Norte (2005) e agora Órfãos do Eldorado exploram um continente mítico por meio da ficção (apesar do nome, o mesmo ocorre em Dois irmãos).

A centralidade do território na obra de Hatoum se confirma agora na epígrafe da obra mais recente, um trecho de A cidade, de 1910, poema do autor grego Konstantinos Kaváfis. Só para lembrar, epígrafe é um texto de um autor utilizado por outro autor à frente de seu próprio texto com uma intenção de que o trecho funcione como um resumo ou indicação do que ele próprio pretende em sua obra. Vamos ao poema de Kaváfis:

Dizes: “Vou para outra terra, vou para outro mar.
Encontrarei uma cidade melhor do que esta.
Todo o meu esforço é um condenação escrita,
E meu coração, como o de um morto, está enterrado.
Até quando minha alma vai permanecer neste marasmo?
Para onde olho, qualquer lugar que meu olhar alcança,
Só vejo minha vida em negras ruínas
Onde passei tantos anos, e os destruí e desperdicei”.

Não encontrarás novas terras, nem outros mares.
A cidade irá contigo. Andarás sem rumo

Pelas mesmas ruas. Vais envelhecer no mesmo bairro,
Teu cabelo vai embranquecer nas mesmas casas.
Sempre chegarás a esta cidade. Não esperes ir a outro lugar,
Não há barco nem caminho para ti.
Como dissipaste tua vida aqui
Neste pequeno lugar, arruinaste-a na Terra inteira.


Em entrevista ao Estado de S. Paulo no dia 9, Hatoum respondeu o seguinte sobre o poema e seu uso em epígrafe à sua novela:

A idéia [da novela] veio a partir de uma história que meu avô me contou e também dos poemas do grego Konstantinos Kaváfis e do Manuel Bandeira (Pasárgada), sobre esse sonho utópico de um mundo melhor. O poema do Kaváfis me deu o mote para estruturar o livro, pois a primeira parte do poema é um eu lírico que acredita nesse sonho da existência de um lugar melhor e, na segunda, o outro eu lírico responde, dizendo que “a cidade irá atrás de ti”. Essa simetria rigorosa é que deu mais trabalho.

Outro trecho de poema de viagem, só que agora do português Fernando Pessoa, contemporâneo de Kaváfis, foi usado em epígrafe, só que neste segundo caso num livro de história, o Ventos do mar: trabalhadores do Porto, Movimento Operário e Cultura Urbana em Santos. 1889-1914, de Maria Lucia Caira Gitahy, que trata da cultura operária entre os estivadores do porto. Nota-se como o trecho de Pessoa se aproxima do de Kaváfis:

Despeço-me desta hora no corpo deste outro navio
Que vai saindo. É um tramp-steames inglês,
Muito sujo, como se fosse um navio francês,
Com um ar simpático de proletário dos mares,
E sem dúvida anunciado ontem na última página das gazetas.
(...)
Lá vai ele deixando o lugar defronte do cais onde estou.
Lá vai ele tranqüilamente, passando por onde as naus

estiveram.
Outrora, outrora...
Para Cardiff? Para Liverpool? Para Londres? Não tem

importância.
(...)
Passa, lento vapor, passa e não fiques
Passa de mim, passa de minha vista,
Vai-te de dentro de meu coração

Epílogo
Nas duas epígrafes, como em muitos poemas que circulam pelos portos e pelo porto de Santos em particular, o desejo de partir ou a nostalgia dos que ficam, a viagem como metáfora, ainda que irrealizada, da transformação. Sem contar os ecos das navegações na Odisséia ou na Ilíada da antigüidade grega ou de Os Lusíadas, de Camões, o épico dos descobrimentos. Os dois textos, usados para apresentar outros textos, funcionam como o cais de onde partem as histórias, tanto faz como a ficção de Hatoum ou a História de Gitahy.

Referências
  • Milton Hatoum. Órfãos do Eldorado. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
  • Maria Lucia Caira Gitahy. Ventos do mar: trabalhadores do Porto, Movimento Operário e Cultura Urbana em Santos. 1889-1914. São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista, 1992.
  • Ubiratan Brasil. “Memórias compõem meu chão literário”. Estado de S. Paulo. Caderno 2, p. D7, 09/03/2008.

* Alessandro Atanes é jornalista, servidor público do município de Cubatão e mestrando em História Social pela Universidade de São Paulo. Email: alessandroatanes@correios.net.br

FONTE: Portogente - Santos,SP,Brazil - http://www.portogente.com.br/

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