segunda-feira, março 24, 2008

Crítica ao cânone

Erotismo e transgressão são marcas de ´Satíricon´.
Na foto, Priapo, o deus grego da fertilidade,
ofendido pelos protagonistas (Foto: Divulgação)

LITERATURA CLÁSSICA (18/3/2008)
Crítica ao cânone

´Satíricon´ ganha nova tradução, evidenciado o experimentalismo da clássica obra de Petrônio

Paródia, crítica dos padrões sociais e narrativa fragmentada são índices da literatura moderna. Em doses e aplicações diferentes, todas se fazem presentes em romances como “Ulisses”, de James Joyce; “Almoço Nu”, de William Burroughs; e “Memórias sentimentais de João Miramar”, de Oswald de Andrade. Tivesse nascido em algum momento nos últimos 200 anos, o escritor romano Petrônio veria sua obra “Satíricon” figurar entre os picos da ebulição modernista.

No entanto, “Satíricon” foi escrito por volta de 63 d.C. Seu autor foi Tito Petrônio Árbitro, aristocrata romano e assíduo freqüentador da corte de Nero. Da obra restaram apenas fragmentos, de extrema qualidade literária, que acabam de ganhar uma nova tradução para o português, transcriação mais rigorosa e fluente do texto original que aquelas que lhe antecederam.

O trabalho é assinado por Cláudio Aquati, doutor em Letras Clássicas pela USP e professor da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (SP). A odisséia satírica de Petrônio tem ocupado Aquati desde os estudos de mestrado. “Tenho dois trabalhos de interpretação literária do ‘Satíricon’ (‘Cena Trimalchionis: Estudo e Tradução’, de 1991; e ‘O grotesco no Satíricon’, de 1997). Durante estas pesquisas, traduzi diversos trechos da obra, mas não de forma sistemática”, explica.

Criação

Como em “Odisséia”, um das principais obras literárias da Antigüidade, “Satíricon” acompanha as viagens e aventuras de seus protagonistas. As figuras centrais do romance são Encólpio, um trapaceiro, bissexual e letrado, que faz as vezes de narrador; e o adolescente Gitão, homossexual, companheiro e amante do narrador.

Os dois fogem de cidade e cidade, aplicando pequenos golpes, envolvendo-se em orgias e às voltas com sucessivos triângulos amorosos. A obra de Petrônio é uma espécie de metralhadora giratória. Como alvos estão desde os gêneros literários da época aos padrões de moralidade, passando pela vida dos novos-ricos e obras de seu tempo. Para isso, o autor se utilizou da paródia e de um sofisticado experimentalismo lingüístico - algo como empregar o latim vulgar, falado pelas camadas subalternas do Império Romano, para caracterizar alguns personagens.

“Estávamos numa época que a literatura dava uma virada e o Petrônio participa ativamente dela”, explica o tradutor. Algumas das “experimentações” de Petrônio seriam a substituição do verso dos textos clássicos pela prosa e a mistura de gêneros. “Acredito que isso pudesse fazer parte de um projeto do autor construir uma boa literatura, mesmo se utilizando de índices baixo, como o caso do latim vulgar”, detalha.

Recriação

Presume-se que a obra completa tivesse cerca de 20 livros, dos quais sobreviveram apenas três (XIV, XV e XVI), ainda assim, de forma fragmentada. Foi com esse material que Cláudio Aquati trabalhou. “Comecei a traduzir Petrônio porque, na época que fiz minhas pesquisas, não contávamos com boas traduções da obra”, releva Aquati. Segundo ele, em português, as mais confiáveis versões são da brasileira Sandra Braga Bianchet (Crisálida, 2004) e do português Delfim Ferreira Leão.

A famosa tradução do poeta curitibano Paulo Leminski (1944 - 1989) é criticada por Aquati. “Não gosto dela (a tradução). Não gosto porque não consigo ver o texto latino por traz da tradução, que é cheia de lacunas e imprecisões”, avalia. Na crítica de Aquati não é difícil identificar o procedimento de Leminski de “atualizar” obras traduzidas a partir de seus próprios códigos de criação.

É notável o empenho do tradutor desta nova edição em dar ao “Satíricon” uma versão que nem traia o texto original, nem o estilo de seu autor. “Problemas” fáceis de identificar nas versões anteriores. Surpreende a forma como Aquati contorna um dos principais obstáculos da tradução: os diferentes níveis de linguagem, procedimento experimental que Petrônio utilizou e confere a obra uma verossimilhança (realismo para alguns) rara na literatura da Antigüidade.

“Estes é um dos problemas que o Leminksi não soube resolver”, comenta. “Grosso modo, pode-se identificar dois desses níveis na passagem que se chamamos ‘O banquete do Trimalquião’. De um lado, o narrador; de outro, a linguagem de alguns personagens que utilizam o que seria o latim vulgar. Numa tradução, você deve deixar o português do narrador mais culto, porém não erudito. Nestes personagens, um português mais próximo do cotidiano”, detalha Cláudio Aquati.

Dellano Rios
Repórter
CLÁSSICO
"Satíricon"Petrônio
267 páginas
R$ 55
Cosac Naify
2008

FONTE (image include): Diário do Nordeste (Assinatura) - Fortaleza,CE,Brazil

Nenhum comentário:

Postar um comentário