6/1/2007 11:57:00
Manifesto lapônico
Por Caetano Waldrigues Galindo
Então, depois dum lom..
Güetenebroso inverno!, este espaço volta a gasalhar o que lhe soía, etc.. Ano novo, hora de botar as resoluções em dia. Aprenderei a cantar como os pastores mongóis de Tuva e manterei minha página cronopiana mais endia.
Ó, pra começar, uma declaração de princípio. Ou uma declaração de começo, pra principiar. Aqui o freguês é que manda. Interatividade!
Finalmente comprei aquele livro A casa da mãe Joana, de Reinaldo Pimenta, que tem etimologias divertidas pra eu plagiar, enricar e meter aqui. Ainda nem li dez páginas, mas já de cara discordamos. O cara em uma notinha prefacienta me diz que a finalidade do livro dele é contemplar o que ele chama de etimologia-surpresa. E me dá como exemplo de etimologia-não-surpresa (etimologia prevenida?) o fato de que ninguém quer saber que cavalo veio do latim caballus...
nnrrmm...
Pois bem.
Eis o manifesto lapônico do título. Quase toda etimologia tem surpresa, e, ou, in, teresse. Basta saber cavucar, orabolas.
Pra começar, não vou nem tentar defender a idéia de que a mera passagem de b pra v naquele ambiente intervocálico, assim como a manutenção do l, que costuma cair na Ibéria, são assuntos interessantes.. gerações de alunos de letras já deram sua contribuição no sentido de me fazer ver que essa parte só tem graça pra meia dúzia de tonhóins..
Mas, convenhamos. Vamos um pouquinho além da cara das letras, meu!
Pois que caballus não seria exatamente a tradução do português cavalo.
Como é que se diz cavalo em latim? Equus.
E isso não é surpresa?
(Tem mais: equus tem relação previsível e comprovável com o grego hippo, que nos deu coisas tipo hipódromo; na verdade as duas são a mesma palavra, vêm da mesma raiz indoeuropéia)
Pois o fato é que, chegando em terras celtas (A Gália, a Ibéria...) os romanos tomaram conhecimento de várias coisas novas (tipo calças compridas e carros com dois eixos) e pegaram dos celtas os nomes dessas coisas, junto com elas.
Peraí, eles além de andar de saia não conheciam cavalos?
Nê...
O negócio é que eles resolveram diferenciar seus garbosos equi militares daqueles pangarés gordos e peludos que os celtas usavam pra trabalhar em plantações, e reservaram para estúltimos o nome celta que eles já carregavam, devidamente alatinado em caballi.
O latim clássico não comia mosca, meu velho. Ele andava e se modificava.
E assim eles passaram a ter duas palavras pra cavalo.
Aparentemente a distinção original era mais ou menos igual à que hoje a gente faz entre touro e boi. O caballus era o equus sem as partes pudendae..
O fato, no entanto, de que o português, o espanhol, o francês, o italiano e até o romeno (cal) derivaram seu nome atual do bicho da versão pangarèzica é, na minha modesta, deveras interessante..
É uma das mais claras demonstrações da necessidade de se estabelecer um retrato daquilo que a lingüística classicamente chamou de latim vulgar: o latim falado pelas classes populares, que efetivamente colonizaram e aculturaram a Europa inteira, enquanto os generais praticavam esportes eqüestres.
Meu, o fulano que realmente deixou filhos, deixou língua e tradições em Lisboa e em Bucareste nunca teve equi, teve no máximo um caballinus que lhe custou os oculi da cara.
O Pimenta, que não é tonto, não deixa de anunciar que, no entanto, (não é tonto, no entanto..) a nossa palavra égua vem do feminino clássico de equus.
Mas ele nem se pergunta por quê..?
Ora, se a distinção entre equus e caballus era baseada na castração, ela possivelmente nunca se aplicou às fêmeas. Por mais que certamente textos vulgares tenham registrado a forma caballa, a gente pode presumir que a fêmea continuou sendo sempre chamada de equa, mesmo em contextos menos elevados.
Porisso.
Mas tem mais..
Porque o português acabou aproveitando a lacuna do sisteminha e usando o feminino de cavalo pra dar nome a um peixe! (o que nos faz pensar que aquele “o português” do começo da sentença seja de fato um indivíduo: chamemo-lo Eufrásio).
Segundo o velho Antenor Nascentes, o peixe virou cavala em função de seus saltos. Mas o que nos interessa aqui é que essa possibilidade começou a surgir quando os romanos toparam com os pangarés dos celtas!
Tá bom de surpresa procês?
Sério, sem sacanagem, o nosso formato aqui é diferente, e o nosso público também. Eu posso (acho que posso) me dar o luxo de escrever uma página inteira sobre essas coisas e o Pimenta queria mais era um dicionarizinho de curiosidades. Explica-se. E ele fez bem bem o lá dele.
E, afinal, ele é que vendeu milhardares de livros, não eu.
Mas..
Pra gente entrar meio que na linha dele, pra dar água na boca pro resto do ano, fiquem aí com duas surpresinhas:
Que sabotagem provém do francês sabot, que significa tamanco... provavelmente em referência ao alarido feito com os tamancões de madeira dos camponeses quando de algum protesto..!
E que porcelana vem do latim porcus. Isso mesmo. O nosso porco..
Por qual caminho é que são elas.
Que tem que ver com um molusco marinho, o cauri, cuja lustrosa concha nacarada (nunca pensei que fosse escrever cuja lustrosa concha nacarada) veio à mente de quem viu os primeiros vasos de porcelana todo mundo sabe. Que esse molusco era chamado de porcellana (porquinha) todo mundo sabe. Agora por que que era...
Os dicionários mais pudicos vão te dizer que a concha do molusco lembrava o contorno das costas dos porcos. Outros vão garantir, e parecem estar mais próximos da verdade, que o fato é que o formato interno da concha evocava era a vulva das porcas!
A pergunta que não quer calar... quem seria esse singular indivíduo que reunia conhecimentos e interesses por de cerâmica vitrificada, malacologia e xereca de porca?
A mulher dele está em segurança?
Té pra mais...
Caetano Waldrigues Galindo é professor de lingüística histórica na Universidade Federal do Paraná. Já publicou traduções do romeno (Lucian Blaga) e do inglês (Djuna Barnes e Charles Darwin. No prelo: Saul Bellow e John Gay). É o pierremenárdico autor de uma tradução inédita do Ulysses, de James Joyce. Contato: olapaonahileia@hotmail.comFonte: cronopios@cronopios.com.br - http://www.cronopios.com.br/
Nenhum comentário:
Postar um comentário