quarta-feira, janeiro 03, 2007

A extirpação de um cancro por Urda Alice Klueger


11/12/2006 17:16:00
A extirpação de um cancro
Por Urda Alice Klueger

Uma vez eu já senti uma sensação assim como esta que o meu planeta deve estar sentindo hoje. Há que se voltar no tempo, no espaço e aos dias precedentes à sensação que senti, para que possa me fazer entender.
Eu era jovem, bonita, tinha 52 kg e um fusca movido à álcool, última novidade em carro por cá nestas terras de Santa Cruz (apesar de depois terem dado a maior rasteira em Bautista Vidal, o mentor intelectual da Proálcool, como convinha ao Capital por aqui instalado), e com meu fusca andava por todos os lados. Na ocasião em que vou falar, especificamente, estava em Foz do Iguaçu, passando uns poucos dias de férias, mas férias mesmo, que nunca tive dinheiro para ir até lá buscar muamba.
Então estava em Foz do Iguaçu, num lindo hotel na Estrada das Cataratas, todo cheio de jardins paradisíacos e com uma piscina paradisíaca também, garçons gentis, boa comida, turistas de diversas partes do mundo, quiçá alguns contrabandistas, e a possibilidade de fazer as três refeições do dia cada uma num país diferente. A amizade já rolara entre o pessoal que freqüentava a piscina, e na sexta-feira ficou combinado que todos iríamos juntos, no sábado, a uma nova danceteria recém-inaugurada e que já se tornara famosa pela beleza e elegância.
Portanto, sábado deveria ter sido como um portal de uma noite maravilhosa, mas não foi. Alguma coisa estava errada comigo, alguma coisa indefinida fazia sentir-me um pouco mal, e conforme a tarde se adiantava, aquela coisa ia me tirando a vontade de ir para a danceteria, e fui dormir enquanto os amigos da piscina botavam suas roupas caprichadas para brilhar na pista de dança.
Aquela noite, no linguajar da minha mãe, e que cada vez mais vejo nas linhas de Saramago, foi uma noite “encalada”, em que nada estava muito bom e nem dava para dormir muito direito. Quando o domingo amanheceu eu tinha piorado um bocado, mas ainda dava para pensar coisas assim: “Se eu der uma boa nadada na piscina, melhoro!”. Então entrei na piscina para dobrar-me de dor, uma tão aguda dor que não sei como não desmaiei e me afoguei, ali naquela hora matinal, onde os outros hóspedes ainda estavam dormindo, se refazendo da noite na balada famosa. Consegui sair da água e ir para a cama, sempre com aquela esperança: “Se dormir um soninho, vai melhorar!”.
Melhorou nada. A noite de domingo foi um pesadelo, e na segunda pela manhã, já sem conseguir ficar de pé direito, encurvada de dor, dirigi meu fusca até o hospital mais próximo, e num instantinho tinha um diagnóstico: estava com uma infecção numa coisa que todo o mundo tem, mas que a gente só fica sabendo quando inflama: um tal de apêndice, que se situa do lado direito, um pouco abaixo da cintura. O jovem médico que me atendeu disse que ia mandar fazer um exame de sangue só para confirmar seu diagnóstico – e enquanto isso eu estava já tomando um sorinho intravenoso misturado com remédio para dor, e o mundo parecia ter ficado melhor. Já tinha ouvido muitas pessoas falarem que tinham operado o tal de apêndice, e comecei a fazer planos: se o diagnóstico se confirmasse, decerto o médico iria me mandar para casa para ser operada na minha cidade, e então, naquela tarde, aproveitaria para dar um pulo à Argentina, para tomar a boa cerveja que lá se faz...
Voltou o médico, e era aquele mesmo o diagnóstico. Só que não havia mais como ir nem tomar a cerveja argentina, a 10 km dali – eu tinha 15 MINUTOS para telefonar para casa e avisar, pois em seguida seria irremediavelmente operada. Adeus, cerveja argentina! Gastei os 15 minutos refletindo o que fazer, e achei que era melhor que a minha família não soubesse: se eu ficasse melhor, depois contaria – achei por bem dar meu endereço para a enfermeira, para o caso de terem que enviar meu corpo para algum lugar. E tinha acabado o tempo antes da anestesia.
Na verdade, eu ficara fazendo aquelas conjecturas, imaginando cervejas argentinas etc., por conta do soro com analgésico – no fundo, continuava um bocado mal, indisposta, de mal com a vida. A anestesia foi bem-vinda, pelo menos tirou-me daquela agonia de viver mal.
Não sei quanto tempo passou, mas lá pelas tantas uma enfermeira me dava tapinhas no rosto e perguntava:
- E então? Tudo bem?
Foi só então que eu entendi que tudo já tinha passado, e que era trazida de volta do mergulho na inconsciência por aquela moça simpática. Mas o melhor de tudo mesmo, era a sensação de bem-estar, bem-aventurança, bem tudo no mundo – fora-se embora a sensação de doença, de mal-estar, de agonia. Havia dor, claro, principalmente quando me mexia, pois estava com um talho todo cheio de pontos na barriga, mas a dor daquele talho era o que se pode chamar de “dor boa”, se é que alguma dor pode ser boa, talvez como sejam as dores de amor. A “dor má” se fora, como se um cancro tivesse sido extirpado.
Foi bem assim que me senti de novo hoje, quando soube que Pinochet morreu. Tenho a sensação que o planeta inteiro está se sentindo assim, depois da maldade daquela dor toda que ele provocou por tanto tempo. Ufa! É um grande alívio saber que a Humanidade está livre para sempre daquele traste!


Urda Alice Klueger nasceu em Blumenau/SC e publicou vários livros. É historiadora e membro da Academia Catarinense de Letras e do Instituto Histórico e Geográfico de Santa Catarina. E-mail: urda@flynet.com.br

Fonte: cronopios@cronopios.com.br - http://www.cronopios.com.br/

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