terça-feira, dezembro 26, 2006

Um viveiro de narcisos bélicos ou a humildade ainda é necessária por Chico Lopes


17/12/2006 15:49:00
Um viveiro de narcisos bélicos ou a humildade ainda é necessária
Por Chico Lopes

Vaidade, miséria e vassalagem caracterizam o nosso mundo literário, quando o despimos de nossas euforias e pretensões e tentamos vê-lo com mais clareza.
Volta e meia essa conclusão me assalta, e, para não cair na melancolia e na impotência diante de coisas que sei irremediáveis, fecho os olhos, procuro ser complacente, sou corporativista como todos devem ser, mas, depois, remoendo pensamentos em meu travesseiro, o que me assalta está mais para a resignação triste que para o consolo: há pouco ou nada a fazer. “Comicidade e miséria”, como resumia Thomas Mann no seu “Tônio Kroeger”, disso é feito o nosso panorama. Ele se referia, claro, à condição humana, mas também à solidão e às desilusões de Kroeger, que, aliás, era escritor.

Eu já suspeitava disso há muitos anos, muito antes de estrear com um livro de contos em 2000. Hoje, com dois livros publicados, sei em carne viva que é impossível crer em grandeza humana, e nem na querida tribo em que estou inserido. Talvez sejamos as criaturas mais excêntricas e solitárias deste mundo, num momento em que a cultura brasileira se afunda – e não parece dar sinais de que voltará à tona – em televisão, televisão e mais televisão.

Com a televisão, é assim, reclamações generalizadas, mas, quem pode, tira suas lasquinhas como proveitos estritamente pessoais. Não haveria nada de errado nisso se a televisão retribuísse, prestando uma atenção decente aos escritores. Mas, não: o que se vê, de raro em raro, em algum programa com ligeira pretensão cultural, a presença de algum famoso que está vendendo seu peixe – em geral, com uma bela capa e com um preço que o torna proibitivo ao brasileiro das ruas. Não é natural que escritores sempre pareçam criaturas antipáticas ao homem comum?

A televisão, senhora feudal da alma popular, é arrogante com escritores: trata-os com o desdém de quem pode, do alto de sua ignorância bem sucedida, atirar migalhas a esses chatos “intelectuais” (porque é assim que, na verdade, ela nos vê) que emprestam algum verniz a algum programa aqui e ali. A televisão não produz nada que se pareça com escritores, embora alguns intelectuais cheguem ao cúmulo de achar que os autores de novela possam ser isso (mas, autor de novela é um só: o Ibope, ou os patrocinadores). Os fazedores de telenovelas, que de vez em quando bradam argumentos de dignidade estética, com aquela velha história de que estariam fazendo folhetins populares à Balzac, estão é enganando mal, só isso – não revelam nunca que o que os entusiasma de fato é o dinheiro que estão recebendo. Mas, ninguém duvida disso.

Há escritores que passam a vida inteira sonhando com ser acolhidos pela tevê, para finalmente alcançar o sucesso popular. E por isso babam de servilismo e vassalagem diante da maquininha, felizes por algum reconhecimento espúrio. Disfarçam mal seu entusiasmo pelas migalhas que recebem. A vaidade os torna assim, patéticos. Renunciam a dizer a verdade porque sua vaidade – sim, ela, sempre ela – foi afagada.


SEM APETITE PELA GRANDEZA

Há um problema no ar: pouco apetite pela coragem, pela grandeza, pela atitude. Justamente por vivermos todos massacrados com nossas pequenas edições limitadas, nossas necessidades de divulgação, nossa tentativa de sobreviver de coisas outras que não livros (que ninguém é doido), nos calamos também sobre a baixa qualidade de tantos de nossos novos “confrades”, porque estamos debaixo de uma afetação democrática hipócrita, já que por baixo dela o que há é mesmo o velho brado darwiniano: “Vire-se, negão. Sucesso é loteria...” Solidariedade superficial há de sobra. No fundo, reina o mais escuro e denso individualismo, chegando a delírios de perversidade e trança-pé.

E há gente demais escrevendo e publicando. A heterogeneidade aturde, impede que façamos juízos sensatos. Quem é que raciocina em meio a avalanches? Cada um corre para seu lado, e, no nosso caso, carregando nossos livros, destinados a tão poucos leitores, como relíquias de sobreviventes. A mentalidade de catástrofe e massificação leva a essa sensação de que sucesso não é mais questão de mérito, mas de loteria, de quem será o sortudo a despertar a atenção das emissoras de tevê ou das grandes editoras com contratos gordos. Só se ouve falar de qualidade literária em grupos muito restritos, de gente que baixou a cabeça e se resignou a produzir em silêncio, para grupos identicamente pequenos, alguma coisa mais cuidada. Na verdade, são, esses grupos, estejam na Internet, estejam em suplementos literários, a única esperança, o único sopro de integridade do setor.
Com o mercado e a televisão, não adianta querer um pouco de dignidade, bom senso e superioridade estética. Como o tom reinante é o da vaidade, qualquer crítica é tomada como ataque pessoal de um narcisista a outro narcisista e, um jurando que o outro é que é narcisista, como se os dois (e o resto) não fossem, ficam ali, se engalfinhando, nessas briguinhas infernais (pela esterilidade, acima de tudo) que são tão comuns no meio. Nesses momentos é que se vê, como disse um escritor meu amigo, que, no ser humano, duas coisas são especialmente horríveis: certas partes pudendas e a vaidade exposta. Ninguém se beneficia disso. O espetáculo é tão deprimente quanto o daquelas brigas de políticos no Congresso que tanto amamos deplorar.

Somos pequenos, minoritários, isolados, ignorados por uma sociedade inculta que até hoje só consome mesmo é o Alencar ou o Amado fáceis que alguma novela lhe dá em bocados demagógicos, adaptados à digestão de senhores gordos e senhoras preconceituosas que querem chorar e sentirem-se sublimes por isso.

A vida literária é um clube privê, um cubículo. Justamente por sermos um cubículo, por morarmos no exíguo e por sermos tão pavões, é que os choques são inevitáveis – as caudas, ao se abrirem, se chocam umas com as outras, e a birra das aves melindradas não tem fim.

Seria necessário que tivéssemos mais generosidade. Que fôssemos mais ambiciosos em múltiplos sentidos, que pensássemos sim que a qualidade estética pode sim andar junto com certa moralidade dura, exigente. Esta é uma lamentação claramente antipática, e sei que irritará a muita gente, porque nos afundamos demais, sem retorno, em muitos casos. Sei que estou sonhando de novo, tal como sonhava naqueles tempos românticos em que acreditava numa espécie de nobreza inata na tribo dos escritores. Eu pensava, é claro, em Kafkas, Dostoiévkis, Prousts, sujeitos para os quais nada era maior que escrever. E cujos interesses estéticos confluíam com seus interesses e tormentos humanos.

Duvido que a ambição desses homens fosse apenas estética, que nada tivesse de moral – que eles não quisessem ser, além de grandes escritores, seres humanos melhores. O grande literato sempre esteve envolvido com alguma espécie de purgação ou ascese, ainda que sob a estrita bandeira da estética literária. E a humildade continua sendo uma bela virtude, um belo ideal, embora ninguém mais acredite nela num mundo de Narcisos bélicos. Hoje em dia, um orgulho prematuro, um vedetismo infantil e precipitado, corrói os “gênios” e os destina rapidamente à vala comum da mediocridade.

Um amigo (o mesmo que falou das pudendas) já definiu minhas queixas como frutos discutíveis de um romantismo meio deslocado. Talvez ele esteja certo. Mas, em quem não restou nem um pouco desse “romantismo deslocado”, e que esteja fazendo sucesso de acordo com uma fórmula que adotou de fora de si, por imposição do mercado ou pelo demasiado humano desejo de ser um sucesso, suspeito que exista um pragmatismo cada vez mais perverso e infeliz.

Porque um dos efeitos desse mercado onde reina a expectativa tirânica do lucro, do sucesso – e este faz vista grossa para qualquer rigor moral – é proibir o bem-sucedido de ser autêntico. Tendo feito sucesso, ele deve achar que está no melhor dos mundos, compactuar, não dizer inconveniências, não ferir interesses. É democracia só em aparência, porque o mercado, com toda a liberalidade, condena a serem invisíveis todos que discordam dele. E condena a ficar paquidérmicos e conformistas todos que com ele concordam. Exemplos não faltam.


Chico Lopes é escritor (“Nó de sombras” e “Dobras da noite”, contos, IMS-SP, 2000 e 2004) e crítico de cinema do Instituto Moreira Salles de Poços de Caldas, MG. E-mail: franlopes54@terra.com.br

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