terça-feira, dezembro 26, 2006

João Tala entre o tambor e o grito por Abreu Paxe


Uma vez assumida a responsabilidade de apresentar o livro de João Tala, cujo título é: ¨A vitória é uma ilusão de filósofos e loucos¨, cumpre-nos fazer a apresentação do autor, falarmos da obra e de alguns aspectos periféricos, necessários para a nossa actualidade literária.

O acto que aqui decorre devolve-nos aquilo que provavelmente seja uma das linhas mais importantes da existência: O sentido da poesia que nos ensina que o ser humano sempre bifurca, não ancora num só ângulo, o sentido da poesia que nos ensina que a poesia reunida neste livro apresenta-se descompassada em relação a que consta de seus títulos anteriores. Estes são poemas bem conseguidos embora tendam para o discursivismo, o que não quer dizer que, por isso, sejam melhores ou piores. Digo isto, embatendo contra as teorias crescentes que “legislam, decretam padrões ou normas” para o material literário produzido, quando estes escapam dos seus faróis de polícias literários.

João Tala nasceu em Malanje, a 19 de Dezembro de 1959. Iniciou-se na escrita no limiar da década de 80, quando residia no Huambo, onde cumpria o serviço militar. Nesta época, funda a Brigada Jovem de Literatura Alda Lara ingressa na Faculdade de Medicina.

Já como médico, exerceu funções na Lunda Norte e, Posteriormente, em Luanda. Poeta com quatro títulos, tem publicado “A Forma dos Desejos” (1997) Prémio primeiro livro/97 da União dos Escritores Angolanos, “O Gasto da Semente” que foi Menção Honrosa do prémio literário Sagrada Esperança, edição do ano 2000, “A Forma dos Desejos II”, 2003 e “Os Dias e Os Tumultos” vencedor do Grande Prémio de Ficção da União dos Escritores Angolanos. Neste momento, está a cursar medicina interna no Brasil.

O livro que vamos passar a apresentar está composto por três cadernos que funcionam perfeitamente como vasos comunicantes, embora o autor tenha a intenção de os tematizar, de os compartimentar, talvez ignorando seu profundo diálogo. Passamos, como os ordenou, a apresentá-los:
No primeiro caderno, o poeta munido com um “tambor” e o seu “grito”, aliás termos recorrentes em quase todo seu poemário, devolve-nos os lugares todos perpassados pelas mais diversas e recentes referências histórico-culturais ‘onde a própria terra me busca e/não encontra senão o homem dividido’ (p.12), fazendo-nos chegar mais perto de nós mesmos ‘sendo também a dor palavra humana/palavra flagelada em Angola...’(p.12), sem termos como evitar essa natureza ‘com o meu próprio país a arder/na minha boca’ (p. 22), porque ela nos interroga da razão de quase 27 anos de guerra civil ‘ainda tenho de explicar/um homem sem nada/um país em chamas nos meus/nervos. E meus dias novos (...) que os tambores deflagram’ (p.23), verifica-se a clara denúncia de todos os problemas a ela inerentes ‘... Pagavam-nos para sofrer. (...)
É também por isso que se fez carnal a/bandeira dos suados’ (p.13), e isto, ainda acontece mesmo tendo já no passado vivido numa longa noite colonial que foi para nós um verdadeiro pesadelo. “O caminho finda onde o explico. /não se aguardam os caminhos por isso não se explicam./os caminhos fogem dos meus pés/e vão por aí se explicando - vão e vêm/algumas vezes são começos outras vezes o fim do mundo;//só os meus pensamentos me levam longe/distantes do abismo em mim reunidos./onde começará o fim?// Onde não me explico!/terminais os caminhos também são abismos;/haverá lugares maiores do que abismos/haverá minutos contados a cada passo;/haverá uma explicação para que eu chegue ao fim/ardendo de começos embora longe, muito longe./longe e suado. tão fim de tudo. Muito longe.”(p.14).
Por isso, achamos que é preciso buscar um lugar naquilo que possa vir a ser o nosso fundamento no desenvolvimento sócio-histórico, ‘está escuro. eu próprio repito estrelas erradas/mas a minha vida é um tambor./escuro parti para voltar cego./e ninguém me completa./apenas o caminho com a tua mão encontrada/no meio dos escombros (...) da minha velha experiência de remorsos/mando escrever tuas ideias inabaláveis/batendo em tambores como um burocrata/fora do caminho. o ritmo dos teus passos/enchendo a mão direita do pensador.’(p.15), ainda que provisório ‘e das vértebras às frases/recompões os caminhos andados’ (p.31), este que é o nosso modo específico de lidar com o mundo aquilo que desconhecemos. Vinham, para este caso, a propósito as comemorações neste ano dos 30 de independência, entre os quais 3 de paz, ‘cantamos a urgência dos lugares (...) edificaram-nos também os passos/com as botas sobre a aldeia./Agora um país tem as têmporas a arder / de nossos medos/ mas é apenas a memória dos tumultos (p.27), ‘... Cantamos o esquecimento [construindo]/a história’ (p.16), ‘cheguei (...) carrego orvalhos/onde findaram as explosões’(p.20). É o que se pode aguardar de um país que renasce.

No segundo caderno, Tala dissolve as relações historicamente estabelecidas em torno do Amor ‘nunca estive mal cantando tuas coisas (...) na verdade são tuas coisas profundas (...) faço onda profunda com a carícia dos nomes’(p.40), ‘o húmus está vivo; o suor nem seca’(p.42). Nas quais ele ‘comia em seu próprio texto a ternura.’(p.46) promovendo uma desorganização dessas relações através duma ousada desorientação das palavras tornando-as em verdadeira fonte endemoninhada ‘... o fundo da época.maçãs pecaminosas (...) quem desarruma o meu ritmo em teu corpo? Quem dessa revolução (...) retira da palavra estética o amor evoluído? Quem?’(p.51), ‘Dos medos desliza a serpente nativa (...) e o seu rasto cega-nos’(p.41), clarificando seu atrito com o mundo codificado ‘... arde e torna-se vivo; (...) lume do seu corpo suado (...) arde de febre (...) vejo o seu corpo renovado’(p.49), num intertexto acusando a desprogramação da Bíblia ‘ O paraíso era apenas uma ideia (...) Por agora busque-me, contigo moverei/a serpente nativa.’(p.41). Neste caderno o corpo é o lugar de encontro ‘...ramifico o meu corpo; (...) um útero enorme, uma cratera no fim do dia, /sente-me, abraça-me;’(p.42), o ponto de convergência do seu amor ‘... os frutos prestes a encher a terra’(p.50), dos seus medos ‘Não é difícil arrumar um poema/que te leve aos poucos para a enorme noite’(p.50), das suas paixões ‘tardes tropicais iguais à sobrevivência’(p.50); o lugar dos acontecimentos sagrados, assumindo as relações possíveis entre o corpo e a sua natureza apartada, representada pela fauna e flora ‘... a vida expande-se como/folhas flores frutos’(p.43). sem perder, de forma alguma, o sentido de beleza, denuncia a atitude de um ser faminto à procura de caça ou colheita ligada à terra ‘porque tudo envelheceu/Envelheceram as mãos injustiçadas e/a forma das paixões’(p.40).

No terceiro caderno, o poeta aduz na hiperonímia do seu tambor e do seu grito a sua condição de africano, ‘mas na negação da negação/o velho cede ao novo o espaço gasto/de palavras europeias/ com que um homem desenraizado/nomeia a morte de África.’ (p.57), que é de natureza complexa para os dias que correm, é certo, mas é a única que temos e com a qual precisamos conviver ‘... é um parto de tardes muito claras/mas em noite por dentro que resumem/nossos gritos’(p.58), condição antípoda da vontade dos civilizadores do ocidente de querer domá-la. A África ‘Na urgência do voo ...’(p.59), deve ser compreendida porque esse é o nosso próprio fundamento, assim a história ‘...como um pássaro que se move/quando o tempo parte do fim.’o prova no espelho que nos atravessa e faz transbordar essa autêntica e perturbante imagem ‘onde a palavra regista a morte’(p.57); imagem que infelizmente ainda nos acompanha.

Postos aqui, estará tudo compreendido ao analisarmos a dupla dimensão de João Tala: a de um ser social e a de um criador? penso que se compreende mal isso. Uma vez que escrever – não passivamente, descrever – de maneira precisa é um lugar que sequer se conhece totalmente, que não se consegue divisar claramente. Ao transitar da primeira condição (imitar) e tornar-se poeta que o levou para a segunda condição (criar), mergulhou no mundo das ideias. E João Tala artisticamente está nesta condição. Livre para projectar o mundo a sua medida. porquê então se impõe limites para o génio criador? uma vez que esse tem segurança em si, confia nas suas capacidades de criação e de invenção?

O que se pensa indizível na poesia - de uma maneira geral, o que se tem tornado moda entre nós – não se trata, como aquilo que não se pode dizer, mas como aquilo que se diz internamente, ou seja, dir-se-ia que suas imagens sempre avançam para um mais além das palavras, como que a denunciar a ânsia do poeta em função da vontade de aprender. Toda a arte exige uma aprendizagem séria e constante, inclusive de sua história e suas técnicas, já que o mundo das ideias é um mundo permanentemente desconhecido. Nós defendemos estes princípios, embora se constitua num embate frontal com uma autoproclamada, entre nós, super estrutura estético-literário que tudo quer silenciar, forçando a absurda extinção da faculdade de imaginar que, em essência, move a história humana, por ser inerente ao homem por ser a força que o anima, com expressões como: ‘dei porrada ao fulano’, ‘desmontei o livro do sicrano’, ‘tenha cuidado com o teu próximo livro que já dei porrada neste’ e outros impropérios que nutrem suas fraquezas, para uma correcta leitura dos produtos emergentes.

É preciso ter-se em conta, sabe-se de certeza, que o nosso país só existe há 30 anos, mas no espaço onde ele foi erguido já se produzia literatura escrita num período que dura, até à actualidade, por aí 156 anos, repartido em dois períodos: o colonial e o pós-colonial. Tendo estes, produtos literários adquirido características diferentes, por força dos sinais dos tempos. E não, com é perfeitamente verificável, se perdeu o sentido de poesia ou literatura ao longo destes tempos.

É preciso ter-se também em conta que a significativa maioria da população do nosso país é jovem, facto que torna numa verdadeira ameaça, o nosso desenvolvimento, se não se levar em conta com a seriedade necessária ‘o universo das letras como fundamento da evolução sócio-histórica’(Petelo) e da visão estética e ética da vida e do mundo. Deve-se estimular nos jovens a liberdade de pesquisa e de experimentação estética, a da busca de nova metáfora e da criação de novas linguagens - do que ter como muletas a uniformidade a funcionar como forma de bloco ou tijolo que é fixa e sem possibilidade nenhuma de a alterar mesmo que sejam produzidos aos milhares e as que saírem diferentes serem defeitos -, e é evidente que podemos compreender e admirar, da mesma forma, a grandeza de estilos que já passaram.

Esta, pensamos, seria a função de um crítico, na verdadeira acepção da palavra, capaz de orientar os jovens ávidos do saber. Discordando, com os arremedos textuais publicados em alguns jornais e seus autores fazerem fé destes serem textos críticos. A actividade crítica-pensamos ainda-, como é essencialmente de investigação e suportada por princípios teóricos, não deve estar, seguramente, dissociada da actividade académica, seja em que nível for.

Não cremos que se esteja a perder o sentido da poesia, pois ela sofre mudanças, concordando plenamente com Jorge Macedo, e assim ela deve ser entendida. As leituras que fazemos desse livro, obviamente não nasce das interesseiras relações literárias, mas sim de relações poéticas - no sentido nobre -, atravessadas inevitavelmente por inquietações humanas, sem de forma alguma alimentar o facilitário ou o puramente discursivo, quando se diz que, o que os novos poetas escrevem não se entende. Ou tencionar fomentar grupismos, bairrismos, cumplicidades, ou exclusões alheias ao fim que a arte de fazer poesia deve defender.

Para terminar reiteramos o que já dizíamos, em outra ocasião, a propósito da poesia, que só olhando ao lado, ao longe, nos cantos, dentro, no meio, na fresta, vemos que há poesia que explica outra coisa quando nossos olhos abrem o chão. No fundo de tudo é possível encontrar um sentido de beleza, um sentido de existir, uma verdade, a inquietante verdade do outro.




O presente texto foi originalmente publicado no Suplemento Vida Cultural do Jornal de Angola.

Abreu Paxe nasceu em 1969 no vale do Loge, município do Bembe. Licenciou-se no Instituto Superior de Ciências da Educação (ISCED), em Luanda, na especialidade de Língua Portuguesa. É docente de Literatura Angolana nesta mesma instituição e membro da União dos Escritores Angolanos (UEA), onde é secretário para as atividades culturais. Publicou A chave no repouso da porta (2003), obra vencedora do Prêmio Literário António Jacinto. No Brasil, foi publicado nas revistas Dimensão (MG), Et Cetera (PR), Comunità Italiana (RJ), nas eletrônicas Zunai e Cronópios, e em Portugal, na antologia Os Rumos do Vento, (Câmara Municipal de Fundão). E-mail: pjairo8@hotmail.com

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