Por Miriam Bittencourt
A militância política feminista marcou desde início da década de sessenta a carreira da poetisa portuguesa Maria Teresa Horta. Empenhada na luta feminista, sempre fez da palavra uma maneira de enfrentar a opressão social/sexual e buscar liberdade de expressão. Na leitura do conjunto da obra é perceptível a marca de duas vertentes que se cruzam e dialogam: o erotismos e o engajamento político.
Na década de sessenta ocorre a publicação do primeiro livro de poesia Espelho inicial (1960), seguido por Tatuagem e Cidades submersas (1961). Nesses livros há uma surpreendente ruptura radical da linguagem poética, visto que Horta já se fazia membro atuante dos mais sugestivos Movimentos de Vanguarda que começavam a agitar os meios intelectuais e acadêmicos portugueses (Poesia 61 e Poesia Experimental). A ruptura com a discursividade da linguagem, como um dos aspectos mais significativos na proposta das vanguardas, faz da poesia um jogo de imagens caóticas feitas de metáforas e sinestesias:
Só
Só de solidão
Nos olhos
E um mundo de silêncio
Entre os braços
No mar os pescadores
Sem barcos
As searas nas lágrimas
-as algas
E a louca vontade
De poder dormir
Mar
Amar
Mercadores de pérolas
Sem lágrimas
E uma hidra
Pescadores
De dor
... (HORTA, 1983)
A poetisa não conseguiu, entretanto, ser totalmente fiel aos princípios dos movimentos, ou seja, romper com elementos simbólicos que se constituíram como uma marca primordial de seus poemas. A presença do simbólico é o aspecto revolucionário da poesia mais intensivo, pois o comprometimento com os movimentos sociais, sobretudo o feminismo, fez a poesia de Horta uma verdadeira revolução de linguagem poética. Uma poética que foi muito além dos jogos de linguagem para buscar um envolvimento da poesia com as questões humanas que vão além das adversidades de seu tempo e de seu país.
Nesse sentido, a força do erotismo aparece em 1962 em Verão coincidente de maneira clara e, sobretudo, através do ponto de vista da mulher, até então sempre filtrado pela tradição patriarcal, mesmo na voz de poetisas distantes das questões do feminismo. Esse ponto de vista feminino se consolida como um fato inédito na poesia portuguesa, pois até então o erotismo só se manifestara como presença velada, como já revelara a poesia de Florbela Espanca, no início da década de vinte do século passado, perturbando intensamente a crítica literária da época que não poupou Espanca de suas farpas preconceituosas em relação à dicção feminina que, ao ver dos críticos, deveria ser mais contida.
Além do erotismo emergente, a palavra poética revela significativamente o aspecto datado, devido ao engajamento da Horta na luta pela emancipação feminina e pelo envolvimento nas questões políticas revolucionárias que marcaram decisivamente as décadas de sessenta e setenta em Portugal. Assim, o início da valorização do corpo como lugar privilegiado de prazer e de expressão se torna um indício de que a luta das mulheres começa a surtir efeito:
Pedir-te da vertigem a
Certeza
Que tens nos olhos quando
Me desejas
Pedir-te sobre a mão
A boca inchada
Um rasto de saliva na
Garganta
(...) (HORTA,1983)
A repressão sexual (controle da sexualidade feminina) começa a ser desafiada, mostrando o envolvimento da poetisa com a causa das mulheres. Desta forma, a palavra poética deixa evidente a contextualização histórica, pois a partir de fatos da vida da mulher portuguesa, chega-se às condições das mulheres na História, ou seja, partindo do particular para o universal. É uma poesia de tom político, sem dúvida, já que reflete a questão da memória (ancestralidade) através das histórias ‘apagada’ das mulheres. Essas ‘heroínas’ que não constam da História, justamente porque seu universo sempre fora reduzido ao domínio do espaço privado. A poesia pretende mostrar que mesmo nestas condições reduzidas de mundo, a mulher teve a participação na luta revolucionária, sobretudo aquelas que aos poucos entraram na vida pública através do trabalho, principalmente, o trabalho operário:
Mulheres
Há nas mulheres
O sono duma ausência
Como uma faca aberta
Sobre os ombros
À qual a carne adere
Impaciente
Cicatrizando já durante
O sonho
E há também o estar impaciente
Todo o corpo
Sorrir não devagar
Claramente
Lugares inventados sobre
Os olhos
E há ainda em nós
O estar presentes diariamente calmas
E seguras
Mulheres demasiado
serenamente
Nas casas
Nas camas
E nas ruas
(...) (Horta, 1983)
Na década de setenta são publicados dois livros de poesia extremante provocadores:Minha Senhora de mim (1971) e Educação Sentimental (1975), um ano após a revolução portuguesa. No primeiro, fica evidente a hora do protesto através da poesia de contestação: protestar contra o silêncio da voz e do corpo é a palavra de ordem. Os poemas revelam os desencontros amorosos através de diálogos com a tradição das cantigas trovadorescas e palacianas. Nesse diálogo, aparece a revelação dos universos opostos de homens e mulheres. Há uma incessante busca das vozes ‘emudecidas’ ao longo dos séculos. Um verdadeiro resgate da vida das mulheres comuns, revelando sua participação ativa na construção da sociedade portuguesa que se torna metáfora de participação e gestação de mundo:
Minha senhora de mim
Comigo me desavim
Minha senhora de mim
Sem ser dor ou ser cansaço
Nem o corpo que disfarço
Comigo me desavim
Minha senhora
De mim
Em Educação sentimental, o ato amoroso se torna matéria de poesia revelado na poética livre de convencionalismo das figuras de linguagem que mascaram, muitas vezes, através de eufemismos o jogo erótico revelador da dinâmica da sexualidade. A presença das palavras ‘não-poéticas’ é uma forma de transgressão que quebra o convencionalismo da linguagem. Assim revela a intenção de quebrar o tabu em relação ao corpo, ou seja, todas as partes do corpo, sobretudo, as ‘impróprias’ à poesia (axilas, joelhos, etc...). É a celebração do corpo em todos os aspectos mais ‘proibidos’ que a poesia consagra.
O diálogo com a tradição literária (A educação sentimental de Gustave Flaubert) confirma o aspecto desafiador, pois, se há na obra de Flaubert um sujeito educado pelas convenções patriarcais, na poesia também há um sujeito receptor da educação, mas é conduzido por um sujeito feminino que leva o receptor da ‘educação’ à descoberta de todas as partes do corpo e de todas as formas de prazer, através do jogo erótico. Os poemas revelam o poder da palavra que desmistifica e ao mesmo tempo denuncia todas as formas de repressão e de convenção da sexualidade na formação (educação) sentimental/sexual.
São poemas que dão voz ao corpo, marcando na linguagem a oposição: palavra x silêncio. A palavra quebra o silêncio simbólica que representa o corpo reprimido pelo moralidade cristã, metáfora do pecado e da perdição mundana. O ato sexual se torna transcendência pela valorização do corpo que simboliza a revelação da voz feminina libertada do silêncio que marca a história de opressão das mulheres.
Geografia
Deitar-me sobre o
teu corpo
país da minha evasão
geografia de agosto
com um mês em cada mão
O rio que corre
em teu ventre
deságua em tuas pernas
Meu amor
a minha sede
é uma fêmea – uma égua
(HORTA, 1983)
Em Cronista não é recado (1967) os poemas fazem o registro da história pelo olhar do sujeito feminino. Neles aparece o reflexo do passado histórico, mas com um novo olhar para a história oficial, a partir do ponto de vista do dominado, sobretudo a mulher, eleita na poesia, a grande heroína renegada pela História oficial. Assim, os sujeitos dos poemas são: Mulheres, camponeses e operários.
A questão da mulher se confunde com a luta de classe, justamente por ser ela também a grande protagonista nas lutas do espaço público quando, por necessidade, entra neste domínio masculino, ou seja, o mundo do trabalho.
Os poemas marcam o período pré-revolucionário e registram os acontecimentos políticos e sociais que antecederam e provocaram a Revolução portuguesa. É através da polifonia das vozes de mulheres que contam a história do povo: voz do dominado, que passamos a conhecer esse universo desconhecido. Quem são essas mulheres? Como a história pôde calá-las? Elas deixaram, entretanto seus vestígios através da memória oral. As histórias contadas, as lendas populares, as cartas, as marcas nas artes, nos artesanatos, nos cantos, nos ‘causos’ e tantas outras formas de manifestações populares está registrada a presença da mulher na História.
São poemas narrativos nos quais as mulheres contam suas histórias. A vida cotidiana revelando a história não oficial do ponto de vista da própria mulher. Essa mulher aparece então diferente dos simulacros de mulher presentes em muitas narrativas e poesias nos quais não há uma enunciação comprometida com o feminismo. O eu-lírico assume aspecto de personagem e se transforma em personalidade histórica: A Mulher:
Pequena cantiga à mulher
Onde uma tem
o cetim
a outra tem
a rudeza
Onde uma tem
a cantiga
a outra tem a firmeza
Tomba o cabelo
nos ombros
O suor pela
Barriga
Onde uma tem
a riqueza
a outra tem
a fadiga
procura o pão
na gaveta
(...) (1983)
Em Mulheres de abril (1977), o destaque é a gestação da consciência política feminista que se funde à gestação da consciência revolucionária (questão datada?). A poesia marca a presença da mulher na luta revolucionária, mostrando o papel ativo na luta pela liberdade, partindo para um contexto mais amplo que é a condição feminina ao longo da História, ou seja, a luta silenciosa e árdua que há séculos as mulheres travam para conseguir vencer as barreiras da repressão. Na contestação a luta feminista se confunde com a luta operária, pois ambas se fazem grito de protesto contra o uso do corpo/mente das mulheres: o corpo político – a interdependência entre o político e o poético, como bem situa o poema:
Basta
Basta
-digo
Que se faça
Do corpo da mulher:
A praça – a casa
A taça a águas
Com que se mata
A sede do vício e da desgraça
(...) (HORTA, 1983)
Na década de oitenta, a obra poética ganha um novo direcionamento sem perder sua alta carga de eroticidade encontrada nos livros: OS Anjos (1983) Minha mãe meu amor (1986) e Rosa sangrenta (1987). Destaca-se a retomada do símbolo sagrados da poesia: Anjo e mãe, temas caros à tradição da poesia portuguesa. Desvinculando assim a imagem do anjo da mística religiosa tão presente na tradição literária portuguesa. Os símbolos do anjo e da mãe perdem a imagem de seres assexuados para se tornarem seres erotizados, desmistificando a imagem negativa da sexualidade. Há uma evidente integração entre o erótico e o sagrado na ligação íntima que aparece entre as imagens do corpo e do anjo na grande maioria dos poemas.
Anjos Mulheres – VIAs mulheres voamcomo os anjosCom as suas asas feitasde cristal de rocha da memóriaDisponíveispara voarsoltas...Primeirolentamente uma por umaDepois,iguais aos pássarosfundas...Nadando,juntasSecreta a rasar ochãoa rasar a fendada luano menstruopor entre a fenda das pernasÀs vezes é o açoque se prendena luzA dobrarmos o espaço?Bruxaspomos asas em vassourasde ventoE voamosComo as asaslhe cresciam nas coxasdiziam delaque era um anjo do marRondo alto,postas em nudez de ombrose pernasperseguindo,pelos espaços,lunaresda menstruaçãoe corpo desavindoNão somos violênciamas o vôoquando nadamosde costas pelo ventoaté à foz do tempono oceano denso(...) (HORTA,193)
Fonte: Literatura e Arte no Plural - Cronocópios - http://www.cronopios.com.br/
A revelação da sexualidade através da presença da menstruação como elemento significante desmistifica sentido negativo da feminilidade (tabus e crendices ligados à sexualidade feminina). O sangue aparece como símbolo da vida e da morte, mostrando que o corpo material, que exala impurezas, também participa da transcendência através do ato erótico na poesia. O ato de ousadia está em ligar a intimidade ‘proibida’ à descoberta do prazer, do desejo e da liberação que se constituem como experiência de prazer erótica/sagrado:
São os rios mais antigos
que se desprendem da maciez as estradas
a caminho
da branda foz dos pássaros
e das pernas (HORTA, 1987, p.65)
Em Destino (1998) e Só de amor (1999) a redução drástica de metáforas destaca uma certa mudez. O corpo além de ser o elemento de captação do mundo através das sensações ainda se manifesta como a grande presença no mundo através do rompimento de seu silêncio. É o corpo como símbolo de libertação na matéria da poesia. Apesar da presença do corpo, a provocação erótica perde força, pois fora conquistada ao longo das últimas décadas, período de conquistas feministas, sobretudo, no domínio da palavra.
Sabor
O teu travo a madrugada
A erva doce
O teu cheiro a madeiro
Nos cabelos
O teu sabor a noite
A lua cheia
O teu odor a cravo
Que se enleia
Nas axilas brandas e vagueia
Entranhando-se doido
Nos teus pêlos
(HORTA, 1999)
As barreiras e interdições, de certa maneira estão derrubadas graças à luta das mulheres engajadas no feminismo, rompendo suas amarras. O amor é o grande tema de todos os tempos que não perde nem um pouco de sua força. Ele se transforma em Só de amor pela busca de um novo significado para o nosso tempo de banalização. A força da poesia de sacudir e balançar a ordem determinada do mundo, pode também devolver à temática amorosa o poder de encantamento que sempre seduziu os seres humanos em todos os tempos.
Miriam Bittencourt é doutora em Letras e professora universitária de Literatura brasileira e Literatura portuguesa. Desenvolve pesquisa sobre o gênero e estudos culturais. E-mail: miriam_mbitt@hotmail.com.
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