Freud explica o Unheimlich
Por Braulio Tavares
Um conceito fundamental da Literatura Fantástica é o que Freud chamou “das Unheimlich”. O equivalente inglês é “the Uncanny”, que meu dicionário Webster traduz assim: “Estranho, misterioso; sinistro; excepcional, incomum (p. ex., ‘uncanny ability’, habilidade excepcional); fantástico, sobrenatural; (dialetal) perigoso”. Mike Ashley (“The Encyclopedia of Fantasy”, ed. John Clute & John Grant), explica: “Embora usado com freqüência para descrever qualquer coisa estranha ou inusual, o sentido estrito da palavra se refere a algo além do nosso conhecimento, além do nosso alcance, portanto não é necessariamente algo sobrenatural. Tzvetan Todorov, em sua classificação do Fantástico, colocou o “uncanny” no extremo mais racionalizado de sua escala. Contudo, já que ele está fora do nosso entendimento, costuma trazer consigo conotações óbvias de medo, e por isto o termo é frequentemente usado tanto em relação ao Horror quanto ao Sobrenatural.”
Decidi recorrer pessoalmente ao Dr. Freud. Em seu artigo clássico sobre o tema ele diz que o “Unheimlich/Uncanny” não deriva seu terror de alguma coisa externa, estranha ou desconhecida, mas, pelo contrário, de algo estranhamente familiar, que tentamos afastar de nós, mas que resiste aos nossos esforços. Freud lança mão de um pequeno episódio autobiográfico para exprimir essa sensação. Diz ele que certa vez estava visitando pela primeira vez uma cidadezinha italiana, numa tarde quente de verão, quando, caminhando sozinho e a esmo, descobriu que tinha ido parar numa área que ele, pudicamente, evita nomear, mas descreve assim:
“Encontrei-me num bairro sobre cuja natureza eu não poderia ficar em dúvida por muito tempo. Nas janelas das pequenas casas eu via apenas mulheres maquiladas, e apressei o passo para afastar-me daquela rua estreita na próxima esquina. Depois de andar por algum tempo sem pedir instruções, de repente vi-me de volta à mesma ruela, onde minha presença já começava a atrair as atenções. Apressei o passo novamente, somente para descobrir, depois de tomar outro rumo, que estava desembocando no mesmo lugar pela terceira vez. Nesse instante fui invadido por um sentimento que posso apenas denominar de ‘Unheimlich’, e tive um profundo alívio quando me vi de volta à pequena ‘piazza’ por onde havia passado um pouco antes, sem me aventurar em outros passeios de descoberta”.
Agora me digam: tem história mais freudiana do que esta?! Um respeitável médico austríaco visita uma cidade estrangeira, onde ninguém o conhece. Aí sai para passear sozinho. De repente, não mais que de repente, percebe que chegou na Zona. Como diabo o senhor chegou ali, Dr. Freud? Que acaso, ou distração, o levou justamente ao Rói-Couro local? E quando quis sair de lá, por que quis fazê-lo “sem pedir instruções”, e acabou voltando? E por que chamou a isso “passeios de descoberta” (“voyages of discovery”)?! Dr. Freud, Dr. Freud... Conte essa história direito!!
Braulio Tavares é escritor e compositor, e este artigo foi publicado em sua coluna diária sobre Cultura no "Jornal da Paraíba" (http://jornaldaparaiba.globo.com).
Por Braulio Tavares
Um conceito fundamental da Literatura Fantástica é o que Freud chamou “das Unheimlich”. O equivalente inglês é “the Uncanny”, que meu dicionário Webster traduz assim: “Estranho, misterioso; sinistro; excepcional, incomum (p. ex., ‘uncanny ability’, habilidade excepcional); fantástico, sobrenatural; (dialetal) perigoso”. Mike Ashley (“The Encyclopedia of Fantasy”, ed. John Clute & John Grant), explica: “Embora usado com freqüência para descrever qualquer coisa estranha ou inusual, o sentido estrito da palavra se refere a algo além do nosso conhecimento, além do nosso alcance, portanto não é necessariamente algo sobrenatural. Tzvetan Todorov, em sua classificação do Fantástico, colocou o “uncanny” no extremo mais racionalizado de sua escala. Contudo, já que ele está fora do nosso entendimento, costuma trazer consigo conotações óbvias de medo, e por isto o termo é frequentemente usado tanto em relação ao Horror quanto ao Sobrenatural.”
Decidi recorrer pessoalmente ao Dr. Freud. Em seu artigo clássico sobre o tema ele diz que o “Unheimlich/Uncanny” não deriva seu terror de alguma coisa externa, estranha ou desconhecida, mas, pelo contrário, de algo estranhamente familiar, que tentamos afastar de nós, mas que resiste aos nossos esforços. Freud lança mão de um pequeno episódio autobiográfico para exprimir essa sensação. Diz ele que certa vez estava visitando pela primeira vez uma cidadezinha italiana, numa tarde quente de verão, quando, caminhando sozinho e a esmo, descobriu que tinha ido parar numa área que ele, pudicamente, evita nomear, mas descreve assim:
“Encontrei-me num bairro sobre cuja natureza eu não poderia ficar em dúvida por muito tempo. Nas janelas das pequenas casas eu via apenas mulheres maquiladas, e apressei o passo para afastar-me daquela rua estreita na próxima esquina. Depois de andar por algum tempo sem pedir instruções, de repente vi-me de volta à mesma ruela, onde minha presença já começava a atrair as atenções. Apressei o passo novamente, somente para descobrir, depois de tomar outro rumo, que estava desembocando no mesmo lugar pela terceira vez. Nesse instante fui invadido por um sentimento que posso apenas denominar de ‘Unheimlich’, e tive um profundo alívio quando me vi de volta à pequena ‘piazza’ por onde havia passado um pouco antes, sem me aventurar em outros passeios de descoberta”.
Agora me digam: tem história mais freudiana do que esta?! Um respeitável médico austríaco visita uma cidade estrangeira, onde ninguém o conhece. Aí sai para passear sozinho. De repente, não mais que de repente, percebe que chegou na Zona. Como diabo o senhor chegou ali, Dr. Freud? Que acaso, ou distração, o levou justamente ao Rói-Couro local? E quando quis sair de lá, por que quis fazê-lo “sem pedir instruções”, e acabou voltando? E por que chamou a isso “passeios de descoberta” (“voyages of discovery”)?! Dr. Freud, Dr. Freud... Conte essa história direito!!
Braulio Tavares é escritor e compositor, e este artigo foi publicado em sua coluna diária sobre Cultura no "Jornal da Paraíba" (http://jornaldaparaiba.globo.com).
Fonte: Cronocópios - http://www.cronopios.com.br/
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