quinta-feira, abril 27, 2006

DE RÚCULA, PICANHA E CACHORRO SARNENTO SE FAZ UM DOMINGO - DEISE ASSUMPÇÃO




DE RÚCULA, PICANHA E CACHORRO SARNENTO SE FAZ UM DOMINGO

Domingo de sol e um calorzinho bom, apesar do inverno no calendário. Pouco antes de meio-dia. Trânsito calmo, pego o retorno, rumo à churrascaria. É bom, de vez em quando, sair com os familiares, ceder aos prazeres da carne, mesmo com comedimento, mesclando-a com verduras e legumes, deixando de lado os suculentos nacos gordurosos, torresmo degustado apenas num pedacinho. Afinal, não é da gula que se faz a festa, mas do sabor que se sorve lentamente, com prazer, celebrando a vida.
Com essa disposição interior ia eu, não obviamente teorizando desta forma sobre ela, mas vivenciando-a na alma e no corpo e (por que não?) no espírito. Calmamente dei seta, saí à direita, no primeiro cruzamento estava na preferencial e cortei-o sem parar, mas com precaução, pois nunca se sabe, sempre pode haver surpresas. No segundo, minha vez de dar a preferência, parei, dobrei à esquerda, parei mais uma vez no sinal vermelho. Assim que este se abriu e entrei novamente à esquerda, algo estranho brecou meu cérebro, deixando-o totalmente confuso por uma daquelas frações de segundo em que parece que não entendemos o que se passa e não sabemos o que fazer. Um carro-forte, desses que transportam valores, parado ali, em meio à via, pisca-alerta ligado. Outro carro, este de passeio, parado ao lado, à esquerda. O que fazer? Parar atrás? Por que um carro-forte parado assim? Assalto? Tentar uma manobra e escapar pela extrema direita? É o melhor, o trânsito está calmo, não vem ninguém, dá para entrar, antes que saia um tiroteio. Vou manobrando. Um homem desce do carro-forte, fico mais assustada ainda, mas continuo a manobra, é preciso escapar o mais depressa possível dali. Escapo... ou penso que escapei, pois nem bem embico o carro pela direita, freio com tudo, de repente. Um cachorro velho e sarnento, pêlo preto desbotado, avança manquitolando, saindo da frente do carro-forte, mais desorientado que eu. Não gania, logo não devia ter sido atropelado naquele momento. Desviei como pude depois de brecar, que minha cabeça ainda não processara o acontecido e ainda procurava fugir de algum perigo.
Somente quando me vi livre de novo, alguns segundos à frente, meu cérebro e meu espírito se recompuseram louvando a grata ironia de que fora vítima. A ternura de homens armados, guardiães de nosso tesouro mais materialista e desumano (o vil papel com marcas d’água pelo qual se corrompem miseráveis e milionários, políticos e governos de esquerda e de direita, pelo qual se traem e se matam anônimos, amigos e até pai e mãe) com um pobre cachorro sem dono, quase me colocou em pânico, tal a carga de medo, insegurança e desconfiança em relação a tudo e a todos que o convívio íntimo e imposto com a violência nos faz interiorizar. Paradoxalmente, incrementou o sabor do almoço, durante o qual pude observar, à mesa em frente, um adolescente de boné com o prato derramando batatas fritas, mais um pastel na mão e uma coca-cola aguardando ser deglutida, e, à mesa da esquerda, um garoto de uns quatro ou cinco anos pegando lentamente com os dedos e levando-as à boca, de forma que dava gosto contemplar e até fazia salivar, as folhas de rúcula de seu prato.
Irremediavelmente, este mundo tem remédio (homeopático).

Deise Assumpção
(Crônica publicada no Jornal A voz de Mauá e Ribeirão Pires de 21/10/2005)

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