quarta-feira, novembro 24, 2010

Artigo: A Revolta da Chibata e a consciência de classe

A Revolta da Chibata, insurreição dos marinheiros contra os castigos físicos na Marinha, está completando 100 anos. Em todo o país, surgem reflexões sobre a importância do movimento e, principalmente de seu líder, João Cândido, conhecido como o almirante negro. No artigo publicado a seguir, o comunista baiano Egberto Magno levanta mais um aspecto a ser considerado sobre o episódio: teria sido a Revolta da Chibata um fato social resultante do amadurecimento político da classe operária?

Consciência de classe e participação política: uma hipótese analítica da Revolta da Chibata

Egberto Magno*

O presente artigo pretende discutir o nexo histórico-sociológico entre a Revolta da Chibata e o processo de formação da classe dos trabalhadores brasileiros do início do século XX. Sob a forma de indagação: “teria sido a Revolta da Chibata um fato social resultante do amadurecimento político da classe operária?”, o texto está dividido em quatro partes: na primeira, apresento um resumido quadro sobre a história do uso da chibata na punição dos marinheiros; na segunda, descrevo o espocar e os desdobramentos da sublevação; na terceira, discuto a noção de "povo político" presente no livro Os bestializados, de José Murilo de Carvalho; na quarta, visito o conceito weberiano de cidade moderna; depois, discuto o conceito marxista de consciência de classe social para, por fim, propor que o povo do Rio de Janeiro dos primeiros anos da República tinha elevado grau de politização que se expressava, inclusive, na crescente elevação de consciência de classe dos trabalhadores.

Chibatadas: marcas indeléveis

A história da Marinha Brasileira foi marcada por um processo de extrema desigualdade entre seu oficialato e a marujada. A maioria das praças da pré compunha de gente analfabeta, arrancada à força de suas cidades, lançada em embarcações e encaminhada para o front de batalha, como foi no caso da Guerra do Paraguai (1864-1870), enquanto os escalões mais elevados eram formados por pessoas ligadas à aristocracia e às oligarquias regionais. A primeira constituição republicana (1891) em seu artigo 87, parágrafo terceiro, aboliu o recrutamento militar forçado. Mas os que à marinha haviam involuntariamente acessado se viam numa camisa de força: por um lado, continuavam sendo tratados de maneira desumana, por outro, as restrições para “dar baixa” eram muito grandes. Para os marinheiros, nessas circunstâncias, deixar a marinha significava, ainda, grande instabilidade diante da nova ordem liberal.

O uso da chibata na Marinha vem do período escravocrata, uma espécie de “pelourinho marítimo”. A Constituição Imperial de 1824 abolira, pelo menos formalmente, tanto os açoites quanto à tortura e a marcação dos corpos por ferro quente e toda e qualquer penalização tida como cruel. Mas em 1830 o Código Criminal previa o açoitamento; alvará de 1880, com força de lei, e regulado por decreto datado de 1883, repõe a pena dos açoites, limitando em até 25 o número de pancadas. Proclamada a República em 1889 o governo provisório pôs fim, no segundo dia de sua instalação, ao uso da chibata, mas logo em seguida ele foi restabelecido em decreto, sob a forma de Companhia Correcional. O fato é que, mesmo abolida a escravidão um ano antes da proclamação da República, a chibatada, desumano tipo de castigo próprio da fase anterior à era republicana, continuava a ser utilizada como forma punitiva dos marinheiros.

A revolta

A sublevação conhecida como “Revolta da Chibata” começou na noite de 22 de novembro. Um dia antes o marujo Marcelino Rodrigues levou 250 chibatadas por suposta infração. Há tempo que a marujada urdia a sublevação, inicialmente para 15 de novembro, dia da posse do presidente Hermes da Fonseca e 21º aniversário da Proclamação da República. Mas a adiaram. Combinou-se então para os dias 24 e 25, mas o açoitamento de Marcelino no navio “São Paulo” a precipitou. Outros três vasos de guerra, os mais modernos da esquadra, sob o poder das praças, se envolveram: o scout “Bahia”, e os encouraçados “Minas Gerais” e “Deodoro”, adquiridos junto ao estaleiro inglês Armstrong e aportados no Brasil naquele 1910. Oficiais a bordo reagiram, morrendo quatro deles e vários marinheiros do “Minas Gerais”; no “São Paulo” o confronto vitimou um Capitão-Tenente; morreu ainda um Tenente no scout “Bahia”, onde houve diversas baixas do lado dos marinheiros revoltosos (Morel, 1986, p.69-73).

As autoridades temiam que as belonaves, agora controladas por “rudes marinheiros”, consideradas das mais modernas do mundo, atacassem a Capital Federal. Havia incerteza quanto aos reais intentos da revolta. Temia-se que visasse a destituição do governo, pegando-o incapaz de reagir à altura dada a desproporção entre o potencial bélico dos revoltosos e o do governo. No dia 23, o deputado e Capitão-de-Mar-e-Guerra José Carlos de Carvalho contatou com os rebelados. Recebido nos navios com honras militares, constatou que as suas instalações estavam em estado adequado. De volta a terra, discursou na Câmara relatando o diálogo estabelecido com as guarnições. Sobre as condições físicas do marinheiro castigado no dia 21, o parlamentar disse que suas “[...] costas assemelhavam-se a uma tainha lanhada para ser salgada [...]” (HISTÓRIA NAVAL BRASILEIRA, p. 151, 1997). Trouxe também o Memorial dos marinheiros, documento no qual constavam as reivindicações dos sublevados para ser entregue ao governo.

No parlamento nacional, foram intensos os debates entre situação e oposição em torno da concessão ou não da anistia. De maneira geral caracterizavam a revolta como resultado previsível do tratamento dispensado aos marujos que, não suportando mais tantos maus-tratos, se insurgiram. Acuado e sem margem de reação, o governo se vê forçado a conceder anistia, único mecanismo constitucional capaz de sustar a revolta. Morel (p. 105) diz que “O maior interessado na medida era o Governo, débil e rudemente atacado no Congresso Nacional. A anistia era a salvação dos poderes públicos ameaçados pelos canhões de 12 polegadas da Esquadra sublevada”. De fato, essa saída legal não deixava de ser uma desmoralização do governo, pois a repercussão dos fatos nos jornais diários e a desenvoltura com que a marujada manobrava os navios na Baía de Guanabara puseram grande parte da população carioca simpática à causa dos marinheiros. À frente do encouraçado “Minas Gerais” João Cândido Felisberto, vestido de marujo e com lenço vermelho ao pescoço, aparecia nas capas de jornais com a alcunha de “Almirante”, função somente exercida, até então, por brancos. João Cândido foi o primeiro "Almirante Negro".

No dia 24, radiograma emitido ao presidente da República e atribuído aos marinheiros dizia que eles estavam arrependidos do ato, depunham armas “[...] confiando que nos seja concedida anistia [...] abolindo como sendo lei os castigos corporais, aumentando o ordenado e o pessoal para que o serviço de bordo possa ser feito sem sacrifício. Ficamos a bordo obedientes às ordens de V. Exª quem muito confiamos” (idem, p. 153). Conforme Morel (p.119) o radiograma foi forjado para justificar a aprovação da anistia. Logo que o Congresso a aprovou os amotinados emitiram telegrama aos deputados: “Em nome dos revoltosos enviamos cumprimentos. Conservamos calma, aguardando vossas providências e também Justiça dos poderes constitucionais da República [...]”. A guarnição do encouraçado “Deodoro” contrariou-se com o desfecho das negociações sem que a bordo dos navios estivessem o presidente Marechal Hermes e o ministro da Marinha, Marques de Leão e sem que a lei de aumento do soldo tivesse sido votada. Os receios da guarnição do “Deodoro”, como veremos adiante, tinham razão de existir. De qualquer modo, “Estava finda a revolta. João Cândido vitorioso, com 30 anos, um semideus, amado pelo gentio humilde do Rio de Janeiro, conhecedor da decisão do Congresso Nacional, radiografou”:

‘Comandante José Carlos – Catete – Entraremos amanhã ao meio dia. Agradecemos os seus bons ofícios em favor de sua causa. Se houver qualquer falsidade o senhor sofrerá as conseqüências. Estamos dispostos a vender caro as nossas vidas. – Os revoltosos.’

Com dois artigos, a anistia foi votada a toque de caixa no Senado (dia 24) e na Câmara (dia 25), indo imediatamente à sanção presidencial. A cidade, então, voltava à rotina. Com o prestígio dos marinheiros lá em cima, aos poucos, entretanto, se engendrava a vingança. O governo e as autoridades militares não iam deixar por barato o que sucedera. Segundo Morel (p. 148-149) os conservadores agiam de maneira articulada: setores da imprensa exaltavam a figura dos oficiais mortos; a 28 de novembro a Marinha dá baixa, excluindo de seus efetivos, de praças cuja permanência era considerada inconveniente à disciplina; acusados de conspiração, 22 marujos são presos a 4 de dezembro; o alto oficialato “planta” a informação, logo disseminada nas ruas, no Congresso e entre os militares de que nova sublevação estaria em marcha. Esse “clima conspirativo”, de terror, propiciou a eclosão, na noite de 9 de dezembro, de nova revolta. Os encouraçados que estavam à frente da sublevação anterior agora atacavam a Ilha das Cobras, Batalhão Naval onde se verificara insurreição. À frente do “Minas Gerais”, João Cândido se opõe ao levante. Atingidos, os insurretos não dispõem de capacidade de resistência. Abstraindo-se quem fugiu ou se entregou ao governo, centenas foram mortos. A despeito disso, as autoridades lançam mão de preceito constitucional decretando o estado de sítio, celeremente votado no Congresso Nacional.

Dezoito marinheiros foram jogados em cela subterrânea na Ilha das Cobras, morrendo 16 após aspirarem cal, jogada intencional e criminosamente com água naquela masmorra. Sobreviveram apenas João Cândido e outro companheiro. No Natal daquele ano quase mil pessoas, entre os quais diversos marinheiros, são lançadas no navio “Satélite” que zarpa para a Amazônia. No trajeto, 5 marinheiros são fuzilados e dois, algemados nas mãos e nos pés, supostamente se lançam ao mar antes de serem alvejados. Na selva, os que sobreviveram são entregues a seringueiros ou destinados a trabalhar exaustivamente em obras do governo, expostos à malária, febre amarela e à fome, resultando na morte de muitos destes homens (apud Morel, p. 162 a; 166b; 167c).

O povo de Os bestializados1

Em Os bestializados, José Murilo de Carvalho (2005) “pinça” a Revolta da Vacina, ocorrida em 1906 como objeto-meio para estudar que tipo de povo era o do Rio de Janeiro no início do século XX. No capítulo III intitulado Cidadãos inativos: a abstenção eleitoral, o cientista político, referenciando-se nos censos sobre ocupação laboral da população de 1890 e 1906 e em dados acerca da imigração, aponta que: 1) 50% da população economicamente ativa da cidade do Rio de Janeiro era lumpen, ou seja, “trabalhadores domésticos, [...] jornaleiros, [...] pessoas sem profissão ou de profissões mal definidas”; 2) à massa de proletários se somava, regularmente, grande número de imigrantes europeus (que também era grande parte dos empregadores), principalmente portugueses, e do interior do país; 3) metade da população era analfabeta. Para Carvalho, “Pelo lado social e demográfico [...] não eram favoráveis as perspectivas para a cidadania política no Rio de Janeiro no início da República. [...] grande parcela da população se colocava fora do mundo organizado do trabalho, [...] em que era difícil a percepção dos mecanismos que regiam a sociedade e a política. [...] a grande presença estrangeira, particularmente portuguesa, reduzia o envolvimento organizado na vida política da cidade” (p. 83). Ao analisar o “povo político” o autor identifica que de acordo com o censo de 1890 o Rio tinha uma população em torno de 500 mil habitantes. Desses, pouco mais de 100 mil tinham direitos políticos e potencialmente podiam votar, mas a imensa maioria não se alistava eleitoralmente. E grande parte dos que o faziam se abstinham de votar. Para ele, o advento republicano não alterou o grau de envolvimento do povo com as questões políticas: “Nas eleições de 1910, 21 anos após a proclamação da República, havia no Distrito Federal 25.246 eleitores, isto é, 2,7% da população [...]. Apenas 8.687 compareceram às urnas, isto é, 34% dos eleitores e 0,9% da população total” (p. 85). O novo regime teria "eliminado" o eleitor que, por sua vez, se auto-excluía do processo eleitoral devido às fraudes e trapaças. "[...] O povo do Rio, quando participava politicamente, o fazia fora dos canais oficiais, através de greves políticas, de arruaças, de quebra-quebras. Ou mesmo [...] de movimentos de natureza quase revolucionária, como a Revolta da Vacina. Mas na maior parte do tempo dedicava suas energias participativas e sua capacidade de organização a outras atividades [...]" (p. 90) que se davam pelos subterrâneos, ou seja, através de "canais informais": as festas religiosas, as revoltas, as organizações de auxílio mútuo, as repúblicas etc. Como sabia que política não era séria, o povo - segundo Carvalho - ficava espertamente de fora. O povo não era besta, mas sim bilontra (gozador).


A cidade moderna, em Weber

Para Max Weber (1994) uma relação social é "associativa" quando esta se assenta em um entendimento pactuado racionalmente, de acordo com interesses dos envolvidos, em que haja reciprocidade. A cidade moderna, capitalista, é onde os indivíduos agem de maneira racional, diretamente, com vistas a seus fins. Na sociedade liberal o individualismo é intrinsecamente ligado à empresa capitalista e à liberdade em relação ao trabalho. Conforme Carvalho, "Para Weber, a cidade moderna típica foi a do norte da Europa, onde predominou com maior nitidez a função econômica e a separação das várias esferas da atividade" (p. 148). Relativamente à época medieval, as cidades ibéricas não sofreram na mesma intensidade as transformações. Além do mais, a Reforma Protestante e as transformações científicas porque passaram as cidades do norte não atingiram as cidades ibéricas, que viram valores burgueses, como o do individualismo, passarem à sua margem. É sob a presidência, portanto, do tipo ideal de cidade moderna, em Weber, que José Murilo de Carvalho constrói a idéia de inexistência do "povo político" no Rio do começo do século XX. "Só o Ocidente conhece o Estado, no sentido moderno da palavra, com administração orgânica e relativamente estável, funcionários especializados e direitos políticos. [...]. Só o Ocidente conhece um direito racional, criado pelos juristas, interpretado e empregado racionalmente. Só no Ocidente se encontra um conceito de cidadão [...], porque, só no Ocidente, se deu uma cidade no sentido específico da palavra [...]". (Weber, 1968 p. 279). Consoante essa formulação o Rio de Janeiro seria, para Carvalho, uma cidade basicamente administrativa e comercial, fugia aos padrões da cidade burguesa, moderna, estava mais próxima da cidade antiga calcada em relações tradicionais, mais política que econômica, sem autonomia, pré-burguesa.


A adoção dessa tipologia revela alguns problemas. Em primeiro lugar, porque limita, senão exclusivisa, a noção de "canais formais" à participação eleitoral. É verdade, existiam dificuldades e obstáculos à participação popular no processo político-institucional: as elites brasileiras sempre tiveram um comportamento elitista. Mas nem a noção de "povo político" deve confinar-se à idéia de participação eleitoral nem os "canais formais" a ela se restringem. A literatura de ciência política e da história da Velha República é farta em evidências quanto ao elevado grau, por um lado, de envolvimento da população em questões políticas, e por outro, do papel ativo dos poderes executivo e legislativo municipal do Rio nos problemas citadinos no tratamento das demandas populares. O próprio autor descreve a ocupação produtiva das quase 15 mil pessoas que subscreveram representações à Câmara no ano de 1904 fazendo algum tipo de reivindicação ou queixa, e aponta que 2/3 eram operários do Estado, da construção civil, de transporte e de fábrica de tecidos, marítimos, entre outros. Não seria a apresentação de reivindicações à Câmara a utilização de um canal formal de participação política? Em segundo lugar, praticamente ignora que o início da república é marcado por forte ação política do movimento operário brasileiro, inclusive na capital do país. Estudos sobre a classe operária do final do século XIX e início do XX desmontam o mito também ideal-típico que tem no imigrante italiano fixado em São Paulo o modelo clássico da organização obreira no Brasil; diversas categorias de trabalhadores do Rio de Janeiro e de outros estados possuíam, já àquela altura, elevado grau de organização e de ação política.

"Economismo"

A partir da segunda metade do século XIX trabalhadores livres se articularam em instituições de socorro mútuo para exercer solidariedade entre si, mas também para se organizar contra a exploração patronal vez que a constituição de 1824 impedia a existência de movimento sindical. Já sob a égide da constituição republicana de 1891, entre os últimos anos do século XIX e início do XX teria aparecido um novo tipo de associação, os sindicatos operários, voltados para a “ação econômica”, que “[...] enfrentavam questões como a jornada e as condições de trabalho, os salários, a forma de pagamento etc. [...]. Com freqüência, na denominação havia a qualificação de ‘resistência’, para enfatizar sua diferença com relação às associações mutualistas, consideradas ‘beneficentes’” (Batalha, p. 15). Aqui, a noção de associação de novo tipo tem o sentido de “evolução” da consciência dos trabalhadores que teriam superado um tipo inferior de organização (associações de socorro mútuo) – desprovido de quaisquer pretensões de classe - e adentrado à arena do que Lênin adjetiva de “economismo,” ou “economicismo” (luta estritamente salarial) que para Batalha é “ação econômica”. Portanto, o embrião da consciência (elemento espontâneo, fase anterior) estaria em pleno desenvolvimento - atitude ainda despolitizada de luta - quando se começa perceber a necessidade de uma resistência coletiva (fase ulterior). Porém, associação de novo tipo denota mais do que uma nova forma: significa, sobretudo, uma nova qualidade organizativa dos trabalhadores por direitos trabalhistas. São ações de caráter sindical, não políticas, ou seja, o primado da transformação social ainda não se impôs em relação aos interesses estritamente econômicos.

Consciência de classe

A noção de consciência no Manifesto do Partido Comunista (Engels e Marx, 2001, p. 79) é apresentada nos seguintes termos: "Mas [referindo-se à necessidade de alianças], em nenhum momento, o Partido deixa de formar nos operários uma consciência o mais clara possível sobre o violento antagonismo entre burguesia e proletariado [...]". Quando aborda o papel do proletariado no desenvolvimento das forças produtivas no capitalismo o Manifesto diz que "O verdadeiro resultado de suas lutas [dos proletários] não é o êxito imediato, mas a união cada vez mais ampla dos trabalhadores" (p. 42). A busca para organizar-se como classe (partido) se dá com rivalização com outros partidos operários, mas resulta em seu fortalecimento. De fato, a trajetória para a construção de um movimento operário de caráter revolucionário no Brasil tem início no final do século XIX com o surgimento de diferentes grupos, dispersos entre si. Essas organizações tiveram vida efêmera e restrita atuação geográfica. “Como ideologia, professavam um socialismo eclético, marcado por forte viés cientificista e positivista que caracterizava o socialismo do período da Segunda Internacional, cuja proximidade com a matriz original marxista era, por vezes, mais simbólica que real [...]” e levantavam bandeiras reformistas, (Batalha, p. 22). Inúmeros agrupamentos anarquistas também se proliferaram a partir do último decênio do século XIX. Entre o começo do século XX e os vinte primeiros anos da República havia basicamente duas correntes ideológicas no sindicalismo: a de ação direta (de influência anarquista) e a reformista. “[...] as estratégias de longo prazo são deixadas de lado; o que prevalece desde as resoluções do 1o Congresso Operário Brasileiro em 1906 é a receita do funcionamento prático do sindicato desburocratizado, autônomo e voltado primordialmente para a resistência, ou seja, para a luta econômica” (Batalha, p. 30). É em 1922 que surge uma terceira corrente ideológica, diferente das duas anteriores: o Partido Comunista do Brasil (PCB) “[...] que já vinha sendo gestada desde o final da década precedente, no rastro da influência da Revolução Russa” (idem p. 35). Batalha registra o singular fato de a maioria dos quadros do PCB ser originária do anarquismo.

Segundo a teoria de Marx e Engels (2001) o proletariado, enquanto classe social, surge com a própria sociedade capitalista, burguesa, que ao se desenvolver revoluciona as forças produtivas e generaliza o uso da força de trabalho humana, a qual é vendida pelos proletários, os quais, no curso da luta contra a classe dominante (a burguesia) transformam sua consciência social passando de "classe em si" a "classe para si". Então, o proletariado não é um ente que brota de maneira pronta e acabada. "A princípio, os operários se empenham na luta isoladamente; depois, [...] os de uma fábrica; em seguida, os [...] de um ramo industrial, de uma mesma localidade, lutam contra cada um dos burgueses [...]". Em A ideologia alemã (2006) eles desenvolvem tenaz combate às concepções hegelianas, eivadas de dogmas religiosos, ilusões, superstições etc. que encobrem a vida real, material. A obra coloca, entre outras, as seguintes questões: 1) os indivíduos são determinados historicamente, então suas relações sociais e políticas decorrem dessa realidade, inclusive a consciência, sendo predominante a da classe que domina; 2) para subverter a ordem vigente são necessárias a) forças produtivas (fator objetivo) previamente existentes e b) massa revolucionária (fator subjetivo) que leva a revolução a termo; 3) a existência de idéias revolucionárias pressupõe que haja uma classe igualmente revolucionária.

Conclusão

É claro que o movimento operário de sentido revolucionário-anarquista não representa a “etapa anterior” do movimento operário revolucionário-comunista, não é uma “evolução natural”, os dois podem atuar simultaneamente, inclusive (e geralmente) disputando as estruturas sindicais e as bases políticas. Mas, como vimos, no caso brasileiro, o anarquismo foi a principal origem dos futuros quadros do Partido Comunista. Por sua vez, o sindicalismo reformista não deixou de jogar importante papel na organização dos trabalhadores. Há, a esse respeito, duas "curiosidades" que talvez nos sirvam de pista para a compreensão do caráter da Revolta da Chibata. A primeira: desde o início do século XX era forte a presença da corrente reformista no Rio de Janeiro, sobretudo entre os portuários através da União dos Operários Estivadores e da associação no setor de transportes no Porto (Batalha, p. 33). Velasco e Cruz (2006, p. 189) em sua pesquisa sobre a formação de classe entre os portuários do Rio e suas dimensões étnico-raciais cita que em manifestação do dia 1º de maio de 1908 atuantes da Sociedade de Resistência dos Trabalhadores em Trapiche e Café, unidos aos da já referida União dos Operários Estivadores aclamaram o advogado Evaristo de Moraes "patrono das classes operárias". Carvalho (2005) diz que em 1905 Evaristo tomara parte na fundação do Partido Socialista Operário, e em 1908 na criação do Partido Operário Socialista, ambos de feições reformistas que propunham um "socialismo democrático". Anos mais tarde o mesmo rábula criminalista, histórico defensor de trabalhadores nos tribunais, atuou brilhantemente na defesa do "Almirante Negro". A segunda: o oficial-deputado José Carlos de Carvalho que intermediou as negociações entre os revoltosos marinheiros e o governo em 1910, gozava desde o começo dos anos 90 de grande prestígio tanto entre os trabalhadores dos arsenais da Marinha quanto do porto (idem, p. 53). O envolvimento de figuras como os acima referidos, corrobora com a idéia de que no reformismo, para que fossem "[...] atendidas as reivindicações apresentadas, qualquer ajuda era bem-vinda, inclusive a intermediação de advogados, políticos, autoridades" (Batalha, p. 33).

Para Cláudio Batalha, "O sindicalismo reformista nunca foi ideologicamente homogêneo e jamais alcançou uma unidade organizacional [...] tendo sido, antes de tudo, uma concepção do funcionamento do sindicato e uma prática sindical partilhadas por uma constelação de correntes: socialistas de diferentes matizes, positivistas, republicanos sociais, sindicalistas programáticos" (p. 32-33), mas, conforme Velasco e Cruz (p. 194), o ambiente político era de ebulição em razão do aparecimento do movimento sindical no Rio, influenciado por fatores ideológicos. Lemas como “união de todos os trabalhadores” independentemente de seu país de origem, raça ou religião constam nos estatutos da Sociedade de Resistência dos Trabalhadores em Trapiche e Café, que fala em formação intelectual dos trabalhadores a fim de que as mistificadoras idéias burguesas não os obstruam. A autora constata ainda que ‘era muito comum [...] ser um carregador surrado com chicote de barbante. Não havia apelação, [...] malhavam o negro’ (apud Velasco e Cruz) [...], ou seja, os castigos não se restringiam aos marinheiros. Minha argumentação central é a de que a Revolta da Chibata se inscreve como um relevante episódio em que as dimensões étnico-raciais e de classe se confluíram como resultante do processo de industrialização da capital da República e da crescente necessidade do acesso da maioria da população a direitos políticos, econômicos e sociais, propiciando aos operários a elevação de sua consciência enquanto classe social2. E que o corolário de correntes e ideologias do movimento sindical da época expressou cada instante do aprendizado da luta dos trabalhadores da politizada cidade do Rio de Janeiro.

*Egberto Magno é dirigente estadual do PCdoB/BA.

Nota

1 Três dias após a Proclamação da República Aristides Lobo, que a presenciou, escreveu carta ao jornal carioca Diário Popular cujo trecho afirma que "O povo assistiu bestificado à proclamação da República!", sem dela tomar parte, pois a proclamação, conforme, muitos autores, não passou de uma quartelada, um ato sem o envolvimento da população.

2 Meses antes da Revolta da Chibata João Cândido Felisberto fizera viagem à Europa, oportunidade em que manteve contatos com marinheiros do estaleiro Armstrong, na Inglaterra, os quais gozavam de relativa experiência nas lutas da industrial Inglaterra.

FONTE: Vermelho

http://www.vermelho.org.br/
http://www.vermelho.org.br/ba/noticia.php?id_noticia=142205&id_secao=58
FOTO: passeiweb.com

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