domingo, outubro 24, 2010

Pensar o Estado

Tony Judt, historiador e ensaísta britânico tão brilhante como iconoclasta, desaparecido recentemente, legou na sua derradeira obra - Um tratado Sobre os Nossos Actuais Descontentamentos - uma poderosa reflexão acerca das angústias do Homem contemporâneo. Chega amanhã às livrarias

00h06m

SELECÇÃO E REEDIÇÃO POR ELMANO MADAÍL

Se vamos mesmo assistir a um regresso do Estado, a um aumento de necessidade de segurança e recursos que só um governo pode proporcionar, então devíamos prestar mais atenção ao que os Estados podem fazer.

O êxito das economias mistas do último meio século levou uma geração mais nova a exigir a eliminação do "estorvo" do Estado tributador, regulador e intrometido. Fazer pouco caso do sector público tornou-se a linguagem política padrão.

Mas só um governo pode dar resposta, na escala necessária, aos dilemas causados pela concorrência globalizada. Tais desafios não podem ser compreendidos, nem resolvidos, pelo sector privado. O máximo que se pode esperar dele é a pressão em defesa de empregos específicos ou protecções para sectores favorecidos - receita para precisamente as patologias e ineficiências associadas à propriedade pública.

Hoje enfrentamos um dilema. Tendo reduzido a dimensão da pertença e intervenção pública nos últimos 30 anos, vemo-nos agora a adoptar a acção estatal de facto a uma escala que não se via desde a Depressão. A reacção contra os mercados financeiros sem barreiras - e os lucros desproporcionados de poucos - constrangeu o Estado a intervir em toda a parte. Mas andávamos desde 1989 a congratular-nos pelo fim do Estado todo-poderoso e estamos, portanto, em má posição para nos explicarmos porquê e para quê precisamos de intervenção.

Temos de reaprender a pensar o Estado. Sempre vivemos com ele, afinal. Nos EUA, o país mais propenso a denegrir o papel do governo nos assuntos das pessoas, Washington apoiou e subsidiou intervenientes seleccionados do mercado. O que distingue os EUA tem sido a convicção generalizada do contrário.

O Estado tem sido caluniado como fonte do mau funcionamento económico. Metáfora amplamente imitada na década de 90: a opinião era pela restrição do sector público, sempre que possível, às funções administrativas e de segurança. Numa deliciosa ironia, os inimigos ideológicos do Estado, de Margaret Thatcher ao Partido Republicano, adoptaram na prática a opinião de Sidney Webb, fundador do socialismo fabiano, o qual dizia que "o futuro pertence às grandes nações administrativas, onde os funcionários governam e a polícia mantém a ordem".

Perante este poderoso mito negativo, como descrever o papel apropriado do Estado? Reconhecendo, mais do que a esquerda quer admitir, o verdadeiro mal que foi e ainda pode ser causado pelo poder em demasia. Há duas preocupações legítimas. A primeira é a coerção. A liberdade política não consiste em o Estado deixar-nos em paz: nenhuma administração moderna pode ignorar os cidadãos. A liberdade consiste antes em manter o direito a discordar dos objectivos do Estado e exprimir os nossos próprios reparos sem medo de represálias. É mais complicado do que parece: mesmo Estados e governos bem intencionados não gostam de deparar com empresas, comunidades ou indivíduos recalcitrantes ante os desejos da maioria. Não se deve alegar eficiência para justificar a desigualdade grosseira; nem se deve invocá-la, em nome da justiça social, para suprimir o desacordo. É melhor ser livre do que viver num Estado eficiente de qualquer cor política, se for esse o preço da eficiência.

A segunda objecção aos Estados activistas é que podem enganar-se. E quando o Estado erra, fá-lo em proporções dramáticas. O sociólogo James Scott escreveu sobre as vantagens do que chama 'saber local'. Quanto mais variada e complicada uma sociedade, maior a probabilidade de que os que estão no topo ignorem as realidades da base. As vantagens da intervenção do Estado em nome do público devem sempre ser ponderadas à luz desta verdade simples.

Esta objecção é diferente da de Hayek que se opunha a todo o planeamento do topo para a base. Mas o planeamento pode ser ou não o meio mais eficaz para alcançar objectivos económicos: as vantagens da acção pública devem ser ponderadas contra os riscos de suprimir o conhecimento e a iniciativa individuais. As respostas não devem ser predefinidas dogmaticamente.

Libertámo-nos de uma suposição de meados do século XX, a de que o Estado é a melhor solução para qualquer problema. Agora temos de nos livrar da noção contrária: a de que o estado é - por definição - a pior opção. A ideia de que há áreas em que o Estado deve intervir não era para os conservadores um anátema: o próprio Hayek não via incompatibilidade entre a concorrência económica (o mercado) e "um vasto sistema de serviços sociais - desde que a organização desses serviços não seja de tal forma que em muitos campos torne ineficaz a concorrência".

Mas afinal o que haverá nos serviços estatais que, se for mal concebido, torna a concorrência 'ineficaz'? Depende do serviço em questão e do quanto exigimos que a concorrência seja eficaz. Michael Oakeshott, que via a concorrência distorcida como o pior dos desfechos, propôs que "os empreendimentos em que a concorrência não possa funcionar como agência de controlo sejam transferidos para a operação pública". O lugar do Estado na vida económica era questão essencialmente pragmática.

Keynes foi mais longe. A principal tarefa dos economistas, escreveu, é "distinguir novamente a Agenda do governo da Não-Agenda". É óbvio que a dita agenda varia com a política dos que a exercem. Os liberais talvez se limitassem a mitigar a pobreza, a desigualdade extrema e a desvantagem. Os conservadores restringiriam a agenda à legislação que favorecesse um mercado competitivo bem regulado. Mas não se discute que o Estado precisa de uma agenda e de um modo de a executar.

Então e a crença contemporânea de que ou temos Estados de serviços sociais benévolos, ou mercados livres eficientes e geradores de crescimento, mas não ambos? Karl Popper disse: "[um] mercado livre é paradoxal. Se o Estado não interfere, então outras organizações semipolíticas, como monopólios, cartéis, sindicatos, etc., podem interferir, reduzindo a liberdade do mercado a uma ficção". Esse paradoxo é crucial. O mercado corre sempre o risco de ser deformado por participantes muito poderosos, cujo comportamento constrange o Estado a interferir para proteger o seu funcionamento.

Com o tempo, o mercado torna-se o seu pior inimigo. Os esforços dos promotores do New Deal para reerguer o capitalismo americano tiveram como opositores muitos dos que acabaram por beneficiar dele. Mas embora o fracasso do mercado possa ser catastrófico, politicamente o sucesso do mercado é igualmente perigoso. A função do Estado não é só apanhar os cacos quando uma economia subregulada rebenta. É também conter os efeitos do lucro imoderado.

Há coisas que o Estado consegue que nenhuma pessoa ou grupo conseguiria sozinho. Assim, embora um homem possa, à sua custa, construir um caminho à volta do seu jardim, dificilmente fará uma estrada até à cidade vizinha. Não é novo: é familiar aos leitores da Riqueza das Nações, de Adam Smith, que há instituições públicas que uma sociedade necessita, e cujo "lucro nunca pagaria a despesa de qualquer indivíduo ou pequeno número de indivíduos".

Mesmo os altruístas não podem agir sozinhos. Nem podemos almejar bens públicos através de uma associação voluntária: 'iniciativas por confiança'. Imaginemos que um grupo concordava construir e manter um campo de jogos, sobretudo para uso próprio, no meio da vila e aberto a todos. Mesmo que angariasse fundos para a obra, surgem problemas. Como pode impedir que outros - aproveitadores - beneficiem sem contribuir? Cercando o campo para utilização particular? Cobrando pelo aluguer? Nesse caso o campo torna-se privado. Os bens públicos - se é para continuarem públicos - têm de ser fornecidos à custa do público. Será que o mercado faz melhor? Por que construiria alguém um campo de jogos privado sem cobrar? Com suficientes interessados, era possível reduzir preços até que quase todos pudessem beneficiar. O problema é que o mercado não pode satisfazer todos.

Todos gostaríamos de ter um campo de jogos na nossa vila. Mas a única via de nos fazerem pagá-lo - incluindo aos aproveitadores - é através de impostos. Ninguém se lembrou de melhor forma de juntar os desejos individuais para vantagem colectiva.

Conclui-se que a 'mão invisível' não é muito útil na legislação prática. Há demasiadas áreas da vida em que não se pode confiar que ao fazer só o que achamos melhor para cada um de nós estejamos a promover o interesse colectivo. Hoje, quando é óbvio que o mercado e o jogo livre dos interesses privados não se unem para vantagem colectiva, temos de saber quando intervir.

FONTE: Pensar o Estado

http://jn.sapo.pt/
 
FOTO: ceasefiremagazine.co.uk

Nenhum comentário:

Postar um comentário